O direito à cidade como parte do modelo de atenção para a Saúde Mental. Artigo de Ion de Andrade e Letícia Raboud de Andrade

Foto: Luke Michael/Unsplash

02 Julho 2025

"O Direito à Cidade não é um acessório, mas a espinha dorsal de qualquer modelo de atenção em Saúde Mental que queira ser efetivo. Se as cidades são hoje máquinas de produzir sofrimento psíquico — com seu apartheid urbano, ausência de espaços coletivos e negação sistemática de dignidade —, elas podem e devem se transformar em territórios que curam"

O artigo é de Ion de Andrade e Letícia Raboud de Andrade.

Ion Andrade é médico, pediatra e epidemiologista, professor da Escola de Saúde Pública do RN, membro da coordenação nacional do Br Cidades e da articulador da rede de Inclusão Social a partir dos projetos sociais do bairro de Mãe Luiza em Natal-RN.

Letícia Raboud de Andrade é doutora em psicologia pela UFRN e trabalha como psicóloga no CAPSi de Natal e no Centro de Reabilitação Infantil (CRI RN).

Eis o artigo.

O Brasil é um dos campeões mundiais em sofrimento mental. Em 2020 os suicídios entre jovens figuravam como segunda causa mortis para essa faixa etária, precedida apenas pelos acidentes de trânsito.

Os transtornos de ansiedade, a depressão, os afastamentos do trabalho todos situados em níveis alarmantes e até mesmo a profunda crise demográfica constatada pelo IBGE no último censo, demonstram uma situação de desesperança profunda que, para além de destruírem vidas, abrem espaço para consequências sombrias no campo das relações sociais e da política numa sociedade que para muitos brasileiros e brasileiras deixou de fazer sentido.

Por quê?

As razões de tudo isso estão postas aos olhos de todos. Nossas cidades, arena em que as pessoas vivem (e não há outra) são o palco em que se desenhou ao longo dos séculos o apartheid social à brasileira que aniquila a Saúde Mental do povo.

De um lado essas cidades moldaram uma modernidade contemporânea ao que o mundo de hoje é. Privilégio dos mais abastados essa contemporaneidade se obtém pela compra de tudo, como uma mercadoria, Um Brasil à americana da classe média para cima que permite que a vida transite, sem questionamentos como uma transação comercial.

Escolas infantis privadas, cultura, esporte e lazer para a juventude e viagens linguísticas ao exterior, música e artes marciais para a juventude, são parte integrante do cotidiano. Para os idosos se reservam cuidados adequados e gentis em domicílio, ou em ILPI privadas e dignidade respeitada na morte e depois dela, pelo acesso da família a centros de velório privados e cemitérios privados. A vida inteira transita moderna, digna, confortável e à americana.

Do outro lado os setores sociais que sobrevivem precariamente se distribuem numa incrível outra partitura que vai desde quem não tem teto e vive na rua, até os idosos, muitas vezes senis ou sequelados, obrigados à solidão diária em casa, quando têm família e familiares que trabalham ou ao abandono quando nem família têm, pois o acolhimento público é raro.

Na vida comunitária, onde a ausência do Poder Público é a regra, a carência de vagas em creches precede escolas cronicamente precárias em comunidades que devem escolher entre uma mobilidade cara até o trabalho, ou fazer longas distâncias a pé ou de bicicleta para ter comida na mesa…

Essa gente vê a sua juventude sem acesso ao esporte ou à cultura no contraturno de escolas de tempo parcial, momento em que como presas que são, vivem à espreita de redes sociais alienantes, pelo tédio, pela drogadição, pela criminalidade e… pela polícia.

Gente que não tem espaços públicos para o lazer familiar dos domingos e que ao perder seus entes queridos encontram cemitérios quase sem vagas, sendo acossados pela adversidade até mesmo para enterrar os seus mortos.

Onde estão conjugados esses problemas como a totalidade da exclusão social que são, para a redefinição de políticas públicas governamentais que possam enfrentar e resolver esses desafios existenciais com urgência e com a incontornável participação popular no nível do território que é onde o povo trava a sua Paixão?

- Em parte alguma.

Os mais vulneráveis dentre os que estão enfrentando esse inferno (normalizado) enlouquecem, se angustiam, se matam. Muitas mulheres jovens negras não querem mais ter filhos, pelo que o Brasil de fato é.

