A América Latina é ecumênica? Alianças e tensões no universo cristão. Artigo de María Pilar García Bossio

Foto: Eclesia News

26 Junho 2025

Em uma América Latina cuja composição religiosa vem mudando, mas que continua sendo majoritariamente cristã, surge a pergunta sobre a relação entre as diferentes igrejas. Por um lado, a Igreja Católica, sob o papado de Francisco, tem promovido o diálogo teológico, espiritual, social e pastoral com as igrejas protestantes, embora esse diálogo tenha encontrado um limite nas igrejas pentecostais. No entanto, também se observa um “ecumenismo estratégico” entre católicos conservadores e igrejas pentecostais contra as reformas progressistas dos últimos anos.

O artigo é de María Pilar García Bossio, publicada por Nueva Sociedad, maio/junho de 2025.

María Pilar García Bossio é doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires (UBA) e bolsista de pós-doutorado do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet) da Argentina. É professora na Universidade Católica Argentina e na Universidade Torcuato Di Tella, além de integrar o conselho diretivo da Associação de Ciências Sociais da Religião da América Latina (ACSRAL).

Eis o artigo.

Introdução

Se a América Latina foi considerada uma "região católica", o fato é que nela coexistem uma diversidade de crenças e formas de se relacionar com o mundo espiritual, algo que se tornou mais evidente no espaço público nas últimas décadas. O crescimento do número de pessoas que se identificam como “sem religião”, a diminuição do número de católicos e o aumento das igrejas evangélicas – sobretudo as pentecostais – transformaram a maneira como pensamos a religião e seu lugar no espaço público no subcontinente latino-americano.

Ao mesmo tempo, uma série de acontecimentos voltou a atrair a atenção de especialistas e do público em geral para a dimensão religiosa, gerando novas perguntas que nem sempre foram respondidas com a complexidade necessária para compreender uma região tão rica em expressões de fé. A eleição do primeiro papa latino-americano, o crescimento da participação cristã evangélica na arena política, os debates em torno do avanço dos direitos sexuais e reprodutivos – que entram em tensão com moralidades religiosas –, e o fortalecimento de novas direitas que estabelecem vínculos com a religião distantes de suas formas tradicionais, incentivaram a reflexão sobre o lugar do religioso na vida social, bem como sobre o papel que cabe ao Estado na regulação dessas questões.

Pablo Semán e Renée de la Torre resumem esses desafios em cinco situações que indicam uma possível crise: a tendência à diversificação religiosa sem uma cultura pluralista; a entrada de grupos religiosos na esfera pública e os questionamentos que fazem às formas tradicionais de relação com o Estado; o esforço das religiões para impor seus valores morais como universais (inclusive amparando-se na liberdade religiosa); a vontade política majoritária que ecoa esses discursos de maneira a perpetuar visões conservadoras; e o uso instrumental da religião por líderes políticos para aumentar sua popularidade [1]. Dessa forma, nos deparamos com um desafio ao pensar o futuro da religião na América Latina, ao qual se soma, atualmente, a pergunta sobre a nova etapa que a Igreja Católica inicia após o papado de Francisco (2013-2025).

Essas transformações ocorrem, contudo, em um subcontinente que segue sendo majoritariamente cristão, embora a hegemonia simbólica do catolicismo pareça ter entrado em crise. Por isso, neste artigo, buscamos abordar as transformações em curso a partir de uma perspectiva relativamente nova: a das múltiplas relações que se estabelecem entre diferentes formas de cristianismo e as consequências que essas relações podem ter para o presente e o futuro. Em termos teológicos, essas relações são englobadas sob a categoria de ecumenismo, sendo o diálogo inter-religioso utilizado para se referir ao contato com religiões não cristãs, sejam elas de tradição abraâmica (como o judaísmo e o islamismo) ou de outras crenças. Consideraremos o ecumenismo em um sentido amplo – como o diálogo entre cristãos – e também em um sentido mais restrito, em que as próprias instituições religiosas usam essa categoria para refletir sobre as antigas e novas formas de vínculo entre religiões há muito presentes no continente, mas cuja correlação de forças está mudando rapidamente.

