06 Mai 2025
"O corpo do Papa não pode mais ser o princípio, isolado e imune, de um governo total da Igreja Católica, mas deve se configurar cada vez mais como um lugar de síntese sinodal em que convergem as práticas administrativas da Cúria Vaticana e as práticas culturais das Igrejas na esfera pastoral", escreve Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Appia Institute, e reproduzido por Settimana News, 06-05-2025.
Artigo extraído do léxico do povo de Deus em vista do Conclave Intra omnes – organizado por Andrea Grillo e Luigi Mariano Guzzo, publicado pela Queriniana e disponível para download gratuito aqui.
O Primeiro Concílio do Vaticano acabou produzindo na Igreja Católica um imaginário que induziu as pessoas a pensar que toda questão referente ao ministério petrino estava encerrada para sempre. Ao isolá-lo e imunizá-lo da própria vida da Igreja, a afirmação dogmática da infalibilidade do Papa em questões de fé e moral criou uma espécie de corpo hipostasiado, afastado das tempestades da história humana.
No entanto, essa afirmação só pode encontrar seu significado e sua inteligibilidade se lida e compreendida dentro dessa mesma história, em relação à qual se pensava que a fórmula para a separação perfeita havia sido encontrada.
Tendo chegado ao fim daquela dialética que constituiu a modernidade europeia, onde Igreja e Estado se modelavam um ao outro, impedindo que qualquer um deles totalizasse o espaço da experiência humana, a Igreja Católica, agora quase completamente sem território estatal, reage à soberania absoluta do Estado fazendo do corpo do Sumo Pontífice o símbolo de seu próprio poder de soberania absoluta. Soldando assim na pessoa/corpo do Papa todo o poder de governo, legislação e julgamento – mesmo que apenas no território religioso da Igreja.
Um território, no entanto, muito maior do que qualquer soberania estatal, porque incluía as consciências individuais dos católicos onde quer que estivessem. Logo depois, a modernidade como europeização do mundo seria varrida por duas guerras devastadoras cujo epicentro seria bem no coração da Europa.
Os efeitos dessa compreensão da soberania pela Igreja Católica se estenderam até a primeira década do século XXI, tornando-a uma espécie de remanescente arqueológico de uma era que já havia terminado há muito tempo. A renúncia de Bento XVI representa o momento de conscientização da disfuncionalidade, também para a fé e a moral, desse anacronismo histórico.
E é talvez a partir deste ato que devemos começar a juntar os pedaços de um novo imaginário do ministério petrino na Igreja Católica para a vida do mundo. O Papa Francisco só pôde falar efetivamente de uma "mudança de era", com tudo o que isso implica na reconfiguração evangélica da instituição eclesial, porque seu predecessor havia fechado, retirando seu corpo da sede de Pedro, a moderna também para a Igreja Católica.
Recolher um corpo, embora esse gesto tenha permanecido fundamentalmente ambíguo até a morte de Bento XVI, é certamente um ato jurídico; mas, muito antes de sê-lo, é uma prática carregada de um poderoso simbolismo. Ao expor seu corpo, Ratzinger tentou em vida domar o significado simbólico de seu gesto, mas não conseguiu controlar a força disruptiva do ato prático de sua retirada do ministério petrino.
E é justamente a força dessa prática, instituída por Bento XVI, que representa a legitimidade do pontificado do Papa Francisco. Uma legitimidade que, por sua origem na decisão de Ratzinger, não seguia a linha da continuidade, como nos obcecamos em tentar demonstrar especialmente no início do pontificado de Francisco, mas exatamente o oposto da descontinuidade.
Este momento é crucial para a futura missão da Igreja Católica e, ao mesmo tempo, extremamente frágil. Ela é frágil porque seu poder de retornar a instituição eclesial ao evangelho do Reino não é um ato formal, mas uma prática – e deve permanecer assim para ser eficaz ao longo do tempo.
Ao contrário do que João Paulo II esperava em Ut unum sint , depois de Bento XVI e Francisco, o ministério petrino na Igreja para o mundo e a história humana pode ser reconfigurado somente no nível de suas práticas efetivas – e não no da teoria teológica ou de acomodações jurídicas. O corpo do Papa não pode mais ser o símbolo de uma comunidade fechada em si mesma, que domina as consciências de quem dela faz parte; mas deve tornar-se o princípio de uma expansão hospitaleira da Igreja Católica, na qual a distinção nós/eles, dentro/fora, seja submetida ao duro ensinamento que Jesus dirige aos discípulos quando estes pensam ter o direito exclusivo ao destino do Reino.
