A cidade do século XXI pensa numa revitalização excludente e desigual que parou no século XIX. Entrevista especial com Vera Santana Luz

Segundo a arquiteta e professora, o apagamento da população em situação de rua responde a lógicas burguesas do passado que levam em conta uma massa trabalhadora que pensa a cidade só para quem “produz”

Foto: Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | 10 Junho 2022

 

Uma das marcas do segundo reinado no Brasil, no século XIX, foi o empenho e a campanha de Pedro II para resolver problemas urbanos na cidade do Rio de Janeiro. Afinal, o tempo já corroía as bem-feitorias do passado e a cidade crescia e se modernizava com uma classe burguesa. E como esse processo é chamado? Modernização urbana da cidade do Rio de Janeiro. Não surpreende que o processo pelo qual muitas metrópoles passam hoje continue sendo chamado de modernização. O problema, como aponta a professora e arquiteta Vera Santana Luz, é que lógicas burguesas que orientavam essa modernização e embelezamento urbano sigam valendo. “A cidade do século XIX é a exteriorização concretizada da organização social e forma de produção da sociedade burguesa, portanto nasce com o propósito de consolidar os processos de industrialização, circulação e troca de mercadorias — acumulação de riqueza e espoliação do trabalho”, aponta.

 

Talvez isso seja ainda mais cruel nos dias de hoje. Enquanto muitas cidades pensam em vias expressas, prédios e mobiliário urbano que se alinham com o top da moda arquitetônica, pessoas vivem em situação de rua, passam fome e são os principais alvos de doenças. A pandemia - que ainda vivemos - é prova disso. “Os processos de embelezamento das áreas centrais sempre foram excludentes e comandados por uma burguesia ávida por distinção”, completa Vera. Porém, ela reconhece que a situação é muito mais complexa. “Fome mata. Solidão mata. Carência de higiene mata. Falta de trabalho, tristeza matam também. Política pública, temos - desde 2009 a Política para a População em Situação de Rua determinou institucionalmente o suficiente para que passos pudessem ser dados. A efetividade já é outra história”, lamenta.

 

Se pensarmos em cidades como Porto Alegre – que pensa em finalmente se voltar de frente ao Guaíba, mas vê a orla como um espaço para poucos e trata como segundo plano a crise dramática do empobrecimento e crescente número de pessoas na rua – entenderemos o que Vera denuncia no sentido mais amplo. “O fundo do problema é: o salário garante a provisão da habitação? Não. Então o salário está errado, pois pressupõe-se que deva ser garantia da reprodução da vida, ao menos”, dispara. E reflete: “se, a exemplo, a Região Sudeste do Brasil é a que apresenta maiores contingentes de população em situação de rua sendo, paralelamente, a região mais rica do país, é possível considerar que o fenômeno reside na distribuição inadequada de renda e oportunidades. Contudo, a contagem nacional aponta que em torno de 70,9% exercem alguma atividade remunerada, portanto não são pedintes, mas sub-remunerados”.

 

Ao longo da entrevista, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Vera elabora que “para uma sociedade fundada no trabalho só tem direito à vida quem consegue trabalho — e sabemos que não há trabalho para todos. Então inventamos um mundo social que não tem pé nem cabeça”. “Se não há trabalho para todos, então há que haver garantia de vida digna para todos... Ou nosso contrato social equilibra as forças econômicas, ou garante um Estado provedor, porque a conta não vai fechar”, completa. Por isso, desafia todos nós a pensar nesse contrato social e no papel do Estado, lutando por efetivas políticas públicas que pensem em quem está em situação de rua. Do contrário, apenas se compadecer com que vive sob marquises é somente ver aumentar a densidade populacional sob esse espaço. “Quem somos nós para permitir que pessoas vivam sob marquises ou não? O espaço público não é público? Então se há pessoas dormindo na rua não é questão de permissão, mas de desigualdade extrema. Como assentimos, como sociedade, que isto aconteça?”, indaga.

 

Vera Santana Luz (Foto: Arquivo pessoal)

Vera Santana Luz é formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie. Possui doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo – USP. Atua como professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC Campinas. Seus temas de trabalho são, principalmente, arquitetura, urbanismo, desenho industrial, educação e sustentabilidade.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – O que é central hoje no debate acerca da população em situação de rua no Brasil?