Números e cenários

Se observarmos os dados disponíveis sobre filiações religiosas na América Latina nos últimos 50 anos e considerarmos todas as igrejas cristãs (ou seja, todas aquelas que creem em Jesus como filho de Deus e na Bíblia como livro fundamental), pareceria que quase não houve mudanças: havia 94,3% de cristãos em 1970 contra 92,1% em 2020 – apesar de a população ter crescido consideravelmente, passando de cerca de 288 milhões para mais de 664 milhões. No entanto, quando desagregamos a grande categoria “cristãos”, percebemos uma transformação importante: o número de católicos diminui, enquanto o de evangélicos cresce de 7,7% da população (22 milhões) em 1970 para 18,2% (121 milhões) em 2020 [2].

Outras pesquisas apresentam percentuais menores de cristãos, pois identificam um aumento no número de pessoas sem religião, embora confirmem a tendência de queda do catolicismo e de crescimento das igrejas evangélicas. Assim, o Pew Research Center identificava, em 2014, 88% de cristãos (69% católicos e 19% evangélicos) e 8% de pessoas sem religião [3]; já a pesquisa de 2024 do Latinobarómetro encontrou 73% de cristãos (54% católicos e 19% evangélicos) e 19% de pessoas sem religião [4]. Esses dados também apresentam variações regionais dentro do subcontinente, com países onde o catolicismo ainda é majoritário e outros onde a maioria é evangélica ou sem religião, como é o caso do Uruguai. Além disso, se tomarmos o batismo como indicador de filiação à Igreja Católica (considerando que, na América Latina, muitas pessoas ainda realizam esse rito mais por tradição social do que por convicção religiosa), podemos observar que, mesmo sendo a região com os índices mais altos do mundo, esses números vêm caindo – especialmente em países como Brasil e Chile, que historicamente tiveram forte presença católica [5].

Da mesma forma, o crescimento das igrejas evangélicas ocorre de maneira diferenciada, tanto entre países quanto entre os tipos de igreja. É necessário distinguir aqui entre: as igrejas protestantes, originadas diretamente da Reforma e cuja chegada à região está associada às ondas migratórias do final do século XIX e início do século XX; as igrejas evangélicas do começo do século XX, como a Igreja Batista, que, apesar de sua longa trajetória na região, inicialmente não tiveram grande representatividade demográfica; e, por fim, as igrejas pentecostais, surgidas em sua maioria após o movimento de renovação espiritual nos Estados Unidos, no final do século XIX, e que, com algumas exceções, passaram a se estabelecer com mais força na América Latina a partir de meados do século XX. Dessas últimas e de suas múltiplas renovações – que deram origem às igrejas neopentecostais – derivam também diversas igrejas locais, algumas das quais mantêm tensões com outras igrejas semelhantes, como é o caso da Igreja Universal do Reino de Deus no Brasil. São justamente as igrejas pentecostais e neopentecostais que mais cresceram nas últimas décadas, chegando a representar 56% dos cristãos no Brasil, 52% na Guatemala, 47% em Porto Rico, 42% na Guiana e 40% no Chile [6].

Essas transformações ao longo dos últimos 50 anos modificam a forma de pensar a dimensão religiosa na América Latina, não apenas pelas mudanças nas adesões e práticas religiosas das pessoas, mas também porque afetam a percepção da religião no espaço público e seu lugar na vida cotidiana – tanto para os crentes quanto para os não crentes.

Uma região que se diversifica… e dialoga?

Apesar dessas mudanças no cenário religioso, a Igreja Católica continua exercendo uma influência importante na América Latina, especialmente quando se trata da relação com o Estado e do imaginário social sobre o que se espera de uma religião no espaço público. Independentemente do grau de laicidade dos marcos legais – ou seja, de como as constituições nacionais e outras leis moldam a relação entre Estado e religião – dez países latino-americanos ainda mantêm uma concordata com a Igreja Católica. O peso do catolicismo no processo de conquista colonial e na formação das identidades nacionais não pode ser subestimado. De certa forma, a abertura institucional dos Estados latino-americanos a outras religiões coincide com a própria flexibilização ecumênica da Igreja Católica. Por isso, para compreender a diversificação dos acordos institucionais, é preciso também considerar as mudanças teológicas que a Igreja sofreu nos últimos 60 anos e sua influência nos caminhos percorridos pela região.

