25 Junho 2025
Pensador indígena critica lógica produtivista e alerta para consequências de mundo guiado pela ‘ideologia do progresso’
A entrevista é de Adele Robichez e Lucas Salum, publicada por Brasil de Fato, 24-06-2025.
O líder indígena, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras Ailton Krenak faz críticas ao modo como o conceito de progresso tem sido tratado no Brasil e no mundo. Em conversa com o BdF Entrevista, da Rádio Brasil de Fato, ele aponta que a crença generalizada de que a ciência e a tecnologia vão resolver os problemas criados pelo próprio modelo de desenvolvimento é uma armadilha perigosa.
“Me incomoda um pouco essa quase que automática adesão de muitos grupos sociais a uma ideia de participar do ‘show do progresso’, participar do ‘show do sucesso’, participar desse evento que promete que nós vamos continuar tirando o petróleo, que a gente vai continuar aquecendo a temperatura global e que a gente vai escapar disso com tecnologia, com ciência e tecnologia”, diz.
Autor dos livros Ideias para adiar o fim do mundo e de A vida não é útil, o pensador alerta para o risco de os seres humanos se tornarem “máquinas de fazer coisas”, condicionados à lógica produtivista.
“Se a gente não conseguir distinguir o joio do trigo, vamos continuar incidindo sobre o corpo da Terra com essa disposição cega de produzir coisas. Produzir, produzir… como uma máquina de fazer coisas. E nós não podemos ser uma máquina de fazer coisas”, atesta.
Para o escritor, a lógica da produção e do consumo se tornou uma armadilha que aprisiona a humanidade em um ciclo de destruição. “Essa maquinaria toda vai instituindo um consumo de tudo, inclusive o consumo de nós mesmos. Vamos nos consumindo, uns aos outros”, projeta.
Krenak vê com preocupação o avanço de medidas como o projeto em tramitação no Congresso, chamado “PL da Devastação”, que enfraquece o licenciamento ambiental, e a realização de leilões para exploração de petróleo, inclusive em territórios sensíveis, como a Foz do Amazonas. “Eu convoco as pessoas que ainda são capazes de se afetar com a ideia da vida no planeta para que nos voltemos para proteger a vida e isso não se basta nessa ideia de progresso e desenvolvimento”, diz.
Krenak lembra que o título de seu livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo não foi escolhido por acaso, mas também não deve ser interpretado como um desejo de prolongar um mundo em colapso. “Se nós estamos perdendo a qualidade da vida no planeta, adiar a experiência aqui implicaria em buscarmos outros paradigmas, mudar a nossa própria ideia de que somos uma humanidade com ampla coincidência de propósito”, afirma.
Ele cita o alerta feito pelo secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, durante a última Conferência do Clima, como sinal do fracasso das atuais escolhas globais. “Se o secretário-geral da ONU diz que nós estamos marchando seriamente para o inferno, não sou eu que vou querer adiar essa experiência”, ressalta.
Na entrevista, Krenak também aborda temas como crítica contracolonial, memória, ancestralidade indígena, limites do atual governo e as formas de dominação que ainda sustentam a exploração da natureza e dos corpos.
Quero trazer alguns episódios recentes aqui no nosso território. Por exemplo, a ministra Marina Silva – uma voz incontestável na luta ambiental – foi hostilizada no Congresso Nacional. O mesmo Congresso que avançou com o chamado PL da Devastação, que acaba com o licenciamento ambiental. Ainda falta ser aprovado, mas está indo em frente.
E além disso, tivemos mais um leilão oferecendo áreas para se explorar petróleo, seja no mar ou também dentro do território. Frente a tudo isso, eu fico pensando que parece que o nosso país leu o seu livro e fez uma nova edição, com outro título: Ideias para adiantar o fim do mundo.
Quando eu e meu editor concordamos em deixar o título Ideias para adiar o fim do mundo – que é uma frase extraída dos textos – pensamos no que essa ideia poderia induzir. Poderia até sugerir que o autor acreditava que este mundo está bom, tão bom que a gente quer adiar a duração desta experiência. Mas quando você aproxima a lente, vê que, na verdade, o que estamos pensando é restaurar alguns tecidos deste mundo, convocar quem ainda se afeta com a vida no planeta para cuidar do corpo da Terra.
