Compreender as razões da razão é superar a mera ideia de que a verdade vai vencer. Entrevista especial com Fernando Silva e Silva

O pesquisador debate, a partir de Bruno Latour, como a ciência é construída e como aquilo que chamamos razão depende de uma rede de saberes e práticas que a sustentem

Foto: Dkosig | Canva

Por: IHU e Baleia Comunicação | 15 Março 2024

É muito comum ouvirmos, sobretudo de quem deseja simplificar questões complexas como a desigualdade, a frase: “não existe almoço grátis”. Apesar do reducionismo embutido nesta afirmação, ela não deixa de ser verdadeira. A mesma coisa poderíamos dizer a respeito da ciência: não existe ciência grátis. E isso não se refere apenas à dimensão financeira, tal qual o exemplo original, mas a como a sociedade compreende e valida conhecimentos e saberes científicos.

“Não percebemos a maneira como a ciência é feita e como ela enlaça o social, porque estamos sempre olhando para uma ciência que já está feita, que não está mais em movimento”, alerta Fernando Silva e Silva, professor e pesquisador da Associação de Pesquisas e Práticas em Humanidades – APPH, em entrevista concedida pessoalmente ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Com a tecnologia ocorre algo semelhante. “No momento que a tecnologia se consolida, ela, paradoxalmente, desaparece, senão torna-se um incômodo”, explica o pesquisador.

Costumamos não perceber a complexa rede em que ciência e tecnologia estão entrelaçadas. O entrevistado nos provoca: “Quanto custa eu nem pensar sobre ver a previsão do tempo no meu celular?”. Compreender todas essas mediações implicadas em nosso viver com a ciência e a tecnologia, algo a que Bruno Latour, autor estudado por Fernando Silva e Silva, dedicou-se longamente. “[Latour] está tentando articular a posição em que estamos atentos ao fato de que as verdades são cuidadosamente construídas e elas são relativas aos lugares em que são construídas e aos humanos e não-humanos que as mobilizam”, descreve.

É por isso, e Fernando faz uma brincadeira ilustrativa, que “a razão é perfeitamente racional e universal, assim como um cartão de crédito é perfeitamente global até irmos a um lugar em que ele não é aceito”. Daí a necessidade de compreender as razões da razão e superar a ideia vulgar de que “verdade vai vencer”.

Fernando Silva e Silva durante a conferência no IHU (Foto: Reprodução | YouTube)

Fernando Silva e Silva é professor e tradutor de alemão, francês e inglês. Pesquisa em diferentes campos, principalmente filosofia ambiental, história da ciência e conhecimento e estudos narrativos. Fundou e coordena na APPH o Grupo de Pesquisa em Ecologia das Práticas (GPEP) e coordena conjuntamente o projeto de pesquisa A Terra e nós (CNPq). É doutor em Filosofia (PUCRS), mestre em Estudos da Linguagem (UFRGS) e licenciado em Francês (UFRGS).

Esta entrevista será publicada em duas etapas.

Confira a primeira parte da entrevista.

IHU – Desejo começar nossa conversa por dois autores com os quais você tem familiaridade: Alfred North Whitehead e Bruno Latour. Como cada um deles compreende o conceito de ciência, quais são suas semelhanças e diferenças?

Fernando Silva e Silva – Nessa estrutura é importante lembrar que o Whitehead [1] antecede ao Latour [2]. É uma referência essencial. Inclusive ele morre no ano em que o Latour nasce, em 1947, em uma conexão geracional de passagem de um para outro. É uma relação muito medida pela presença e recepção da Isabelle Stengers [3].

O que é interessante de prestar atenção é que o Whitehead tem uma formação, primeiramente, em matemática, voltado às preocupações da física contemporânea na virada do século XIX para o XX, interessado pelas questões da física quântica e de como isso interessava e transformava a ciência, a filosofia e as concepções de natureza.

Whitehead vai ter uma posição tanto às questões mais internas quanto às externas à ciência, no sentido de que ele tinha as perguntas de físico e matemático que ele queria resolver – por exemplo, o próprio desenvolvimento da relatividade que contrapôs à einsteiniana, tentando trocar cartas com [Albert] Einstein [4] sobre isso –, tinha uma inclinação aos problemas científicos neste sentido, além de ter desenvolvido [em três volumes] a Principia Mathematica (Cambridge: Cambridge University Press, 2012) com o [Bertrand] Russell [5].