O Concílio Vaticano II (1962-1965) promoveu uma renovação interna na Igreja Católica que, em muitos aspectos, teve um impacto mais duradouro em suas relações com o “mundo” fora da instituição eclesiástica do que dentro dela. Os documentos Unitatis redintegratio, sobre o ecumenismo, e Nostra aetate, sobre o diálogo inter-religioso, marcaram uma nova forma de pensar os vínculos com outras religiões e, como consequência não intencional, possibilitaram a construção de novas pontes inter-religiosas em muitos países com forte presença católica. Na América Latina, os documentos das Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano e Caribenho realizadas em Medellín (1968) e Puebla (1979) representaram uma abertura do catolicismo local com características próprias, incluindo a valorização do diálogo ecumênico – o que deu origem a centros e iniciativas de estudo católico-evangélicos em todo o subcontinente.

Nas décadas marcadas por fortes convulsões políticas, os espaços ecumênicos revelaram a face progressista da Igreja Católica e de muitas igrejas protestantes, nas quais, em alguns casos, tanto hierarcas quanto pastores, padres e leigos se organizaram e se manifestaram em defesa dos direitos humanos. Em algumas situações, essas iniciativas incluíram também outras religiões, especialmente o judaísmo. Exemplos disso são o Comitê de Cooperação para a Paz no Chile (1973-1975); o Movimento Ecumênico pelos Direitos Humanos (MEDH) na Argentina (criado em 1975); e a participação de líderes religiosos nos relatórios Nunca Mais da Argentina (1983) e Brasil: Nunca Mais (1985), ambos com presença católica, protestante e judaica. Esse impulso, porém, foi limitado pela guinada conservadora do Celam (Conselho Episcopal Latino-Americano) a partir de 1992, que se estendeu até o início do século XXI.

Com a eleição de Jorge Bergoglio como papa – o primeiro latino-americano a liderar a Igreja Católica – surgiu uma euforia em torno de uma prometida renovação que, embora tenha acontecido, teve um alcance menor do que o esperado. Apesar de Francisco ter promovido uma reestruturação da Igreja e colocado em destaque temas como justiça social, migração, direitos das minorias e diálogo inter-religioso, o número de católicos não cresceu significativamente durante seu papado, pelo menos na América Latina. Inclusive, sua imagem altamente positiva nos primeiros anos encontrou limites: foi considerado moderado por setores progressistas e quase um herege pelos segmentos mais conservadores da Igreja.

Ainda assim, a trajetória anterior de Bergoglio no diálogo inter-religioso se traduziu em políticas concretas para ampliar o vínculo com outras igrejas cristãs. Ele se reuniu diversas vezes com líderes ortodoxos, protestantes e evangélicos e, em 2018, visitou o Conselho Mundial de Igrejas – uma das principais organizações globais de igrejas cristãs (da qual a Igreja Católica não faz parte, embora mantenha um grupo de trabalho conjunto que se reúne anualmente desde 1965). Entre os eixos da encíclica Fratelli tutti sobre fraternidade social (de outubro de 2020), Francisco incluiu o diálogo ecumênico e inter-religioso, encerrando o documento com uma oração ecumênica e outra ao Criador. Em dezembro de 2020, o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos publicou o documento O bispo e a unidade dos cristãos: Vademécum ecumênico, que afirma ser obrigação dos bispos buscar a unidade entre os cristãos. O texto propõe quatro tipos de interação: o ecumenismo espiritual, o diálogo da caridade (social), o diálogo da verdade (teológico) e o diálogo da vida (pastoral e cultural) [7]. Dessa forma, convoca toda a estrutura eclesiástica a se colocar a serviço do diálogo com outras igrejas cristãs, não apenas no campo teológico, mas também em ações sociais e culturais.