Cuidar do corpo da Terra para além de consumir. Consumir, consumir, consumir o que se chama de “recursos naturais”. Esse é um erro cultural que nos afeta não só no Brasil, mas quase no mundo todo. Adiar o fim do mundo talvez seja pôr em questão o progresso, e principalmente a partir da pandemia, por em questão a utilidade de muitas coisas que nós investimos e fazemos, mas que só estão erodindo a vida no planeta. Se nós estamos perdendo a qualidade da vida no planeta, adiar a experiência aqui implicaria em a gente buscar outros paradigmas. Mudar a ideia de que somos uma humanidade com ampla coincidência de propósito, todos indo para o mesmo lugar.
Na última conferência do clima, o secretário-geral da ONU, António Guterres – arrasado com a ideia dos sheiks de continuar perfurando a Terra em busca de petróleo até 2050, quando só então pretendem iniciar a transição – disse: “Se seguirmos nessa batida, estamos caminhando celeremente para o inferno.” Ora, se o secretário da ONU diz isso, não sou eu que vou querer adiar essa experiência. Eu convoco as pessoas que ainda são capazes de se afetar com a ideia da vida no planeta a proteger a vida e dar um basta nessa ideia de progresso e desenvolvimento.
Eu confesso que me incomoda essa adesão automática de muitos grupos sociais a uma ideia de participar do “show do progresso”, ao “show do sucesso”, como se fosse um evento em que todo mundo vai continuar tirando petróleo, aquecendo a temperatura global – e, no final, a gente escapa disso tudo com tecnologia, ciência e inovação.
Estou preocupado com o efeito quase místico que ciência e tecnologia estão imprimindo no nosso modo de pensar o mundo.
Me incomoda ver a produção da agricultura familiar – especialmente aquela mais cara, feita com orgânicos – sendo colocada no balcão como se fosse commodity, como se pudesse competir com o agronegócio. Se a gente tiver mais máquina da China, se tiver mais tecnologia, também vamos performar de maneira impressionante, também vamos ter progresso.
Eu estou questionando o progresso em qualquer termo. Dentro da aldeia, no mercado de commodities, no show de produções do agronegócio – eu questiono isso.
Tem gente que aplaude o Brasil exportar grãos. Mas eu vejo como falta de entendimento: estamos exportando água, solo e trabalho mal remunerado. Ou a própria banalização do trabalho que produz alimento e bens que hoje se chamam “do agro”, que saem de dentro desse repertório de maneira oportunista, a ponto de dizerem que o guaraná dos Sateré-Mawé é pop, é o agro.
É tudo capturado por uma agência de publicidade ilimitada, que transforma tudo em produto. A produção dos quilombos, das aldeias, dos assentamentos rurais – vira tudo agro.
Se a gente não conseguir distinguir o joio do trigo, vamos continuar incidindo sobre o corpo da Terra com essa disposição de produzir coisas. como uma máquina de fazer coisas. E nós não podemos ser uma máquina de fazer coisas.
Como diz sua outra obra, A vida não é útil. Não é para isso que a gente tá aqui. Ailton, sobre essa ideia de desenvolvimento, eu fico pensando que ela foi profundamente incrustada no nosso país, especialmente no período da ditadura militar – sobretudo na região amazônica, com mega projetos como a Transamazônica, que se multiplicaram, embora muitos tenham fracassado ainda naquele período. Você acha que, desde a redemocratização, algum governo conseguiu romper com essa lógica desenvolvimentista, especialmente para a Amazônia?
Talvez a gente precise olhar um pouco antes do golpe militar de 1964. Talvez seja importante lembrar quando se instituiu uma dinâmica interna de modernização, com a transferência da capital do Rio de Janeiro para o Cerrado, para o Planalto Central do Brasil.
O grande herói dessa travessia foi Juscelino Kubitschek. O Brasil, profundamente incorporado à ideia dos Estados Unidos no esforço de reconstrução pós-guerra, se alinhou ao propósito de se tornar um pátio para montadoras de automóveis. E isso implicava fazer estrada.