A Igreja Católica hoje está impregnada de amplas reverberações do ressentimento do filho mais velho, irritado pela superabundância do indevido que os gestos de misericórdia e a abertura hospitaleira do Reino sempre trazem consigo. Sobre esse ressentimento, tão antigo quanto o Evangelho, foi construída uma teoria da divisão que o Papa Francisco produziu de forma dramática e imprudente em sua Igreja. Sem perceber que quando o ministério petrino é coerente com o Evangelho ele certamente está do lado desejado por Deus – por mais falível que isso possa parecer aos olhos humanos.
A sinodalidade, como modo fundamental de ser da Igreja Católica, é justamente a prática que visa ajudá-la a escapar das armadilhas desse ressentimento (que às vezes pode afetar um grupo, às vezes outro). Fora da lógica do "ou eu ou ele", mas também fora do princípio monárquico absoluto do governo da Igreja. Da primeira porque essa lógica carece da clara injunção evangélica; do segundo porque é historicamente disfuncional para a missão e o destino da Igreja Católica na história dos homens e mulheres que vivem concretamente a realidade do nosso tempo.
A reforma da Cúria do Vaticano criou os pré-requisitos legais para um governo sinodal da instituição, mas não pode, por si só, produzir as práticas que efetivamente o implementam. Sua invenção e implementação são uma questão urgente para a Igreja Católica como um corpo institucional – e como uma instituição global entre outras instituições no mundo contemporâneo.
O corpo do Papa não pode mais ser o princípio, isolado e imune, de um governo total da Igreja Católica, mas deve se configurar cada vez mais como um lugar de síntese sinodal em que convergem as práticas administrativas da Cúria Vaticana e as práticas culturais das Igrejas na esfera pastoral. Além disso, como preside a ambos, deve zelar pelo respeito à antecedente evangélica do compromisso cultural/impregnação da fé, e portanto da sua diversificação, no poder administrativo da Cúria.
A restituição da Igreja Católica à ordem evangélica, bloqueada por mais de um século por seu sequestro na ordem canônica, é um processo de longo prazo que não pode ser alcançado por decreto, mas deve ser caracterizado por práticas adequadas e correspondentes. O Papa Francisco representou o alvorecer desse retorno da Igreja Católica ao destino imaginado por Deus para ela no tempo presente. Isto implica também uma mudança na relação com a verdade e uma reconfiguração do corpo simbólico do Papa que atesta a toda a Igreja que ela está na verdade do seu destino.
A verdade deixa de ser uma questão de exclusividade institucional e jurídica para se tornar uma prática efetiva de alianças – a serviço do mundo, em proteção dos últimos e dos excluídos, em nome da justiça desejada pelo Deus de Jesus. Que é para todos, para o órfão e a viúva, para a prostituta e o publicano, para a mulher com hemorragia e a siro-fenícia, para Zaqueu e a mulher cananeia — e não apenas para um pequeno círculo dos eleitos.
Aliança significa não estar sozinho, mas também significa reconhecer uma comunhão de destinos e um compartilhamento de destino. Construir pontes, não construir fronteiras seguras e impenetráveis: entre os diferentes modos de ser da fé católica; entre as diversidades culturais das comunidades cristãs enraizadas nos seus contextos de vida; entre religiões; entre povos e nações. Aliança significa fazer com que cada ser humano sinta que ninguém está excluído do desejo de Deus, que a alegria da sua intimidade é o destino comum de todos nós.
A restituição da Igreja Católica à ordem evangélica exige um exercício do ministério petrino que proteja e salvaguarde em sua prática a primazia da palavra de Deus sobre a instituição eclesial e seus sistemas jurídicos. Somente se a Igreja Católica conseguir manter firme esse diferencial crítico do Evangelho em relação a si mesma, então poderá efetivamente colocá-lo em circulação nas penúltimas realidades do mundo para as quais está destinado.
Aceitar como instituição o risco dessa restituição ao Evangelho, custodiada pelo simbolismo do corpo do Papa que faz alianças e intercede pelo mundo sem distinções de pertencimento, significa abrir a história humana ao reino de Deus e não ampliar o espaço ocupado pela soberania da Igreja Católica.
O diferencial da palavra de Deus e da abertura do Reino, firmemente atestado pelo ministério petrino na Igreja Católica em favor do mundo amado por Deus, representa a força de que essa Igreja precisa para estabelecer práticas de diálogo entre povos e nações, juntamente com formas sinodais de negociação entre partes opostas — das quais a abordagem niilista da democracia moderna, que hoje ameaça a ordem da convivência civil, necessita urgentemente para não legitimar democraticamente novos totalitarismos como forma de Estado de Direito.
Restituído ao seu significado evangélico, o ministério petrino poderá começar a ser exercido como prática que constrói as conexões entre o cuidado da fé e o cuidado dos destinos do mundo – das quais novas práticas políticas podem tirar força e inspiração, à altura da tarefa de honrar aquela dignidade do homem concreto à qual o Deus de Jesus se ligou para sempre na encarnação do Filho.