06 Mai 2025
"O abuso destrói vidas humanas e, em última análise, corrói a Igreja por dentro. Ele deve ser combatido no espírito de Jesus, tanto dentro quanto fora da Igreja, permanecendo fiel à sua opção pelos fracos e vulneráveis, à sua mensagem de salvação e à missão decorrente para a Igreja. Trabalhar positivamente pela proteção das pessoas por meio de salvaguardas e oferecer impulsos nesse sentido, dentro da Igreja e para o mundo, é uma expressão essencial da fé cristã", escrevem Peter Beer e Hans Zollner.
Peter Beer é chefe de pesquisa e desenvolvimento no Instituto de Antropologia, Estudos Interdisciplinares sobre a Dignidade Humana e o Cuidado, da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. De 2010 a 2019, foi vigário geral da Arquidiocese de Munique-Freising, na Alemanha.
Hans Zollner, S.J., é diretor do Instituto de Antropologia, Estudos Interdisciplinares sobre a Dignidade Humana e o Cuidado, membro do Comitê de Salvaguarda da Diocese de Roma e consultor do Dicastério para o Clero.
O artigo é publicado por América, 02-05-2025.
O caixão do Papa Francisco, que havia falecido quatro dias antes, foi lacrado na Basílica de São Pedro, em Roma, na noite de 25 de abril de 2025. Antes do fechamento, um tubo metálico, o chamado Rogitum, foi colocado no caixão. Trata-se de um documento pontifício em latim que registra etapas importantes da vida do falecido e eventos-chave de sua atuação como padre, bispo, cardeal e papa.
Esse documento destaca que o papa falecido foi “sempre atento aos menores e aos marginalizados da sociedade”, que frequentemente “ergueu sua voz para proteger os inocentes” e que “endureceu a legislação contra crimes cometidos por clérigos contra menores ou pessoas vulneráveis”.
Essas características do papa falecido talvez sejam melhor resumidas pela metáfora que, embora infelizmente não mencionada no próprio Rogitum, o Papa Francisco cunhou para a Igreja desde o início de seu ministério como pontífice: um hospital de campanha, um lugar onde feridas são tratadas e curadas. Em última instância, trata-se de um lugar seguro, onde nenhuma (nova) ferida é infligida.
Não sabemos com certeza se não apenas o Rogitum em si, mas também os leitmotivs e as preocupações centrais do falecido Papa Francisco descritos nele desaparecerão junto com o caixão de Francisco no túmulo. Muito dependerá de como seu sucessor se comportará nesse sentido — e de como enfrentará os desafios associados. Trata-se de uma questão tanto de vontade quanto de capacidade. Os cardeais reunidos para o conclave farão uma escolha adequada e encontrarão um candidato à altura? Estarão dispostos a nomear como sucessor de Francisco alguém que, ao menos nesse aspecto, esteja preparado para continuar e desenvolver sua obra? Escolherão alguém que fará tudo o que estiver ao seu alcance para garantir que a Igreja seja um lugar seguro, onde ninguém precise temer qualquer forma de abuso?
Pode haver preocupações práticas a serem discutidas entre alguns cardeais. Pode haver diferentes graus de proximidade pessoal a considerar, bem como avaliações de projetos individuais do papa anterior (como a reforma da Cúria ou o tratamento pastoral de certos grupos). Contudo, há um amplo consenso sobre um ponto: o abuso é um crime.
O abuso destrói vidas humanas e, em última análise, corrói a Igreja por dentro. Ele deve ser combatido no espírito de Jesus, tanto dentro quanto fora da Igreja, permanecendo fiel à sua opção pelos fracos e vulneráveis, à sua mensagem de salvação e à missão decorrente para a Igreja. Trabalhar positivamente pela proteção das pessoas por meio de salvaguardas e oferecer impulsos nesse sentido, dentro da Igreja e para o mundo, é uma expressão essencial da fé cristã.
O antecessor do Papa Francisco, o Papa Bento XVI, começou a traçar algumas diretrizes correspondentes para a proteção contra abusos na vida da Igreja. Francisco deu continuidade e ampliou essas diretrizes. Seu sucessor tem a tarefa de retomar esse ponto e continuar com determinação. Mas como encontrar a pessoa certa? Como reconhecer aquele que tem a vontade e a capacidade de agir decisivamente contra o abuso? Quais são os critérios decisivos que oferecem orientação?
Vale a pena olhar para a Cúpula de Proteção de Crianças, realizada em Roma em 2019, na qual todos os presidentes das conferências episcopais da Igreja universal, representantes de superiores gerais das ordens religiosas masculinas e femininas, os patriarcas das Igrejas Orientais em comunhão com Roma e os prefeitos dos dicastérios do Vaticano se reuniram para tratar adequadamente da questão do abuso sexual de menores dentro da esfera de responsabilidade da Igreja.