 

Vera Santana Luz – Tudo. Eu diria, invertendo a questão, que falta colocar o debate acerca da população em situação de rua no centro. Se pensarmos na ordem de prioridades e urgências, a garantia da sobrevivência dessas pessoas é um imperativo primeiro, são como sobreviventes permanentes de uma guerra. Isto comporta saúde, alimentação, acomodações dignas, higiene. No entanto, são elementos mínimos, se pensarmos no valor da vida humana de cada um dos sujeitos.

 

Além desses direitos básicos, os direitos ao trabalho com soldo suficiente para provimento de habitação, ao esporte, ao lazer, são sumamente importantes, dado que temos marcos legais que garantiriam essas circunstâncias — o que é uma conquista relativamente recente (lembremos que em 1941 a Lei de Contravenções Penais penalizava a mendicância com 15 dias a 3 meses de prisão, e que a Política Nacional para População em Situação de Rua é de 2009).

 

Se, a exemplo, a Região Sudeste do Brasil é a que apresenta maiores contingentes de população em situação de rua sendo, paralelamente, a região mais rica do país, é possível considerar que o fenômeno reside na distribuição inadequada de renda e oportunidades. Contudo, a contagem nacional aponta que em torno de 70,9% exercem alguma atividade remunerada, portanto não são pedintes, mas sub-remunerados.

 

 

Sendo uma questão que afeta ou deveria afetar todo cidadão, a pergunta que fica no ar é: por que não se cumpre, como responsabilidade da municipalidade, o estatuto legal da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), de 1993, que preconiza a erradicação da pobreza e de vulnerabilidades — e que ampliou seu escopo para a população de rua, em 2005 —, e a Política Nacional para a População em Situação de Rua e os contingentes estão recrudescendo?

 

A despeito de Censos de população em situação de rua, o IBGE não realiza sua contagem pois seus dados se baseiam no domicílio. É um despropósito. Então, a invisibilidade é extrema, pois para este censo estas pessoas sequer existem. A questão central seria justamente visibilizar estas pessoas por todos os meios e constituir um debate permanente, no qual a população em situação de rua tenha voz e participação na reivindicação de seus direitos.

 

 

IHU – Como a arquitetura das cidades vem respondendo à população em situação de rua?

 

Vera Santana Luz – Pessimamente. Há já uma experiência consolidada teórica e prática para habitações e tecidos urbanos vulneráveis, incluindo aspectos da edificação, urbanísticos e de regularização fundiária. Quem constrói as cidades? O Estado? O capital privado? Iniciativas populares, de coletivos ou individuais? O que prevalece? Naturalmente, o capital privado e o Estado, nos quais comparece a renda da terra urbana.

 

Arquitetos e urbanistas respondem a demandas solicitadas ou trabalham em serviço público e, portanto, respondem a gestões. Há alguns arquitetos e urbanistas que trabalham com alto grau de ativismo, mas não seria possível considerar que as soluções sejam sistêmicas. Na resposta anterior considero que já tenha exposto um pouco sobre esta questão.

 

IHU – Adela Cortina trabalha com o conceito de aporofobia (Aporofobia, a Aversão ao Pobre: um Desafio Para a Democracia. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020), a fobia dos pobres. Recentemente, muitas pessoas têm se apropriado desse conceito em redes sociais para pôr em circulação imagens de espaços urbanos que, por rechaçarem a presença de pessoas em situação de rua, estariam praticando aporofobia. A arquitetura das cidades pode realmente ser aporofóbica? Como a arquitetura pode acolher a população de rua sem naturalizar essa situação?

 

Vera Santana Luz – A aporofobia sempre ocorreu, agora se utiliza um novo nome. No Brasil, vários autores nos ensinaram, entre tantos, como Lúcio Kowarick, sobre a espoliação urbana, Flávio Villaça, sobre o valor da localização, Raquel Rolnik, que desdobrou este conceito e mostrou a diáspora da classe dominante em direção ao sudeste de São Paulo, gerando áreas valorizadas, em que o Estado sempre foi coadjuvante.

 

 

Ainda Ermínia Maricato, em seu trabalho da vida inteira, nos fala do “lugar fora das ideias” (as periferias), tendo em referência Roberto Schwarz, a partir das ideias fora do lugar.

