17 Mai 2025
Não, mesmo com a prisão do delegado que ao invés da lei defendia os bandidos, não será feita justiça ao Ir. Vicente Cañas. Fazer justiça ao amigo dos Enawenê-Nawê é enterrar definitivamente o Marco Temporal e declarar a Lei 14.701/23 como inconstitucional. Honrar a memória do mártir da causa indígena significa demarcar as mais de 800 terras indígenas à espera de que o Estado simplesmente resolva cumprir a Constituição.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Depois de quase 40 anos desde o bárbaro assassinato de Vicente Cañas, no território indígena Enawenê-Nawê, o desfecho do processo judicial parece chegar ao fim. Após o trânsito em julgado no Superior Tribunal de Justiça, o 7º Juízo Federal Criminal de Mato Grosso determinou o início da execução penal e a consequente expedição de mandado de prisão contra o delegado aposentado, Ronaldo Antônio Osmar. Trata-se do único acusado – e agora definitivamente condenado – ainda vivo. Pode-se falar realmente na realização da justiça nesse caso tão emblemático, espelho do descaso com os defensores dos Direitos Humanos no país?
O crime foi cometido em abril de 1987, no município de Juína (MT). O motivo? Apoiar a luta do povo Enawenê-Nawê pela demarcação do seu território ancestral. O jesuíta indigenista foi um valioso aliado, considerado pela comunidade indígena um grande amigo. Mas isso já faz tanto tempo, que parece algo de outra época... Faz sentido ainda falar de Vicente Cañas?
Como adverte Paulo Suess manter viva a memória revela-se uma missão imprescindível, muito mais em tempos em que a avalanche de informações leva ao automático esquecimento e a normalização da violência cotidiana:
“Nesta tarefa de reconstrução da memória, o historiador não é um guardador de cinzas, nem um mero relator de traumas do passado. É um protetor da mecha ainda fumegante, descobridor da brasa escondida, catalisador de esperança para seus contemporâneos. Em suas Teses sobre filosofia da história, Walter Benjamin adverte que ‘somente à humanidade redimida cabe plenamente seu passado’. As condições históricas impõem a inversão dialética dessa ordem. O acesso ao passado gera condições de libertação. Para oprimidos integrados ao sistema da produtividade e das legalidades vigentes, a anamnese do passado é um instrumento decisivo para a reconstrução de sua identidade e mobilização de sua resistência”.[1]
Revisitar a história das violações perpetradas contra os Povos Indígenas e seus aliados implica em permanecer firme na luta pela libertação dessas comunidades, em um presente tão anti-indígena como esse da terceira década do século XXI. Mesmo após o martírio de inúmeros defensores da causa indígena – como o salesiano Rodolfo Lünkenbein e a agostiniana recoleta Cleusa Coelho –, o cerco implacável às nações originárias e seus territórios está longe de terminar. O pesadelo nunca foi tão real!
Falar do missionário jesuíta que provocou a ira dos grandes latifundiários significa falar de uma época de profundas mudanças na presença junto aos Povos Indígenas. Em 1929 a Companhia de Jesus fundou a Missão Anchieta (MIA), na Prelazia de Diamantino, e depois o internato de Utiariti (1945). O intuito era “civilizar” e “catequizar” os indígenas.
Com o Concílio Vaticano II (1962-1965) a concepção mudou, o internato foi desativado (1969) e os jesuítas se inseriram nas comunidades indígenas. Junto com outras experiências, especialmente a das Irmãzinhas de Jesus de Charles de Foucauld com os Tapirapé (1952), os jesuítas de Mato Grosso foram cofundadores do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). A ruptura com o modo tradicional foi considerável e a partir de então a resistência indígena contará com o incondicional apoio do Cimi! Nesse sentido assevera Benedito Prezia:
“Ao afirmar que se devia ‘optar por uma encarnação realista [...] assumindo sua causa, com todas as suas consequências’ (Doc, Final I Assemb. Geral, nº 4), o Cimi seguramente conhecia os riscos que seus membros estavam correndo. Com efeito, a solidariedade com os povos indígenas foi aos poucos sendo escrita também com sangue. [...] Se muitos perderam a vida, esta foi semente que caiu na terra e frutificou, não só em qualidade, como também em quantidade”.[2]
Ir. Vicente Canãs queria ser missionário e por isso foi enviado ao Brasil, no final de 1965. Chegou a Diamantino somente em 1968 e demorou algum tempo para ter contato com os povos originários. Pouco a pouco os indigenistas mais velhos lhe foram introduzindo na missão, entre eles aquele que vai se tornar seu grande amigo, o então Padre Thomaz Lisbôa.