É aquela pergunta: quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha? Quando o Brasil se alinhou com o propósito capitalista do império americano de reproduzir aqui no nosso território as experiências “gringas”, a gente se abriu à siderurgia, à indústria automobilística e à construção de estradas. O que a ditadura fez foi apenas se apropriar desse repertório modernista.
Juscelino escapou da crítica, porque muita gente o trata como uma espécie de “avatar”. Mas ele foi o mordomo do capitalismo que abriu a porta para que arrombassem nosso território, nossa economia, e introduzir aqui ideias modernistas, ideias tão avançadas que deixam a gente no passado.
A maneira de construir Brasília, aquele monumento impressionante, que deixava a América Latina olhando para a gente pensando: “Nossa, esse país de língua portuguesa é estranho mesmo, é todo moderno, é futurista. Ele vai deixar a gente para trás, os Andes, a Colômbia, a Bolívia, a Argentina. Todos ficaram com medo do “bafo jusceliniano”.
Só nós, brasileiros – e muitos historiadores brasileiros – não viram isso. Continuamos tratando Juscelino como se fosse insípido. Ele fez Brasília e não deixou rastro. Mas foi naquele período que a gente começou a fazer crescer a nossa dívida eterna, a nossa dívida externa, quando o Brasil começou a criar uma dívida monumental, construindo uma capital totalmente planejada.
Brasília empurrou povos como os Carajá e os Xavante para longe, e botou uma máquina de fazer modernidade no Planalto. Os servidores públicos passaram a sair do Rio para passar a semana em Brasília – até hoje temos essa farra de parlamentares e autoridades públicas que trabalham quatro dias na capital e o resto do tempo estão viajando por aí.
A gente normatizou um modo de governança artificial, onde as pessoas do serviço público estão acima da vida comum do cidadão. O cidadão é um pária, e os servidores se constituem em uma espécie de casta, com juízes e ministros ganhando R$ 600 mil ou R$ 1 milhão por mês.
Essa perversão não nasceu com a ditadura militar. O que a junta militar fez foi reunir todos esses elementos de “mau caráter” da transição agrícola brasileira para virarmos um país industrial a serviço do império. E fizemos isso durante a ditadura a rigor: arrebentamos com a Amazônia, enfiamos a Transamazônica e matamos todo mundo que estava no caminho e produziu um efeito contínuo de “progresso interno” à realidade do país.
O Brasil virou um laboratório de experimentos estrangeiros. Tanto que foi aqui que o uso de agrotóxicos se expandiu desde a década de 1970, ao ponto de hoje sermos o maior importador de venenos do planeta – e também o que mais usa, em volume aplicado por área.
Estamos envenenando os corpos d’água de superfície, as nascentes, os mananciais. Há quem diga que já estamos ameaçando até os aquíferos – bolsas subterrâneas de água no corpo da Terra.
Se estamos ameaçando até as águas subterrâneas com uma agricultura criminosa, eu me pergunto: por que o Brasil, como instituição, e o Estado brasileiro, como gestor do território, não pode interferir nesse processo, estabelecendo um limite. Recebemos veneno, pagamos por ele e ainda isentamos esses produtos de impostos.
Ailton, tudo isso me leva à próxima questão. É sobre a avaliação do atual governo, especialmente no que diz respeito à pauta ambiental. Essa mesma dupla, Lula e Marina Silva, esteve à frente no início dos anos 2000 e proporcionou resultados formidáveis no combate ao desmatamento. Houve reduções impressionantes, louváveis, e de certa forma isso se repetiu agora: também vimos números satisfatórios na redução do desmatamento, inclusive no Cerrado, que sempre foi um desafio. Mas, ao mesmo tempo, no ano passado, todo mundo ficou atônito com as fumaças e o fogo tomando conta do país – em regiões que nunca haviam queimado antes, e de forma brutal. Qual o desafio extra que essa mesma dupla – Marina e Lula – não está conseguindo superar? Por que não conseguem frear essa destruição ambiental que agora vem tomando outras proporções por meio do fogo, dos incêndios?