 

 

Os processos de embelezamento das áreas centrais sempre foram excludentes e comandados por uma burguesia ávida por distinção. A explicitude da aporofobia e do termo, que recentemente ganhou páginas de jornais inclusive em uma Catedral metropolitana, chega aos umbrais do assombro. Grades ou travas para evitar a ocupação de marquises, bancos de jardim, o chão da cidade, atos policiais truculentos, tudo isso é a desumanização acabada de quem o faz ou propõe.

 

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Eu perguntaria: quem somos nós para permitir que pessoas vivam sob marquises ou não? O espaço público não é público? Então se há pessoas dormindo na rua não é questão de permissão, mas de desigualdade extrema. Como assentimos, como sociedade, que isto aconteça?

 

 

IHU – Qual deve ser o espaço dos mais pobres no cenário urbano e no espaço público?

 

Vera Santana Luz – Esta pergunta, de meu ponto de vista, não procede. O cenário urbano e o espaço público não se classificam, se dividem ou se organizam configurando lugares de pobres e ricos. Na verdade, isto se dá de modo tácito... Esta distinção é anômala na própria gênese.

 

Então, por exemplo, deveria haver praças para pobres? Calçadas e ruas somente para ricos? O que legitimaria esta divisão? Isto, se institucionalizado, seria o fim do nosso contrato social e possibilidade de convívio humano.

 

 

IHU – Como compreender o papel da arquitetura na saúde das populações em situação de rua ou em zonas de moradias precárias? De que forma esse debate aparece na universidade e como deveria ser abordado pelos cursos de arquitetura e urbanismo?

 

Vera Santana Luz – O papel da arquitetura e do urbanismo, no meu entendimento, deve compor com outros campos. Veja, a saúde da população de rua transcende a arquitetura e o urbanismo, é uma questão de saúde pública. Sem investimento para o acolhimento e inserção destas pessoas não há mágica. A assistência social municipal tem base legal para estabelecer programas, incluindo a parceria e financiamentos privados. População em situação de rua é um assunto mais complicado do que moradias precárias.

 

Moradias em situação de vulnerabilidade devem ser dotadas de água potável, esgotamento sanitário, drenagem, energia, iluminação pública, transportes, manejo de resíduos, gás, ou seja, todas as infraestruturas que constituem o que se denomina propriamente urbano. Alia-se a estas equipamentos públicos de educação, saúde, cultura, lazer, esportes, segurança, espaços livres públicos de qualidade, parques, renaturalização de sistemas hídricos e vegetalizados.

 

 

Quanto ao aspecto edilício, em tecidos consolidados, é um trabalho de acupuntura, caso a caso, para adequação de salubridade dos ambientes, iluminação e ventilação naturais adequadas, dimensões convenientes para ocupação dos ambientes, impermeabilização, proteção contra intempéries, banheiros higiênicos, cozinhas decentes, equipamentos e mobiliário, ou seja, casas saudáveis, habitáveis, dignas.

 

A população em situação de rua está muito além desse universo. Não tem onde realizar nem as funções fisiológicas elementares. Não tem privacidade nem segurança alguma. Há os abrigos coletivos que dependem de gestão, limpeza, higiene, protocolos de atendimento corretos, boa alimentação, assistência médica, odontológica, psicológica, o que é, em certa medida, imponderável e dependente de cada gestão. São insuficientes em número perante a demanda.

 

 

Casas públicas

 

A estratégia de constituir equipamentos urbanos públicos para higiene pessoal, alimentação, lavanderia, lazer, seria bonita de se pensar. Imagine uma cidade com casas públicas onde qualquer pessoa pudesse dormir, fazer sua comida ou recebê-la, lavar sua roupa, ouvir música, assistir televisão, ler um livro, conversar... e até uma enfermaria para atender emergências de saúde que pudesse conduzir, se necessário, casos graves a hospitais. Não digo abrigos, digo casas mesmo, casas públicas, de pequena escala, mas pulverizadas pela cidade, para não virarem trambolhos institucionais imensos assemelhados a prisões, escolas em regime de internato, mas esses hoteizinhos sem custo de diária teriam que contar com um exército de manutenção e limpeza permanente e, como desdobramento, pedagogicamente estabelecer processos colaborativos com os próprios usuários.