Também vale considerar os documentos do Sínodo dos Bispos que ocorreu de 2021 a 2024, com o tema “Por uma Igreja Sinodal: Comunhão, Participação e Missão”, ocasião em que a autoimagem da Igreja foi — e ainda está sendo — debatida, especialmente à luz do escândalo de abusos. Em ambas as ocasiões, implícita e explicitamente, mencionaram-se três elementos identificados como particularmente importantes para as salvaguardas: (1) transparência ou comunicação, (2) conformidade e (3) responsabilização (accountability).
A importância desses três elementos torna-se ainda mais clara à medida que se compreende que todo abuso — seja sexual, psicológico, físico, espiritual ou similar — é, em última análise, um abuso de poder de uma pessoa sobre outra. Para preveni-lo, por um lado, e utilizar o poder de forma sensata em benefício das pessoas, por outro, o poder precisa sempre de controle. Diante da pecaminosidade fundamental e inevitável de todo ser humano, de suas fraquezas e suscetibilidade ao erro, ninguém deveria estar investido de poder absolutamente ilimitado. Ou, em outras palavras mais positivas: quem detém o poder depende de ajuda e deve estar disposto a ser ajudado.
Transparência, conformidade e responsabilização são expressões concretas dessa ajuda. A transparência torna perceptível o exercício do poder; ela pode ser identificada e nomeada como tal. Ao poder ser nomeada, pode também ser discutida; argumentos a favor e contra podem ser apresentados, e o modo como o poder é exercido pode ser avaliado de diferentes maneiras. Nesse sentido, a conformidade oferece uma certa objetividade à discussão sobre o poder e seu exercício. Regras e normas definidas podem ser usadas para determinar se o poder está sendo exercido de acordo com elas ou em contradição, e se é necessária uma intervenção apropriada em nome da conformidade com os regulamentos existentes.
Nesse contexto, há uma obrigação por parte de quem detém o poder. Ele ou ela deve explicar suas ações, tornando compreensível o exercício do poder no contexto de regras e normas existentes, em relação a suas tarefas, deveres e intenções — é isso que se expressa na responsabilização.
Esses poucos apontamentos talvez bastem para deixar algo claro: quem defende a transparência, a conformidade e a responsabilização provavelmente não encontrará muita aprovação, e terá de enfrentar resistências consideráveis. Esses três elementos — e isso se aplica também à Igreja — provocam desconforto em pessoas poderosas, sejam elas bispos, cardeais, padres ou importantes leigos ao seu redor.
Com esses três elementos, já não é tão fácil se deleitar no brilho da própria grandeza, exibir com arrogância o próprio poder, reivindicar privilégios sem justificativa e outras atitudes similares.
Se o candidato a ser eleito papa quiser defender a transparência, a conformidade e a responsabilização no sentido de uma prevenção eficaz e eficiente contra abusos, como expressão da Igreja como espaço seguro, então será necessário muito daquilo que tradicionalmente se chama de virtudes cardeais. No contexto das salvaguardas, essas virtudes podem ser traduzidas em exigências claras.
Justiça. O abuso é um crime que causa danos significativos, muitas vezes irreversíveis, às vítimas. Os perpetradores visam apenas ao próprio benefício, aos próprios desejos, embora tentem transmitir uma imagem completamente diferente, enquanto representantes da Igreja, que frequentemente encobrem suas ações. O novo papa não pode ter a tendência de querer agradar a todos ou de evitar conflitos de maneira negativa, a ponto de não conseguir lidar produtivamente com tensões interpessoais. Em vez disso, ele deve estar disposto a tomar partido pelos fracos e vulneráveis, e impor limites àqueles que lhes causam dano ou prejuízo.
Coragem. O abuso está diametralmente oposto à imagem da Igreja como sinal e instrumento da obra salvífica de Deus no mundo. O escândalo do abuso põe em xeque essa autoimagem. O próximo papa não deve querer disfarçar tudo ou enxergar a realidade apenas em fragmentos. Ele deve ter a capacidade de encarar os lados sombrios do mundo, das pessoas e, por vezes, da própria Igreja, especialmente em relação aos abusos, e falar abertamente sobre eles sem se esconder atrás de frases piedosas. Ele deve saber lidar com a resistência e estar disposto a implementar mudanças necessárias, apesar dela.
Moderação. O tema dos abusos é altamente emocional de todos os lados, e deve ser tratado com a devida atenção. As emoções não podem nem devem ser reprimidas, descartadas ou banalizadas, mas também não podem se tornar o critério absoluto de ação. O novo papa deve saber distinguir entre moderação e apaziguamento, que apenas dificulta o enfrentamento significativo. Ele deve agir de forma processual, conforme o antigo princípio “suaviter in modo, fortiter in re” (suave no modo, firme na substância). Deve também ser capaz de motivar as pessoas diante de questões difíceis. A teimosia que exige tudo imediatamente deve ser-lhe tão estranha quanto a indecisão que adia tudo o que é desagradável para um futuro indefinido.