As igrejas evangélicas, por sua vez, mantêm na América Latina suas próprias redes de ação conjunta, algumas voltadas ao diálogo ecumênico, mas nem sempre envolvendo a Igreja Católica – como é o caso do movimento Justapaz, na Colômbia, impulsionado pela Igreja Menonita. No caso das igrejas protestantes, o ecumenismo em certas situações é uma necessidade transformada em virtude, já que, por serem igrejas pequenas, precisam do diálogo para fortalecer sua organização logística e a construção comunitária. Um marco importante nesses diálogos interprotestantes, na região do Rio da Prata, foi o Instituto Superior Evangélico de Estudos Teológicos (Isedet), com sede em Buenos Aires, que em 1969 unificou a Faculdade Evangélica de Teologia e a Faculdade Luterana de Teologia – incluindo nove igrejas protestantes [8] – e se tornou referência com sua biblioteca teológica. O Isedet encerrou suas atividades em 2015.

Assim, a Igreja Católica e as igrejas protestantes mantiveram um diálogo fluido especialmente a partir da década de 1960, quando a abertura católica encontrou igrejas que já vinham atuando em parceria entre si. Isso se refletiu nas grandes linhas institucionais, mas principalmente no dia a dia de leigos e líderes religiosos de níveis intermediários, que compartilhavam certos princípios relacionados ao bem comum com forte conteúdo social e à busca de uma voz latino-americana para essas igrejas – todas oriundas, em última instância, de distintos projetos evangelizadores.

Essa dinâmica, no entanto, encontra seus limites nas igrejas pentecostais e neopentecostais. A forma de construção dessas igrejas, que privilegia o chamado do Espírito Santo sobre a formação teológica, permitiu a proliferação de pequenas organizações com discurso centrado na guerra espiritual e na conversão. Embora as igrejas pentecostais e neopentecostais mantenham diálogo entre si, esse contato geralmente não se estende às outras igrejas cristãs. Em geral, elas não fazem parte do Conselho Mundial de Igrejas, embora participem de redes regionais e globais onde as igrejas fundadas nos Estados Unidos – por serem mais antigas – costumam ter posição de destaque [9]. Outras igrejas evangélicas, como a batista, têm tendido a se aproximar das dinâmicas pentecostais e a atuar em conjunto com elas.

As igrejas pentecostais e neopentecostais crescem, na maioria dos casos, de baixo para cima – ou seja, a partir das comunidades locais e não de projetos pastorais centralizados – o que lhes garante enorme capilaridade territorial, mas dificulta os diálogos institucionais mais convencionais. Sua teologia da prosperidade – que associa a conquista pessoal, especialmente a econômica, a um sinal de salvação –, seu foco na conversão individual em detrimento do compromisso social e suas posições conservadoras em relação à moral sexual têm dificultado o diálogo com outras igrejas cristãs. Costumam se reunir em conselhos pastorais locais, com critérios mais territoriais do que teológicos. A partir desses espaços, impulsionaram em vários países latino-americanos a criação de secretarias ou departamentos de assuntos religiosos nos governos locais, como forma de ganhar legitimidade social e construir identidade política [10].

As alianças menos esperadas

Dentro da Igreja Católica, existe um setor particularmente resistente ao diálogo ecumênico e inter-religioso: os grupos mais conservadores, que geralmente veem todas as igrejas cristãs fora do catolicismo como uma distorção da verdadeira Igreja de Cristo. Mas, de forma aparentemente paradoxal, esses grupos têm encontrado nas igrejas pentecostais e neopentecostais aliados inesperados frente à ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos, na defesa da família tradicional, na resistência ao reconhecimento de direitos da comunidade LGBTQIA+ e em uma oposição ferrenha à legalização do aborto. Com o apoio de influenciadores conservadores, pentecostais, neopentecostais e católicos se unem na oposição à chamada “agenda woke” e participam ativamente de projetos políticos de direita. Isso pôde ser observado nos apoios a Jair Bolsonaro no Brasil, ao golpe contra Evo Morales na Bolívia em 2019, e no apoio de algumas figuras religiosas ao projeto político de Javier Milei na Argentina. Essa tendência pode se consolidar se olharmos para o que acontece nos Estados Unidos, onde Donald Trump – com vínculos históricos com a teologia da prosperidade pentecostal – tem como vice-presidente J.D. Vance, um católico conservador convertido recentemente, cujo discurso está distante dos princípios católicos de inclusão das minorias (como o próprio Papa Francisco apontou em uma de suas últimas intervenções públicas).