Ele tinha também uma análise histórica sobre o papel da ciência na Modernidade, como uma espécie de novo platonismo, recusando o aristotelismo da Idade Média que seria um dos fatores principais dessa reforma total da mentalidade. Principalmente os trabalhos de Galileu [Galilei] [6]e, depois, de [Isaac] Newton [7], que transformaram completamente as noções de tempo e espaço para as pessoas do período Moderno.

Para ele, a ciência é, por um lado, esse grande poder de abstração, capaz de gerar verdades (considerando o cuidado com as abstrações, isto é, suas relações com o real, com o concreto). Mas ele também vai pensar a ciência em sua trajetória histórica em que, junto de outras instituições, como a própria filosofia, mas também as instituições jurídicas, a religião, etc., vai reformar o sentido da Modernidade. Então, Whitehead tem esse interesse duplo e Latour vai herdar essa preocupação, no sentido de que interessa a ele, assim como interessou a muitos filósofos de seu tempo, da segunda metade do século XX até o contemporâneo.

O lugar da ciência

Interessou a estes autores repensar o lugar que a ciência ocupava na articulação social, entender o que é o político do fazer científico. Latour sempre teve a preocupação de não esquecer a especificidade da prática científica, de que existe algo que a ciência faz que lhe é específico e que não pode ser reduzido a mais uma teia de discursos ou mais uma teia de práticas. Ela é uma prática específica, mas ela também é uma prática única, que tem suas próprias exigências, suas próprias obrigações, suas maneiras de responder, seus modos de fazer verdade, etc.

Um pouco como eu falei sobre o Whitehead, Latour terá a preocupação de respeitar o que a própria comunidade científica faz, quais são seus critérios de validação, quais são seus interesses, quais são as maneiras de fazer perguntas, como que para essas pessoas as coisas valem e de que maneira elas têm ou não têm importância. E, partindo disso, entender como isso participa da tessitura do coletivo, da formação dos coletivos sociais que reúnem humanos e não-humanos. Então esse aspecto entre o interno e o externo é crucial e será algo que o próprio Latour vai teorizar muito. Como passamos do interno ao externo nessas mediações?

Uma diferença entre eles é que Whitehead vai se preocupar enquanto filósofo com o tipo de verdade que a ciência produz, como que isso interessa aos cientistas, mas não teoriza amplamente sobre a malha social que articula essas verdades. Ele se interessa e fala disso em diferentes textos, mas como ele não é sociólogo, como o Latour se propõe a ser (às vezes antropólogo, às vezes filósofo), Whitehead direciona a pergunta ou de cientista ou de filósofo à questão.

O (diferente) valor das coisas

A própria ideia do que é importante e do que tem valor é também uma articulação que Latour vai herdar de Whitehead. Esses dois conceitos – a ideia de valor e a ideia de importância – são termos que o filósofo e matemático inglês sugere para pensar, justamente, a maneira como algo conta, a maneira como algo tem validade. Esse aspecto será crucial, tanto para Latour quanto para Stengers. Diante de um de um certo tipo de relativismo que vai se articular em resposta ao autoritarismo das ciências, tenta-se chegar a uma espécie de consenso em que tudo teria a mesma importância ou de que tudo valeria de uma maneira mais ou menos igual.

Herdando essa articulação whiteheadiana, existe a preocupação de que as coisas nunca importam da mesma maneira. Tudo aquilo que existe tem importância, porque, se algo veio à existência, ele possui um valor relacional com outros existentes que tornaram aquela existência possível, mas as coisas não valem da mesma forma. Essa articulação do valor e da importância será um mediador importante a ser adicionado aqui a como as ciências são pensadas, porque justamente também vai ser um especificador delas. É um olhar direcionado ao que vale e ao que importa para uma pergunta da física, específica em relação à biologia ou à química, no sentido de que é possível respeitar cada disciplina científica. Não se trata de ciências em geral, ciências genéricas em que seria importante a verdade ou o método científico no sentido geral, mas para as quais existem coisas que importam e outras não.