O modelo de atenção em saúde numa realidade que o ultrapassa

Um modelo de atenção em Saúde Pública diz respeito à forma como os serviços de saúde são organizados e prestados para atender às necessidades da população, ou seja, de como essas tecnologias e recursos humanos (os serviços e tudo o que neles há) são distribuídos no território para atingir o objetivo de promover a saúde.

No contexto do SUS, cuja ênfase auto assumida é a de promover a saúde, o modelo de atenção atual (dito da Promoção à Saúde) busca, operando em condições permanentemente adversas, garantir o acesso universal a equidade e a qualidade no cuidado, priorizando a prevenção, a promoção da saúde e a atenção integral, além, naturalmente do tratamento de doenças.

A Saúde Pública, nos últimos quarenta anos atravessou duas ênfases para o desenho do modelo assistencial alinhadas às prioridades epidemiológicas de cada cenário: a da saúde materno-infantil e a atual das doenças crônicas. [1]

A Saúde Pública melhorou indicadores

Em ambos os casos, a prioridade atribuída pela Saúde Pública à área materno-infantil e a das doenças crônicas melhorou substancialmente os seus indicadores de morbimortalidade (adoecimentos e óbitos) onde, naturalmente, muito ainda resta por ser feito.

Para ilustrar o sucesso que pode proporcionar esse arranjo tecnológico e de serviços contido no conceito do modelo de atenção, basta dizer que a mortalidade infantil caiu mais de cinco vezes entre os anos de 1980 e os atuais indo de cifra em torno de 60 a 70 óbitos por mil nascidos vivos para cerca de 11 por mil em 2024. Em proporção menor a mortalidade materna também recuou de número situado na casa dos 150 óbitos maternos por cem mil nascidos vivos para os atuais 70 a 100 por cem mil, números, aliás, nesse caso, ainda bastante insatisfatórios.

Já as doenças crônicas vêm sendo afetadas por um crescimento vegetativo em função do envelhecimento populacional que aumenta proporcionalmente a incidência e a prevalência do diabetes ou da hipertensão. Essas doenças, no entanto, sujeitas ao controle medicamentoso e clínico, têm reduzidas as suas complicações tardias (infarto, AVC, insuficiência renal, amputações). A universalização do acesso à Estratégia Saúde da Família e a ampliação do acesso aos medicamentos específicos coincidem com uma redução quantificável de internamentos por essas causas nos anos que seguem o controle e o acompanhamento clínico.

Ações externas à saúde também contribuíram fortemente

No caso do enfrentamento da mortalidade infantil, para além de um modelo de atenção específico à Saúde Pública, diversas ações estruturais contribuíram decisivamente para reduzir a sua incidência como as melhorias no padrão de acesso à água tratada, saneamento e coleta de lixo, escolaridade e condições habitacionais.

Mais recentemente o bolsa família foi identificado como fator relevante para a redução dos internamentos de idosos e pela queda da prevalência da tuberculose atestando a sensibilidade da saúde a fatores externos a ela.

Nessa mesma ordem de ideias:

(a) uma nova prioridade do SUS para a Saúde Mental deverá contar, para que os indicadores melhorem, (a exemplo do que ocorreu para a área materno-infantil e das doenças crônicas nos anos de 1980 e 1990);

(b) com a intercessão de políticas públicas externas à Saúde Mental, capazes de sinergia com ela como o que configura a agenda do direito à cidade;

seria factível, portanto, imaginar uma evolução substancialmente favorável nos indicadores do sofrimento e da Saúde Mental no Brasil a exemplo do que ocorreu e vem ocorrendo tanto para a área materno-infantil quanto para a das doenças do envelhecimento.

Do que estamos falando?

Letícia de Andrade é psicóloga no CAPSi de Natal. Esse é o único CAPS infantil da cidade que tem 900 mil habitantes, quando o dimensionamento da rede recomendaria pelo menos cinco.

Para além da clara insuficiência dessa oferta de serviços em Saúde Mental para crianças e adolescentes, ela constatou a dificuldade extrema de encaminhar seus pacientes, crianças e jovens, para atividades de socialização que teriam o papel de atenuar as tensões familiares e ressocializar jovens mergulhados em ambientes familiares envolvidos no próprio processo de adoecimento e sofrimento mental.

