27 Mai 2025
A aprovação do PL 2159 pelo Senado Federal aprofunda o ataque à Constituição e aos territórios indígenas, que tem sido a tônica do Poder Legislativo nos últimos anos
A nota foi elaborada pelo Conselho Indigenista Missionário, publicada por Cimi, 26-05-2025.
O Senado Federal desferiu na quarta-feira, dia 21 de maio, um novo golpe de morte ao país, à Constituição Federal e aos povos indígenas e comunidades tradicionais com a aprovação do Projeto de Lei (PL) 2159/2021, que acaba, praticamente, com o licenciamento ambiental. Com emendas à proposição original, o Senado conseguiu piorar um projeto de lei que nasceu na Câmara dos Deputados e tinha a intenção de privilegiar interesses privados e passar a boiada definitivamente sobre as esperanças de futuro do conjunto da sociedade brasileira.
A nova redação aprovada pelo Senado, com 54 votos a favor e com a inaceitável liberação de voto da maioria da base governista, determina, dentre outras medidas, a criação da Licença Especial para atividades ou empreendimentos que sejam definidos como estratégicos pelo Conselho de Governo, mesmo reconhecendo que estes projetos tenham efetivo ou potencial impacto de degradação ambiental. O PL 2159 dispensa de licenciamento ambiental atividades econômicas como a agropecuária e permite a chamada Licença por Adesão e Compromisso (LAC), uma espécie de autolicenciamento sem ressalvas, para empreendimentos de médio porte e potencial poluidor. Na prática, ao restringir a definição do que seriam as “condicionantes ambientais”, a proposição também isenta empresários, onerando os cofres públicos com os custos relativos à prevenção, redução e reparação de impactos socioambientais gerados por empreendimentos privados. Por fim, o PL 2159 deixa de considerar os impactos ambientais sobre territórios quilombolas e indígenas que ainda não estejam plenamente regularizados. Isso representa, no caso das terras indígenas, cerca de 65% do total dos territórios.
O PL 2159 facilita de forma definitiva o caminho para o avanço do agronegócio e da mineração, inclusive dentro de territórios até hoje protegidos. Permite acelerar projetos como a exploração de petróleo na foz do Amazonas, a Ferrogrão ou a exploração de potássio no rio Madeira (AM), dentre outras muitas obras e projetos apresentados arcaicamente como fatores de progresso e que inviabilizam a vida de povos e comunidades.
O projeto impõe medidas que trazem impactos concretos também para a vida de todos, razão pela qual é conhecido como PL da Devastação. Na contramão da necessidade urgente de políticas de Estado, ousadas e determinadas, para enfrentar o colapso ambiental que todos estamos vivendo, mesmo que de formas muito desiguais, em áreas do interior e em grandes conglomerações urbanas, o Congresso Nacional aposta na desregulamentação e na devastação. Não é só negacionismo; é convicção em uma necropolítica que alimentou os governos passados e que permanece vigente no atual Legislativo.
O atual Congresso Nacional atua permanentemente contra a Constituição Federal, contra os direitos fundamentais e contra todos os consensos científicos
Lembremos que, em dezembro de 2023, o Congresso Nacional aprovou também a Lei 14.701, que instala autoritariamente o marco temporal para a demarcação de territórios indígenas e abre estes territórios para a possibilidade de exploração econômica por terceiros, além de flexibilizar o direito dos povos originários à consulta prévia, livre e informada. Esta lei, flagrantemente inconstitucional, permanece em vigor depois de 18 meses, sustentada por uma famigerada mesa de negociação instalada no Supremo Tribunal Federal (STF). Agora, com a aprovação do PL 2159/2021, o Congresso completa o golpe, desmantelando toda a normativa que o Brasil construiu durante décadas para garantir o direito fundamental aos territórios e à preservação ambiental. Os interesses econômicos, sob a alegoria da boiada, estão impondo a força de seus pesados cascos e deixando um legado de negação do futuro.