 

Poderia haver oficinas públicas de reinserção no trabalho, associadas a estas casas públicas. Ai, mas fica caro.... inviável. Será? Eu gostaria de contar, nesta equipe, com um bom economista que fizesse o cálculo completo e verificasse se o acolhimento e inserção destas pessoas não acabaria por gerar trabalho, renda, já que tudo tem que ser condicionado a este preceito. No entanto, creio que uma sociedade decente teria como transferir renda para um empreendimento desta monta sem visar zerar a conta, nem mesmo gerar lucro. Pronto. Agora é só fazer. Parece fácil, não?

 

Justamente este seria um dos papéis da arquitetura e do urbanismo, idealizar e conceber estes equipamentos, até seus processos construtivos e espaciais, funcionamento, morfologias, montagem, implantação. Muitos cursos de arquitetura e urbanismo se debruçam sobre esta temática, na graduação e na pós-graduação, em níveis de ensino, pesquisa e extensão.

 

Um avanço importante foi a Lei de ATHIS (2008) “que assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social”, instituindo um mecanismo de assessoria, que é, porém, somente voltado para a habitação — há que se ampliar seu escopo para equipamentos e o espaço público. De qualquer modo, é fundamental que estas aproximações se deem em estratégias horizontalizadas, onde a população seja sujeito a falar de si e para si – ou seja, todo mundo junto desde a concepção. Há muitos coletivos de arquitetura que atuam desta forma e atividades acadêmicas que vão nesta linha.

 

 

IHU – Qual sua análise quanto ao papel dos movimentos sociais na discussão sobre as populações em situação de rua e o déficit habitacional? Como constituir fóruns de participação popular que gerem diretrizes para políticas públicas que enfrentem esses problemas?

 

Vera Santana Luz – A população em situação de rua tem diversos graus de organização consolidados, chegando ao âmbito nacional. Há muita gente envolvida, pessoal da academia, religiosos, simpatizantes, ativistas e militantes. É deixar crescer e se aproximar para estar junto. Esta luta tem lado. Os fóruns existem, a discussão também. Mas a luta é muito dura. No caso do déficit habitacional, podemos dizer que não temos política habitacional em curso desde o Minha Casa Minha Vida – a despeito das críticas que podemos ter desse programa.

 

Temos um passivo impressionante e absurdo que o IBGE contabiliza, a Fundação João Pinheiro desdobra e refina categorias. Temos leis, temos a garantia do direito constitucional. O Estatuto da Cidade (2001) é uma conquista fundamental e o Ministério das Cidades precisa urgentemente ser reconduzido ao centro da política. Participação popular também é preceito constitucional, porém, sabemos que a mediação tende à anulação das forças populares. Ao fim e ao cabo, uma perspectiva é um governo progressista (eu não gosto deste termo, mas vá lá) no âmbito federal a restaurar as políticas públicas e a dotação de recursos — porque é necessário dinheiro e vontade política para destinar esses recursos e, de outro lado, a organização popular continuar seu trabalho de formiguinhas — que eu, em certo sentido, preferiria que chegasse a ser de enxames de abelhas. Em nossa estrutura federativa, o município tem grande autonomia.

 

 

Vejamos: em São Paulo, o Plano de Habitação está parado desde a gestão [Fernando] Haddad, então, fica difícil. Há muitas ações importantes da Secretaria Municipal de Habitação – SEHAB, de urbanização de favelas, mas a demanda é colossal. O fundo do problema é: o salário garante a provisão da habitação? Não. Então o salário está errado, pois pressupõe-se que deva ser garantia da reprodução da vida, ao menos.

 

 

IHU – No que a experiência de Carmen Silva, líder do Movimento Sem-Teto do Centro – MSTC, pode nos inspirar acerca da inclusão social e promoção do bem-estar nas cidades diante dos contextos de hoje?