Temos aqui, portanto, uma espécie de “ecumenismo estratégico”: essas igrejas e grupos cristãos não estão dispostos a estabelecer um diálogo teológico, espiritual ou pastoral voltado à unidade – como propõe o ecumenismo papal ou o das igrejas protestantes –, mas entendem que alianças pontuais podem fortalecer sua presença na esfera pública e política. Assim, se no púlpito e nos cultos a inimizade continua firme (e até reforçada como forma de afirmação identitária), no espaço público estabelece-se uma espécie de trégua que permite um combate conjunto contra um mundo visto como contrário a uma moralidade compartilhada. Um exemplo disso é o uso do termo “cristofobia” (em eco a termos progressistas como homofobia ou islamofobia) para denunciar uma suposta perseguição à identidade cristã por parte de setores progressistas – algo que, embora não tenha respaldo em dados empíricos, reforça a sensação de desproteção da própria identidade frente ao Estado e fortalece as alianças entre setores conservadores [11]

De modo geral, essas ações são reativas frente aos avanços progressistas [12], utilizando os canais institucionais e democráticos para se manifestar – o que Juan Marco Vaggione chama de “secularismo estratégico” [13]. Assim, as marchas pró-vida surgem como reação à “marea verde” feminista, e o movimento “Com meus filhos não se meta”, nascido no Peru, rejeita os projetos de educação sexual integral nas escolas. Essas reações constroem uma narrativa que carrega de conteúdo religioso os papéis de gênero, situando-os nas posições mais conservadoras possíveis, e defendem a família nuclear heterossexual como única unidade social legítima, ao mesmo tempo que denunciam conspirações globais que tentariam destruir uma ordem social “natural” – uma visão que, paradoxalmente, está bastante distante da realidade da maioria das famílias latino-americanas.

No entanto, esse “ecumenismo estratégico” não gera ações de longo prazo para além dessas mobilizações reativas. As tentativas de formar partidos políticos capazes de vencer eleições ainda não prosperaram, e, geralmente, nesses casos, quem assume a liderança são pastores de igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais, com apoio de alguns setores católicos – mas sem que se configurem alianças estáveis ou projetos de governo compartilhado entre os dois grupos. Nesse sentido, uma barreira a um apoio mais aberto por parte do catolicismo tem sido a política de diálogo e abertura promovida pelo Papa Francisco, que também influenciou as posições institucionais das Conferências Episcopais latino-americanas e impediu uma aliança explícita das hierarquias católicas com posições políticas conservadoras – o que marca uma ruptura em relação a tendências que já foram significativas em outros momentos da história do catolicismo na região.

Uma América Latina mais ecumênica?

Ao observar o subcontinente latino-americano, encontramos hoje um cenário diferente do que havia 40 ou 50 anos atrás: a face religiosa da América Latina está mudando. Embora essa mudança seja menos radical do que se esperava quando a presença evangélica irrompeu no espaço público, o fato é que seu crescimento sustentado, junto com a crescente identificação das pessoas como “sem religião”, está provocando uma mudança em nosso senso comum latino-americano.

James Beckford diz que em cada país existe um imaginário sobre o que é “normal” (taken for granted) quando imaginamos o que é religião [14], e propõe que, em uma sociedade que se busca pluralista, essa normalidade deveria nos permitir ampliar os horizontes diante de uma única forma de prática ou identificação religiosa. Na América Latina, durante as últimas décadas, vem se transformando a maneira como imaginamos “normalmente” o que é uma religião, o que é ser religioso e qual o lugar do religioso no espaço público. Os 500 anos de presença católica no continente americano moldaram nossa forma de ver a questão, mas claramente isso está mudando. Se o líder religioso era o padre, o lugar de culto era a igreja católica com suas imagens de santos, da Virgem e do Cristo crucificado, a festa religiosa era a procissão, e o lugar no espaço público era a atuação na educação, saúde e ação social, hoje esse imaginário se fragmenta e já não é a única forma possível de ver as crenças. Poderíamos até afirmar que essa visão está tão instalada em nosso senso comum sobre religião que muitos evangélicos, sobretudo recém-convertidos, não se referem às suas crenças como religiosas, mas como uma “forma de vida”, uma “paixão”, algo que não pode ser contido nos limites institucionais [15].