Essa necessidade de socialização ultrapassa os limites da rede de Saúde Mental do SUS que, por sua vez, está incompleta na maior parte dos territórios e se caracteriza de forma muito esquemática por:

1. Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)

Serviços estratégicos para atendimento diário de pessoas com transtornos mentais, incluindo crises. São classificados por porte e complexidade:

Tabela dos tipos de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) | Fonte: Portaria GM/MS nº 3.088/2011 [2]

2. Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT)

Moradias coletivas para egressos de longas internações psiquiátricas:

3. Unidades de Acolhimento (UA)

Atendimento transitório (até 6 meses) para pessoas em situação de rua com transtornos mentais:

População: 1 UA para municípios com mais de 200 mil habitantes.

4. Leitos de Saúde Mental em Hospitais Gerais

Recomendação: 2 a 5 leitos psiquiátricos por 20 mil habitantes (para internações breves).

5. Ambulatórios de Saúde Mental

Vinculados a hospitais ou redes municipais, devem integrar a RAPS.

6. Programa De Volta para Casa

Auxílio financeiro para egressos de hospitais psiquiátricos:

7. Atenção Básica (ESF/UBS)

Equipes de Saúde da Família (ESF): Devem incluir saúde mental no cuidado cotidiano.

Ora, a socialização de crianças e jovens numa sociedade atomizada à singularidade dos indivíduos é de obtenção muito mais difícil para os mais pobres que compõem a totalidade da clientela de um CAPSi.

Em 2024, uma nova portaria do Ministério da Saúde criou os Centro de Convivência - Ceco da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) constatando a imensa lacuna estrutural para a sociabilidade dos pacientes da Saúde Mental.

O Ceco pretende em sua luta titânica na sociedade de exclusão social desenvolver as seguintes ações:

I - acolhimento individual e em grupo;

II - oficinas com diferentes linguagens artístico - culturais;

III - práticas integrativas e complementares em saúde;

IV - ações de educação em saúde;

V - ações de geração de renda e economia solidária;

VI - ações de arte e cultura;

VII - ações de redução de riscos e danos;

VIII - integração entre diferentes pontos de atenção em saúde;

IX - integração com a comunidade do território;

X - estímulo a autonomia e ao protagonismo das pessoas conviventes;

XI - esporte e lazer;

XII - atividades coletivas de integração com a cidade e o território; e

XIII - atividades de educação e preservação ambiental e sustentabilidade.

O dimensionamento territorial dos Ceco é o seguinte:

I - modalidade básica: municípios com população até quinze mil habitantes;

II - modalidade intermediária: municípios com população entre quinze mil e um e setenta mil habitantes; e

III - modalidade ampliada: municípios com população acima de setenta mil e um habitantes.

Estratégico que é, os setores privilegiados compram a cultura, o esporte, o lazer e o tempo de bem-estar para as suas crianças, jovens, adultos e idosos materializando o que de mais importante há no american way of life em que vivem, o que lhes garante significados últimos para suas vidas e, Saúde Mental!

Como ocorreu para a área materno-infantil e para as doenças do envelhecimento que contaram com ações estruturais estratégicas para a melhoria dos seus indicadores, a exemplo do acesso a água tratada ou do Bolsa Família, as ações estruturais estratégicas para a Saúde Mental são as do Direito à Cidade.

Ênfase do modelo de atenção na Saúde Mental & Direito à Cidade

O conceito de “Direito à Cidade”, desenvolvido por Henri Lefebvre, refere-se à reivindicação de que todos os cidadãos tenham o direito de usufruir e moldar os espaços urbanos onde vivem. [3]

O “Direito à Cidade”, como proposto por Lefebvre, pode ser o projeto estruturante da sinergia com a Rede de Atenção Psico Social (RAPS), materializando o eixo estratégico das políticas estruturantes cruciais para dar alcance ao modelo assistencial com foco prioritário na Saúde Mental e integrando acesso à cultura, ao esporte, ao lazer, à mobilidade e à participação popular.