 

Vera Santana Luz – Carmen Silva é uma liderança importantíssima. Primeiramente, ela representa uma miríade de lideranças que existem. Basta conviver em qualquer território vulnerável, é impressionante a capacidade de organização popular, a quantidade de lideranças que despontam espontaneamente na adversidade, muitas delas mulheres, com força e persistência tremendas. Em geral, têm histórias de vida heroicas, do ponto de vista pessoal, e isto se desdobra para o coletivo, para o público, em que estas referências revelam um saber profundo sobre a vida, o mundo, os valores em jogo, a política e, o mais importante, as formas de solidariedade, de resistência e insurgência.

 

 

Carmen, como muitas destas pessoas e suas organizações, têm uma aguda percepção e diagnósticos precisos e coragem de lutar pelos direitos que sabem ter — sem os ter. No caso de Carmen, creio que há uma característica interessantíssima que é saber se articular às institucionalidades, evidenciando que está certa em suas reivindicações coletivas, pois usa do discurso popular associado ao discurso formal, que domina extremamente bem.

 

 

Quando visitei a ocupação 9 de Julho e o Cambridge, posso dizer que nunca vi um “condomínio” tão bem gerido, é espantoso. E alegre!! Isto tudo é fundado no cotidiano das pessoas, nos afazeres e nas necessidades mais elementares e fundamentais — como preparar refeições e comer junto, quem vai limpar a caixa d’água, onde as crianças vão brincar, “temos que organizar uma biblioteca e computadores com internet”, “gente, a eletricidade está instalada com segurança?”, e por aí vai.

 

 

A discussão coletiva, o afloramento e organização de conflitos, a sábia constituição de parcerias de tudo quanto é lado — coletivos de arquitetos, promotores culturais, assessorias de direito, universidades — esse caldo vai moldando uma forma social que aponta para o que poderíamos ser, todos nós, em uma experiência comunitária. Temos muito que aprender com as forças populares, em sua capacidade de articulação, solidariedade, amor à vida e dignidade sem precedentes.

 

 

IHU – O outono de 2022 ficou marcado por uma onda de frio que varreu o Brasil. No Sul, o mês de junho inicia com baixa temperatura e força o poder público a ampliar estruturas de abrigos para pessoas em situação de rua ainda antes do inverno. Como assegurar saúde e bem-estar para essa população e/ou a população em moradias precárias diante das baixas temperaturas? Como conceber políticas públicas consistentes e não apenas ações emergenciais quando o termômetro quase congela?

 

Vera Santana Luz – Esta é uma situação limite da desigualdade, uma urgência sistêmica — como uma pandemia perene, só que assola somente os contingentes extremamente pobres, portanto facilmente invisibilizável. Frio, calor — ambos matam. Fome mata. Solidão mata. Carência de higiene mata. Falta de trabalho, tristeza matam também. Política pública, temos - desde 2009 a Política para a População em Situação de Rua determinou institucionalmente o suficiente para que passos pudessem ser dados. A efetividade já é outra história.

 

No Brasil, temos leis avançadíssimas, em diversos setores; no Direito Ambiental, o Estatuto da Cidade, que orienta a política urbana, e o próprio Decreto nº. 7053/2009, que citei acima, que constitui a Política para a População em Situação de Rua. Se a política é consistente, enquanto fato legal, por que a gestão — os planos, programas e ações — não dão conta? Por um lado, a pressão popular é fundamental para tirar a gestão pública da inércia.

 

Veja, há importantes movimentos sociais do próprio povo de rua, como se diz, tem até jornais. Eu levo ao paroxismo e ouso dizer — me parece absurdo abrigar pessoas em situação de rua em emergências ocasionais e depois naturalizar o fenômeno como se a garantia do mínimo fosse suficiente, para toda e qualquer vida humana. Os censos PopRua apontam para causas da situação de rua multifatoriais, então dever-se-ia considerar todas simultaneamente — e em processos longos, cuidadosos, de acompanhamento, e não imediatistas — uma sopa, um banho, um cobertor e tchau.

 

 

Só para que tem trabalho?

 

Eu tendo a crer que, para uma sociedade fundada no trabalho, só tem direito à vida quem consegue trabalho — e sabemos que não há trabalho para todos. Então inventamos um mundo social que não tem pé nem cabeça, não é mesmo? Se não há trabalho para todos, então há que haver garantia de vida digna para todos... Ou nosso contrato social equilibra as forças econômicas, ou garante um Estado provedor, porque a conta não vai fechar. E se uma pessoa, por circunstâncias individuais, não tem aptidão para o trabalho? Descarta-se? Precisamos ter inclusive suporte para estes casos.