É isso que está mudando. No entanto, ao contrário da mencionada promessa de pluralismo de Beckford, essa mudança está ocorrendo de formas que podem criar novos imaginários, mas com tom conservador. Mesmo estando em uma região cristã como a América Latina e com o número de católicos ainda alto na maioria dos países, a secularização e as mudanças na composição religiosa estão apresentando novos desafios.

A presença pentecostal altera os vínculos com o espaço público, tanto na participação política quanto no uso simbólico dos âmbitos seculares e religiosos. Por sua vez, se a Igreja católica historicamente incentivou a participação de leigos comprometidos na política, desencorajou-a entre seus sacerdotes. Os complexos entrelaçamentos entre o poder eclesiástico e o poder político na América Latina se construíam mais no lobby do que nas urnas. Quando as hierarquias eclesiásticas se aliaram ao poder, fizeram isso a partir de lobbies e pressões externas, enquanto que, quando as bases (compostas por religiosos e leigos) resistiram ao poder político vigente, fizeram isso a partir de estruturas já existentes ou apelando à sua condição de cidadãos, mais do que à sua identidade como católicos. Essa dinâmica se estende, embora com menor capacidade de pressão, às igrejas protestantes, onde a participação na política não é incomum, mas sempre foi em segunda linha e na gestão institucional. As igrejas pentecostais e neopentecostais vêm romper com essa dinâmica, pois sua participação frequentemente tem como referência os pastores, e, quando envolve fiéis, ocorre com forte identificação como evangélicos e com um discurso combativo contra religiões e crenças diferentes do cristianismo (e, em alguns casos, até contra a Igreja católica).

Embora as igrejas pentecostais e neopentecostais tenham mantido uma persistente ação social e realizado um intenso trabalho em prisões e na prevenção e recuperação de dependências, sua teologia da prosperidade também altera parte do senso comum sobre o lugar do religioso na vida privada e pública. Se a teologia católica denuncia a injustiça, mas faz do desprendimento do material um valor, a teologia pentecostal rejeita a pobreza e reivindica para si o bem-estar material como sinal de salvação. Isso também altera as dinâmicas políticas, os recursos simbólicos e discursivos, e permite compreender uma certa afinidade eletiva entre algumas dessas igrejas e projetos liberais que valorizam o indivíduo acima do coletivo.

Os diálogos possíveis entre igrejas encontram outra limitação no dia a dia: em um mercado religioso que encolhe diante do crescimento das pessoas que se identificam como “sem religião”, e frente às adesões sociais com baixa prática religiosa, há uma batalha silenciosa. O catolicismo busca conservar fiéis, as igrejas evangélicas, convertê-los. Se no caso dos pastores a disputa com o catolicismo é aberta, e até em igrejas como a Igreja Universal do Reino de Deus houve ataques a símbolos católicos, no caso do catolicismo essa batalha costuma ser mais sutil e visa sobretudo reconhecer o “verdadeiro” impulso religioso diante do “perigo das seitas”.

Dessa forma, os diálogos possíveis estão sempre em tensão. Enquanto o diálogo entre a Igreja Católica e as igrejas protestantes costuma ser mais fluido, enquadrando-se em um projeto teológico, espiritual, cultural e simbólico ecumênico, o diálogo com as igrejas pentecostais ocorre majoritariamente no contexto do “ecumenismo estratégico”, que cria alianças frágeis e circunstanciais.

Embora as projeções estatísticas não prevejam uma mudança radical na composição religiosa nos próximos anos, ao menos em relação às identificações cristãs, estamos diante de uma nova composição do religioso no espaço público, que altera aquilo que considerávamos “normal” ao pensar o que é o religioso, como deve ser visto e como deve se comportar.

A morte do papa Francisco traz também novos questionamentos, pois deixa em aberto a pergunta sobre como a Igreja católica continuará o caminho ecumênico. Se durante seu papado o ecumenismo não era uma opção para os bispos, mas um compromisso que deviam assumir – e que nem sempre se cumpria –, será preciso ver o que acontecerá com as linhas pastorais de Leão XIV.