O atual Congresso Nacional atua permanentemente contra a Constituição Federal, contra os direitos fundamentais e contra todos os consensos científicos. Representa a pior face da política institucional. Ou a sociedade brasileira consegue transformar a configuração do Congresso nas próximas eleições de 2026, e isso começa desde hoje no questionamento aos parlamentares em seus estados de origem, ou estaremos comprometendo seriamente o presente e o futuro de nosso país.
Por outro lado, o governo federal continua atuando entre a impotência e a anuência, entre o desabafo e o conluio. Aparentam desconforto e até ensaiam tentativas de redução de danos, mas sem muita convicção, pois há tempo que desistiram de causas fundamentais que dão por perdidas antes de tentar a disputa. Alguns por medo e outros por convergência com os interesses privados. O certo é que o governo permanece ausente e muito longe do que se esperava e do que precisamos. Assim como fez durante as negociações relativas à Lei 14.701/2023, o governo manteve agora um perfil muito baixo nas relações com o Congresso e isolou os ministérios e autarquias competentes na batalha por salvaguardar direitos fundamentais.
A Nota Técnica e as declarações do Ministério de Meio Ambiente, que são legítimas e contundentes e precisam de nosso apoio e fortalecimento, não conseguem cobrir o dissenso interno dentro do governo nem apagar o sorriso complacente de alguns colegas da Esplanada. A questão não é, apenas, que o governo seja um espaço plural e de coalizão, como tantas vezes ouvimos dizer e tantas vezes aceitamos como imponderável e necessário; a questão fundamental é que, nessa composição diversa, os direitos fundamentais de povos indígenas e comunidades tradicionais sempre são sacrificados em benefício dos interesses de praxe.
Para a COP30 não servem fotografias nem discursos simbólicos voltados à comunidade internacional; o que serve é a política concreta, e hoje, por incrível que pareça, o Brasil está vendo suas salvaguardas sociais e ambientais serem desidratadas como não se via há décadas, enquanto avançam políticas que mercantilizam os territórios e seus bens. É nestes momentos em que o silêncio do presidente, quem tem por aliado o atual presidente do Senado, resulta perigoso e inaceitável. É precisamente nestes momentos em que necessitamos uma liderança de governo que abandone o lenga-lenga do pragmatismo quando se trata de defender o que dá horizonte ao nosso futuro.
Caso a Câmara dos Deputados aprove o PL 2159/2023, que a ela retorna agora, e caso o governo apresente ou não vetos, parciais ou integrais, caberá mais uma vez ao STF exercer sua missão institucional de guardião da Constituição. Porque este é exatamente o momento que vive o Brasil: um momento de desconstrução efetiva e orquestrada da Constituição de 1988. Em um contexto no qual os parlamentares que votam a favor da Lei do Marco Temporal e da Lei da Devastação são os mesmos que reivindicam anistia para quem tentou um golpe de Estado, a missão do STF se torna mais histórica e decisiva do que nunca.
E mais necessária, também, se faz a ação organizada, solidária e firme de toda a sociedade civil. Mais além das legítimas diferenças numa democracia, urge uma reação unificada, porque é o futuro de todos o que está em jogo: universidades, associações e organizações sociais, movimentos populares, personalidades do mundo político, do direito, das artes e da comunicação, lideranças religiosas, sindicatos e associações profissionais. Os povos indígenas e as comunidades tradicionais continuam marcando o caminho. A convivência e a democracia constroem-se a partir das relações cotidianas, do respeito à diversidade e da convicção no que é comum. Só uma sociedade civil consciente e organizada poderá vislumbrar outros caminhos possíveis, outro horizonte. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) reafirma seu compromisso e sua determinação para continuar contribuindo, junto aos povos indígenas e a toda a sociedade, na construção de um país alicerçado nos direitos fundamentais, na pluralidade, na paz e na justiça.
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