 

Por outro lado, a pirâmide de riqueza escancara que a desigualdade tem uma matriz de desequilíbrio pela acumulação, o que é, para mim, bem mais feio do que pessoas sem eira nem beira jogadas na rua. Ou melhor, é a mesma coisa, o avesso do avesso.

 

IHU – Assim como outras capitais brasileiras, Porto Alegre passa por uma revitalização que abre a cidade para a orla do Guaíba. No entanto, abre-se também o debate sobre a ocupação do espaço público por interesses privados, além de um processo de gentrificação. Por que, como nos séculos XVIII e XIX, a revitalização das cidades sempre traz de fundo questões higienistas e de exclusão dos espaços públicos?

 

Vera Santana Luz – Bem, eu creio que para entender este fenômeno recorrente é preciso remontar a uma definição do que é cidade — sob a ótica desse aparente paradoxo que a questão apresenta. No entanto, considero que não haja paradoxo algum se elegermos uma definição de cidade, para este entendimento, como uma unidade de produção.

 

 

A cidade do século XIX é a exteriorização concretizada da organização social e forma de produção da sociedade burguesa, portanto nasce com o propósito de consolidar os processos de industrialização, circulação e troca de mercadorias — acumulação de riqueza e espoliação do trabalho. A migração do campo e a proliferação da nova classe trabalhadora, em busca de se inserir neste processo dito do trabalho livre, é o que é: a relação capital x trabalho, moldada pela acumulação, cujo desdobramento se dá, hoje, no que se denomina “cidade global”, em que a financeirização toma a dianteira no comando e os processos se tornam aparentemente cada vez mais abstratos — e o trabalho cada vez mais atomizado e sem garantias sociais.

 

Mas, a definição de cidade não seria o lugar do encontro, do convívio harmônico entre os homens, sob garantia de direitos pelo Estado? Depende do que tomamos como estes tais homens — não é possível entender a noção de homens suspendendo a luta de classes, que é como a gente se organiza (ou se desorganiza). Basta ler “A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra” (no século XIX) e fazer uma visita a qualquer periferia urbana contemporânea de grandes cidades — ou mesmo zonas centrais popularizadas - e veremos que não estamos tão distantes assim.

 

 

Revitalização

 

Então, o que seria revitalizar? Se tomamos como uma questão meramente estilística — fica tudo bem bonito e moderno (e temos técnica e arte para fazê-lo), mas para quem? Ora, quem preside a disputa dos espaços públicos é o valor da terra, que também é mercadoria. E sabemos que, em uma sociedade capitalista, o Estado, na hora H, tende a privilegiar o capital imobiliário e o capital imobiliário tende a priorizar a si mesmo.

 

Temos casos evidentes deste fenômeno, limpidamente desvelados por David Harvey e, no Brasil, cito Mariana Fix em dois livros excelentes, entre tantos outros. Se não há medidas fortes de regulação da terra urbana e do espaço público, a privatização gerencia e expulsa de modo inconteste, açambarcando inclusive o espaço público para si. Hoje temos uma categoria cuja nomenclatura é mais honesta, a gentrificação. Em casos mais insidiosos, o termo higienismo pode ser convocado. Enquanto isso, em torno de metade dos territórios brasileiros, não há provimento de esgotamento sanitário. Que cidade higienista é essa mesmo?

 

 

IHU – A senhora também tem trabalhado com questões ambientais. Como analisa o papel e as respostas que a arquitetura e o urbanismo têm dado para problemas como crise climática, geração de resíduos e destruição de espaços naturais?

 

Vera Santana Luz – Não é possível um arquiteto e urbanista deixar de trabalhar com as questões ambientais – ou corre-se o risco de agir sem consciência dos impactos ambientais que qualquer arquitetura e cidade promovem e, portanto, chamar para si o problema de como superar determinados paradigmas anacrônicos – o que me parece uma gigantesca tarefa deste século. Veja: a começar, são toneladas de matéria, convocadas a cada edificação, por menor que seja; energia, recursos hídricos... a cidade e as edificações são organismos cujo metabolismo requer atenção para sua concepção, vida útil, transformações e desmontagem.