Nas ciências sociais, só nos resta observar como se desenvolverá essa mudança de cenário nos próximos anos e quais serão as estratégias das diferentes igrejas cristãs na construção do rosto religioso latino-americano, enquanto, ao mesmo tempo em que se produzem mudanças nas múltiplas facetas do cristianismo, avança a indiferença religiosa. Pelas características do continente, o que acontecer com a Igreja católica será fundamental, pois marcará o pulso dos diálogos possíveis “de cima para baixo”, enquanto as possíveis alianças entre igrejas pentecostais e neopentecostais, e destas com o catolicismo conservador, poderão mudar o jogo “de baixo para cima”.

Referências

[1] R. de la Torre y P. Semán (eds.): Religiones y espacios públicos en América Latina, CLACSO / CALAS, Buenos Aires-México, 2021. Un resumen de la introducción de este libro se encuentra en "Religiones y espacios públicos en América Latina" en Nueva Sociedad - edición digital, 5/2021, disponible en nuso.org.

[2] Gina A. Zurlo: "A Demographic Profile of Christianity in Latin America and the Caribbean" en Kenneth R. Ross, Ana María Bidegain y Todd M. Johnson (eds.): Christianity in Latin America and the Caribbean, Edinburgh UP, Edimburgo, 2022. [Hay edición en español: Cristianismo en América Latina y el Caribe, Hendrickson Academic, Peabody, 2024]

[3] Pew Research Center: "Religión en América Latina. Cambio generalizado en una región históricamente católica", 13/11/2014.

[4] Corporación Latinobarómetro: Informe 2024. La democracia resiliente, Santiago de Chile, 2024.

5] Consejo Episcopal Latinoamericano y Caribeño (CELAM): "La misión de la Iglesia en los países de América Latina", Documento de Trabajo CELAM, 2023.

[6] G.A. Zurlo: ob. cit.

[7] A. M. Bidegain: "The Future of Christianity in Latin America and the Caribbean" en K.R. Ross, A.M. Bidegain y T.M. Johnson (eds.): ob. cit.

[8] Iglesia Anglicana, Iglesia Evangélica Discípulos de Cristo, Iglesia Evangélica del Río de la Plata, Iglesia Evangélica Luterana Unida, Iglesia Luterana Dano-Argentina, Iglesia Evangélica Metodista Argentina, Iglesia Evangélica Valdense, Iglesia Presbiteriana San Andrés e Iglesias Reformadas en Argentina.

[9] Esto ha contribuido a un prejuicio de la opinión pública que asocia a estas iglesias con intentos de la Agencia Central de Inteligencia (CIA, por sus siglas en inglés) de intervenir en América Latina, lo que debe ser tomado con recaudos.

[10] M.P. García Bossio: "Pentecostalismo y política en Argentina. Miradas desde abajo" en Nueva Sociedad No 280, 3-4/2019, disponible en nuso.org; Felipe Gaytan Alcala: "We Are Not One, We Are Legion: Secular State in Mexico, Local Dynamics of a Federal Issue" en Religions vol. 6 No 304, 2025; Nelson Marín Alarcón y Luis Bahamondes González: "Management of Religious Diversity in Chile: Experiences from Local Governments" en Religions vol. 16 No 535, 2025.

[11] Brenda Carranza: "¿Existe la Cristofobia?: el caso brasilero" en Diversa blog, 14/12/2024.

[12] Marcos Andrés Carbonelli, Andrey Pineda Sancho, Arantxa León Carvajal y M.P. García Bossio: "La politización religiosa y sus retos para la democracia. Estudio comparado de los casos de Argentina y Costa Rica (2017-2021)" en AAVV: Derechos en cuestión: amenazas y desafíos para las democracias, Clacso, Buenos Aires, 2023.

[13] J.M. Vaggione: "Reactive Politicization and Religious Dissidence: The Political Mutations of the Religious" en Social Theory and Practice No 31, 2005.

[14] J. Beckford: Social Theory and Religion, Cambridge UP, Cambridge, 2003.

[15] César Ceriani Cernada: "La religión como categoría social: encrucijadas semánticas y pragmáticas" en Cultura y Religión vol. 7 No 1, 2013.

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