A gente não pode ignorar dois eventos de enorme relevância que aconteceram “no meio do caminho” – como dizia Drummond. Aliás, eu costumo dizer que Carlos Drummond de Andrade é meu escudo invisível. Algumas observações dele sobre o Brasil e os brasileiros funcionam como uma janela para enxergar certas questões.
A pedra no meio do caminho entre o primeiro e o segundo mandato do Lula, um desses eventos dramáticos, foi a pandemia.
A pandemia foi desorganizadora as forças da sociedade brasileira, coincidindo com o mandato de um grupo de pessoas que tomou o aparelho do Estado com o propósito de usá-lo contra a população brasileira, contra o território, como uma máquina de guerra.
Foi uma máquina contra a nossa possibilidade de nos organizar como sociedade, cindindo a sociedade entre bolsonaristas e petistas.
Outro fenômeno social da maior relevância nesse período foi o enfraquecimento de algumas práticas sociais que se organizavam em comunidades de base, herdeiros de um engajamento amplo dos católicos com a questão social, e a entrada dos evangélicos. É como se você tivesse duas bandas tocando. Saiu a banda que historicamente era afetada pela CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] da pastoral da terra, a pastoral indigenista, e entra uma trupe que é Silas Malafaia na cabeça: os fazendeiros, aqueles caras de chapelão. É o agronegócio incorporado em corpo e espírito, assaltando o poder político descaradamente, instituindo a bancada da Bíblia, da bala e do boi.
Se temos um assalto desse à vida brasileira e queremos que Marina e Lula possam estar de novo num lugar de representação democrática da vida brasileira… só se fôssemos muito ingênuos. Aquela gangue que passou antes destruiu o aparelho do Estado e entregaram um buraco para o Lula. Ou seja, elegemos um presidente a quem não é permitido governar.
Desde o primeiro dia, quando o Lula subiu a rampa com o Raoni, com outras lideranças, com aquela fé inabalável de que o Brasil ia dar certo – o “Brasil somos nós, os brasileiros” – eu assisti aquilo tudo com um pouco de desconfiança do excesso de otimismo. Otimismo demais faz mal à saúde. Deveria ter um aviso no pacote dos otimistas: “Cuidado: otimismo demais pode causar danos.”
Naquele caso, o festejo se estendeu até sermos surpreendidos por um assalto, um golpe, com aqueles ratos predando o corpo do aparato estatal, como se estivessem invadindo um país estrangeiro, com ódio, com raiva. Se pudessem, teriam destruído a estátua da Justiça, que foi rabiscada. Mas o desejo era quebrar. Assim como quebraram muitas outras estruturas simbólicas símbolos da República, do Congresso, do STF – uma banalização da violência sem qualquer propósito.
Alguém pode dizer que foi um caos. Outros dirão que foi uma reação popular. Mas agora, com generais no banco dos réus e o próprio articulador do golpe – o sujeito que ocupou o lugar de presidente da República – dizendo que “não viu, não estava lá”, que não se chama Genésio…
Mas essa podridão que tomou conta da vida política brasileira está impedindo o Lula de governar. Por mais que ele consiga performar na política internacional, quando aterrissa em Brasília, é sabotado. Sabotado por todo mundo, por toda aquela escória de gente que foi assimilada pela máquina de governo, e que muitos deles são bandidos. Os caras que estão à frente da Abin [Agência Brasileira de Inteligência], a maioria é de bolsonaristas delinquentes, criminosos. Eles ficaram lá, eles estão com emprego. Estão bem empregados para dar golpe.
Temos um gabinete da presidência da República que não consegue investigar os funcionários do Estado que sabotam o governo. A gente só descobre depois.
Faço uma defesa contraditória do mandato da Marina e do Lula. Elegemos os dois para um mandato, mas foram bloqueados pela estrutura de poder para não governar. Por isso, nem consigo cobrar além do que eles estão entregando.
Tenho o maior respeito pela Marina. Sou solidário a ela diante de uma situação de rendição em um governo majoritariamente formado por empresários oportunistas, que transformaram tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado em aparelhos da direita.