Prudência. Considerar fatores interculturais é essencial ao tratar do tema do abuso, pois os parâmetros decisivos para compreendê-lo (como família, sexualidade, autoridade, honra, papéis de gênero, etc.) variam conforme o contexto. O papa deve estar ciente das diferenças dentro da Igreja universal, que abrange todos os continentes, países e sistemas socioculturais. Ele deve entender o que é viável num prazo realista, agir dentro de um tempo definido e transformar o que antes parecia imutável — sempre por meio do diálogo constante.
O novo papa precisará reconhecer os recursos disponíveis na Igreja para promover as mudanças necessárias em termos de salvaguarda. Caso esses recursos (como o conhecimento técnico necessário) sejam insuficientes ou inexistentes, o novo pontífice deve estar aberto a buscar ajuda externa, especialmente para investigar e tratar os casos de abuso.
Essas virtudes bastarão em qualquer candidato para que ele, ao ser eleito pontífice, enfatize os elementos de transparência, conformidade e responsabilização tão importantes para a salvaguarda? Provavelmente não. O pontífice pode estar investido da mais alta autoridade e poder; mas, como indivíduo, se não tiver o apoio de todo o povo de Deus, será muito difícil — ou mesmo impossível — tirar as salvaguardas do status de simples exigência e torná-las realidade.
O candidato à eleição deve, portanto, também ser capaz de conquistar o povo de Deus — em todas as suas diversas partes — e convencê-lo da importância da proteção contra abusos. A melhor maneira de convencer é, evidentemente, agir conforme o que se prega — ou, de modo muito concreto, implementar os elementos centrais de transparência, conformidade e responsabilização em seu ministério. Para isso, além das virtudes já mencionadas, o papa também precisa de outras habilidades que devem ser consideradas critérios essenciais para um possível pontífice.
A transparência baseia-se na disposição destemida ao diálogo e ao discurso; uma comunicação que atenda às necessidades informativas das pessoas de forma clara e compreensível. Não se trata de uma retórica defensiva que tenta convencer a todo custo desviando dos pontos críticos e exagerando os positivos. Trata-se sim da troca adequada de argumentos e da transmissão de informações entre iguais, valorizando o outro como parceiro. Barreiras de comunicação devem ser evitadas ou rompidas sempre que possível.
A conformidade exige, antes de tudo, humildade: disposição de respeitar regras formalmente instituídas e abster-se de decisões arbitrárias ou movidas por gosto pessoal — ainda mais quando seguir as regras contraria ideias ou desejos próprios. Aqui são fundamentais a disciplina e uma compreensão positiva de estrutura e ordem, que — bem compreendidas — não são inimigas do espírito pastoral da Igreja, mas garantem confiabilidade, consistência e confiança.
A responsabilização só se concretiza com disposição para assumir responsabilidade — ou seja, não apenas envolver-se, mas também explicar o que foi feito, como, por que e para quê. Para evitar respostas em um vazio que ninguém quer ouvir, é fundamental estar aberto ao questionamento, sem vê-lo como ataque pessoal.
Essa disposição para acolher perguntas e lidar com elas de forma adequada permite repensar de forma crítica e produtiva pensamentos e ações próprias, e ajustá-las. Isso exige reconhecer limites pessoais e capacidade de autocrítica. Para que tudo isso não dependa apenas do acaso, é necessário um sistema de prestação de contas bem estruturado, tanto dentro quanto fora da Igreja. Essa é, antes de tudo, uma questão de conformidade.
Na Igreja, por exemplo, o Colégio de Cardeais poderia ter papel central no desenvolvimento de uma Igreja mais sinodal, diante do qual o futuro papa prestaria contas regularmente, acolheria perguntas e sugestões. Para que isso funcione, o papa deve ter especial interesse nesse órgão, criar oportunidades de troca e convocá-lo com regularidade.
Ao examinar esses pontos mais de perto, algo se destaca: no contexto da proteção contra abusos, os três elementos — transparência, conformidade e responsabilização — são de particular importância, inclusive como critérios orientadores para a escolha do novo papa: transparência, pelas estratégias de evasão utilizadas durante tempo demais; responsabilização, frente aos mecanismos de encobrimento naturalizados; e conformidade, diante da aplicação inadequada e incoerente de sanções contra abusadores.
Mas, em última instância, esses três elementos também têm um significado fundamental para a vida da Igreja, assim como as virtudes cardeais mencionadas. Em essência, trata-se da própria identidade da Igreja. Trata-se de viver, como comunidade de fiéis, de modo crível e convincente — algo que o futuro papa deverá nos recordar constantemente com suas palavras e ações.