Trabalhou com os Povos Tapayuna e Paresi e, acompanhando seu companheiro de missão Thomaz Lisbôa, realizou os primeiros contatos com outros dois povos seriamente ameaçados de extermínio, os Mÿky (1971) de quem recebeu o nome de Kiwxi e os Enawenê-Nawê (1974). Entre idas e vindas, nos primeiros tempos, até decidir ir viver com eles alguns anos depois, dedicou-se inteiramente aos Enawenê-Nawê.
O jesuíta indigenista se empenhou arduamente para apoiar a demarcação do território tradicional e por isso pagou com a vida. A cobiça dos agrosenhores dos latifúndios – terras roubadas das comunidades originárias – mandou pôr fim àquela desobediente voz que clamava por justiça. Em plena Constituinte, quando se sonhava um Brasil que respeitasse os Povos Indígenas, entre os dias 6 e 7 de abril era violentamente morto o missionário espanhol que se fizera Enawenê-Nawê.
Mesmo com a repercussão gerada, ainda mais por se tratar de um jesuíta e estrangeiro, as investigações se arrastaram e sofreram toda sorte de boicotes e interrupções. E a força do Direito cedeu ante a pressão da força do poder econômico-político. Um Direito que cala frente ao arbítrio e a prepotência dos inimigos dos Direitos Humanos, como aponta Leonel Severo Rocha:
“Pelo contrário, consideramos que o direito não se resume ao discurso, pois, não raro, expressa-se explicitamente pela força: a força, em última instância, é o sustentáculo que vai dar eficácia ao direito. Consideramos, contudo, que subestimar a influência dos discursos na vida social é contribuir paradoxalmente, para que eles atinjam seus objetivos mistificadores. No interior dos discursos existem diferentes tendências, suscitando necessariamente o problema da hegemonia, pois não existe poder soberano (discurso competente) sem uma elite que domine. No entanto, não há um discurso hegemônico e coerente a priori. Os discursos são produtos de diferentes práticas sociais. Deve-se ainda ressaltar que toda relação de forças possui sempre uma representação simbólica. É indissociável a relação do discurso com esta prática política. Uma está imbricada na outra. Desta forma, não se poderia entender as relações hegemônicas na sociedade sem esta dialética práxis-discursiva”.[3]
Foram seis os acusados do assassinato de Cañas, no seu barraco a cerca de 60 Km da comunidade Enawenê-Nawê. Desses, dois morreram antes do julgamento, ao passo que outros dois tiveram seus processos arquivados por terem mais de 80 anos e também já faleceram. Enquanto que os dois únicos levados a júri foram absolvidos em 2016. Alegação? Falta de provas. Isso depois de 20 anos da execução do crime. Ou seja, tempo para investigar obviamente não faltou. Diante disso, o Ministério Público recorreu e o tribunal determinou a realização de novo júri, ocasião em que o fazendeiro José Vicente da Silva, acusado de ser um dos autores materiais, já tinha falecido.
Condenado, em 2017, a 14 anos e 3 meses de prisão, Ronaldo Antônio Osmar pôde recorrer em liberdade até o esgotamento de todas as vias recursais, o que só ocorreu neste ano de 2025. Doente e com idade avançada, provavelmente não cumprirá a pena em regime fechado, como deveria ter acontecido. Trata-se de mais um caso em que a Justiça tardou e por consequência falhou. Longe de ser uma exceção, o Brasil é um dos países que mais mata os defensores das florestas e de suas comunidades originárias.
Ainda que um dos criminosos seja encarcerado, a sensação de impunidade permanece amarga. Sem sombra de dúvida, não será suficiente! Afinal, mais uma vez os representantes do atraso confabulam descaradamente no Congresso e na Suprema Corte para impor uma fragorosa derrota aos 305 povos originários deste país.