Rede de Inclusão e Direito à Cidade e o Projeto CANTO - Territórios de Cidadania

Inspirado na Rede Inclusão de Mãe Luiza [4], Natal, RN, o projeto CANTO [5] proposto ao Instituto Lula em 2022 pela Rede BR Cidades propõe uma rede de equipamentos urbanos (cultura, esporte, lazer e acolhimento de vulneráveis) para territórios periféricos (dimensionados em 20 mil habitantes), com foco em protagonismo popular e justiça social. Premiado pelo Instituto Lula, no concurso “Territórios e Cidades Democráticas” é uma ferramenta para transformar as políticas urbanas, sob a forma de uma rede de equipamentos e políticas para a inclusão social e o Direito à Cidade, tal como o SUS faz na saúde com a sua Rede de Atenção.

● Objetivo: Promover o Direito à Cidade e a inclusão social, sobretudo em periferias.

● Abordagem: Sistêmica, com participação comunitária.

● Relevância: Combate desigualdades através de espaços que fortalecem cidadania (ex.: centros culturais ou poliesportivos, bibliotecas ou centros dia de idosos, na prática, "dispositivos de cuidado").

Conexão com Saúde Mental:

1. Territorialidade: Atua no território, como a Reforma Psiquiátrica propõe.

2. Emancipação: Prioriza direitos, não assistencialismo.

3. Prevenção: Equipamentos culturais/esportivos operam para reduzir o adoecimento psíquico.

4. Acolhimento: Humaniza a cidade e considera não somente a juventude, mas todos os ciclos de vida (ex.: casas-dia para idosos).

Trata-se de um modelo inovador para cidades inclusivas, inspirado na lógica do SUS e que custaria, se fosse implementado pela União quantitativo inferior a 0,5% do PIB, no pacto federativo, com custos rateados entre os entes, ainda menos.

O Direito à Cidade não é um acessório, mas a espinha dorsal de qualquer modelo de atenção em Saúde Mental que queira ser efetivo. Se as cidades são hoje máquinas de produzir sofrimento psíquico — com seu apartheid urbano, ausência de espaços coletivos e negação sistemática de dignidade —, elas podem e devem se transformar em territórios que curam.

A experiência do SUS já demonstrou que políticas públicas integradas reduzem mortes evitáveis: a mesma lógica que salvou crianças da desidratação e idosos do abandono agora exige que tratemos a cidade como um dispositivo terapêutico.

Centros de convivência, praças acessíveis, transporte digno, esporte e cultura como direito básico não são 'utopias'; são ferramentas mensuráveis para reduzir suicídios, depressão e o colapso do sentido de comunidade.

O projeto CANTO e a Rede de Mãe Luiza provam que, quando Saúde Mental e Urbanismo se encontram, nasce uma cidade onde ninguém precisa enlouquecer para ser visto. Resta perguntar: qual Brasil queremos? Um que segrega ou um que acolhe? A resposta está na pressão popular por um SUS e um Reforma Urbana que ousem ocupar as ruas — porque cuidar da mente é, antes de tudo, revolucionar o chão onde pisamos.

Notas

[1] No caso da Saúde materno infantil o SUS no começo dos anos de 1980 dotou diversas unidades básicas de saúde de unidades de reidratação oral para bebês, multiplicou os hospitais amigo da criança, com os seus bancos de leite humano, incrementou os dias nacionais de vacinação dentre outras iniciativas. No tocante às doenças crônicas, o acesso a medicamentos e ações maciças de mudança dos estilos de vida, valorização da atividade física, enfrentamento do tabagismo, ou a implantação dos programas de Hipertensão e Diabetes na Estratégia Saúde da Família vêm reduzindo complicações e internamentos por essas condições na rede hospitalar.

[2] Fonte da Tabela: Portaria GM/MS nº 3.088/2011 (institui a RAPS)

[3] Lefebvre argumenta que a cidade não deve ser apenas um espaço físico, mas um local de interação social, onde a vida coletiva e a cultura se desenvolvem. Esse direito implica que as cidades devem ser inclusivas e acessíveis, permitindo que os indivíduos tenham um papel ativo na construção da vida urbana, além de acesso a serviços e infraestruturas.

[4] Rede de Inclusão e Direito à Cidade

[5] A Rede Brcidades ganhou o prêmio do Concurso Nacional de Ideias Outros Futuros são Possíveis “Territórios e Cidades Democráticas

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