 

A questão, para a arquitetura e para o urbanismo, é socioambiental, pois não é possível dissociar os termos. A despeito da teorização, da mensuração dos eventos e efeitos da crise climática, dos diagnósticos sobre o estado da arte essencial, considero que estamos engatinhando nas propostas de soluções efetivas. A geração de resíduos urbanos é um despropósito completo, somente com respeito à proporção do que é considerado entulho; na construção civil, as quantidades são obscenas, revelam uma ausência de saber desconcertante de todos nós. E a vida urbana diária contempla uma inércia em manter índices de consumo e descarte que são um despropósito completo.

 

Há a concepção de cidades e arquiteturas regenerativas, nas quais a convivência natureza–humano e humanos entre si em justiça ambiental e social tem sido discutida, investigada e lançada em propostas, por vezes interessantes, mas ainda não conseguimos alterar a visão de mundo. Isto é um processo civilizatório, político, ético e técnico. A humanidade depende deste salto para garantir a vida no planeta. Mais profundamente, não consiste em um problema intrínseco do campo da arquitetura e do urbanismo sozinhos, mas, do meu ponto de vista, da superação do sistema capitalista, pois não há como combinar processos de acumulação e equilíbrio socioambiental; ou seja, em outras palavras, para mim (seguindo uma ampla literatura nesta direção) não existe desenvolvimento sustentável, pois é um paradoxo antitético associar estes termos.

 

 

IHU – Em sua pesquisa de doutorado, o trabalho da arquiteta Lina Bo Bardi foi objeto de estudo. Que respostas podemos encontrar no pensamento de Lina para o binômio revitalização do espaço público x exclusão social?

 

Vera Santana Luz – Esta pesquisa resultou em um livro sob o mesmo título, “Ordem e Origem em Lina Bo Bardi”, no qual que procurei interpretar raízes do pensamento e obra da arquiteta a partir destas duas chaves de leitura, respectivamente – ordem e origem – em que entreteci aspectos relacionados a uma certa matriz pitagórico-platônica que, no meu entender, comparece na tradição da arquitetura ocidental, mais notadamente no Renascimento, mas que mantém traços na arquitetura moderna, em sua busca por síntese formal essencial via geometria pura. No caso de Lina, considero que este aspecto tem uma força híbrida, pela equivalência que ela estabelece entre a cultura popular e os fundamentos modernos, pela analogia de busca de síntese, essencialidade de meios e racionalidade.

 

Ordem e Origem em Lina Bo Bardi, de Vera Luz (São Paulo: Giostri, 2014) | Imagem: Divulgação

 

Digo equivalência pois não se trata de um gesto erudito que toma de empréstimo motivos populares para, por assim dizer, elevar à condição de erudição. Ao revés, creio que, para Lina Bo Bardi, a cultura popular, em sua pobreza de recursos e riqueza de invenção, seria exatamente o mesmo que buscaria a modernidade na arquitetura e no desenho. Nesse sentido, saliento sua tentativa de constituir uma escola de desenho a partir da arte popular, simultaneamente à restauração do Solar do Unhão, em Salvador, Bahia.

 

Acredito também que, para Lina Bo Bardi, todo espaço seria público, ao fim e ao cabo, com concessões para uma certa vida de intimidade na residência, porém nossa vida se pautando pela condição política de convivência, ou seja, todas as casas seriam “de vidro”, abertas. No aspecto mais específico da revitalização, o conjunto de projetos de Lina Bo Bardi em Salvador, além do Solar do Unhão – a Ladeira da Memória, a casa do Olodum, a casa do Benim, o Teatro Castro Alves – têm forte e indissociável conteúdo popular.

 

 

No Museu de Arte de São Paulo – MASP, a despeito de seu programa e circunstâncias de realização, comparece positivamente esta prerrogativa, um espaço que a arquiteta almejava alcançar o povo – ao revés do que seria o status quo, do povo alcançar a ele, por concessão... Considero que o SESC seja a culminância desse processo, pois foi possível realizar ao paroxismo essa pulsão popular e pública em um equipamento que, com uma porta de entrada sempre aberta (e sem carros!) se escancara como cidade para todo mundo, uma utopia realizada.

 

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