Ao querer rasgar os arts. 231 e 232 da Constituição Federal e reescrever o procedimento de reconhecimento das terras indígenas, a bancada ruralista e seus aliados no Judiciário – e alguns poucos e poderosos que se encontram no governo federal, vide uma Casa Civil avessa aos direitos indígenas – trabalham na calada da noite. Com isso, tramam para travar as centenas de demarcações pendentes e assim empurrar milhares de indígenas para a completa marginalidade e insegurança humanitária. Uma calamidade comparada às cruéis violações infligidas pela ditadura civil-militar.
Oxalá os testemunhos proféticos de bispos-aliados da causa indígena como Dom Aldo Mongiano (RR), Dom Pedro Casaldáliga (MT), Dom Tomás Balduíno (GO) e Dom Luciano Mendes de Almeida (CNBB) possam inspirar a Igreja do Brasil a se posicionar sempre e mais uma vez a favor dos povos oprimidos. Posições essas que demandam mais do que meras notas e fugazes pronunciamentos, mas convocam a um maior engajamento e comprometedor apoio.
Seguir Jesus de Nazaré é fazer opções, como fez o Ir. Vicente Cañas e São Óscar Romero antes dele. E nem se atrevam a dizer que isso é ideologia ou política partidária, porque se trata da mais pura Boa Nova da libertação, como já observava o arcebispo de El Salvador:
“Já sei que há muitos que se escandalizam destas palavras e querem acusa-las de que se deixou a pregação do Evangelho para se meter em política. Mas não aceito esta acusação, senão que faço um esforço para que todo o que quis impulsionar o Concílio Vaticano II, a reunião de Medellín e de Puebla, não apenas que tenhamos as páginas e as estudemos teoricamente mas que também as vivamos e as traduzamos nesta conflitiva realidade de pregar como se deve o Evangelho para o nosso povo. Por isso peço ao Senhor toda semana, enquanto vou recolhendo o clamor do povo e a dor de tanto crime, a ignomínia de tanta violência, que me dê a palavra oportuna para consolar, para denunciar, para chamar ao arrependimento e mesmo que siga sendo uma voz que clama no deserto, sei que a Igreja está fazendo o esforço de cumprir com sua missão” (Homilia 23/03/1980, VIII p. 359).[4]
Não, mesmo com a prisão do delegado que ao invés da lei defendia os bandidos, não será feita justiça ao Ir. Vicente Cañas. Fazer justiça ao amigo dos Enawenê-Nawê é enterrar definitivamente o Marco Temporal e declarar a Lei 14.701/23 como inconstitucional. Honrar a memória do mártir da causa indígena significa demarcar as mais de 800 terras indígenas à espera de que o Estado simplesmente resolva cumprir a Constituição.
Evitar a impunidade do assassinato do jesuíta espanhol implica em proteger tais territórios dos pistoleiros e jagunços dos ruralistas, do garimpo e da extração de petróleo, dos caçadores e madeireiros, dos grileiros ávidos por lucros. Fazer justiça por Cañas é proteger os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, os Avá-Guarani no Paraná, os Munduruku no Pará, os Pataxó na Bahia.
Só quando esses povos todos tiverem paz para viver segundo a sua autodeterminação, então aí sim o Ir. Vicente Canãs poderá descansar em paz. Até lá os amigos e as amigas de Cañas, que seguem na luta como Cimi e Vida Religiosa inserida, continuarão a reafirmar até o fim o seu compromisso e aliança com os Povos Indígenas. Por Vicente e pela causa indígena! Justiça, já!
[1] SUESS, Paulo (org.) A conquista espiritual da América espanhola: 200 documentos – século XVI. Petrópolis: Vozes, 2024. p. 11.
[2] PREZIA, Benedito (org.). Caminhando na luta e na esperança: retrospectiva dos últimos 60 anos da Pastoral Indigenista e dos 30 anos do CIMI. São Paulo: Loyola, 2003. p. 74-75.
[3] ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia Jurídica e Democracia. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p. 128.
[4] ROMERO, Oscar. Día a día con Monseñor Romero: meditaciones para todo el año. São Salvador: Publicaciones Pastorales del Arzobispado, 2006. Homilia de 23/03/1980. p. 383.