IHU – Em Ciência em ação, segundo livro de Latour, o autor debate as noções de ciência e tecnologia encarnadas nas figuras de cientistas e engenheiros. Como ele lida com as diferenças e semelhanças entre estes dois domínios?

Fernando Silva e Silva – Tem essa articulação interessante de que eu estava falando sobre os interesses do Latour, de como essas verdades tecem o social e preparam sua malha. Isso transforma-se numa preocupação de, realmente, acompanhar como que um saber científico circula ou como que ele se faz valer.

Lá no fim da década de 1970, com Vida de laboratório (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997), Latour vai ao laboratório para entender como que naquela instância esses saberes são articulados até serem postos para fora do laboratório a partir de um artigo, de uma iniciativa ou um projeto que o governo financiará. Isto culminando, no caso do laboratório que ele estava pesquisando, em um Nobel concedido ao pesquisador [Roger Guillemin] [8] do Instituto Salk. Nos anos 1980, o livro Ciência em ação (São Paulo: Unesp, 2012) é uma sistematização, tanto disso quanto do que seriam, naquele momento, os primeiros passos daquilo que Latour – com a interlocução de Michel Callon [9] e Madeleine Akrich [10], na Universidade Mines ParisTech – passaria a chamar de “ator-rede”, mas antes de existir propriamente a obra.

Eles estão preocupados, naquele momento, em entender como que os saberes científicos circulam na malha social e têm um papel crucial de oferecer esses enlaces com não-humanos que tornam a malha do coletivo possível. Nesse sentido, Ciência em ação é publicado na década de 1980 sendo quase um manual. De certa forma, ele é a culminância tanto da pesquisa do vírus de laboratório quanto dos textos dessa época de Latour – até meados dos anos 1980 – tentando sistematizar como se chega a uma questão tecnocientífica e de que maneira a tecnociência vai tecer o social. Aí ele oferece essa tese fundamental do livro Ciência e ação: não percebemos a maneira como a ciência é feita e como ela enlaça o social, porque estamos sempre olhando para uma ciência que já está feita, que não está mais em movimento.

Metodologia histórica

Tanto na França quanto em uma certa linhagem anglófona de filosofia da ciência ou de história das ideias do século XX, uma espécie de metodologia histórica vai ser estabelecida. Seja na figura de Alexandre Koyré [11], seja na figura de Thomas Kuhn [12], ambos estão olhando para a história da ciência e dizendo o que aconteceu ou não aconteceu em dado momento, mas com a garantia, no fim das contas, de que eles sabem qual teoria venceu, o que deu certo ou não.

Os problemas em torno da simetria ou assimetria dessas narrativas é uma preocupação que aparece em Latour e que vai pautá-lo bastante, pensando em quais serão os desafios que surgem quando não olhamos para a ciência já sabendo o resultado, mas entrando nelas por meio do processo. Seja no presente, estudando algo que está em andamento, seja historicamente entendendo, o que havia naquele processo. Então, quais são as consequências teóricas e metodológicas disso?

Olhar a tecnologia, mas com que olhos

Ele vai aplicar a mesma perspectiva às questões tecnológicas de se relacionar com os aparatos técnicos não como conhecimentos adquiridos, mas como fazeres que foram desenvolvidos para propósitos específicos em certos momentos e obtiveram seu valor naquela construção. Com a tecnologia terá uma discussão ainda mais voltada à prática, porque Latour estará especialmente atento à maneira como elas se instauram e ocupam espaço como mediadoras das relações sociais, funcionando tanto melhor quanto mais invisíveis, estruturando-se como caixas-pretas.

Esse local que a tecnologia ocupa é especialmente interessante para Latour porque as ciências, bem ou mal, têm uma espécie de delimitação (onde os cientistas estão trabalhando). As tecnologias, porém, são coisas que permeiam toda a nossa vida, a todo momento (a tecnologia do copo, da mesa, dos computadores, celulares etc.), só que são invisibilizadas. No momento que a tecnologia se consolida, ela, paradoxalmente, desaparece, senão torna-se um incômodo. Se eu preciso pensar o tempo todo como o meu celular funciona, eu não consigo usar o celular. Então a funcionalidade dele precisa sumir. Essa contradição interessa muito a Latour.

Isso ocupa o espaço ambíguo quando nos voltamos a pesquisar a tecnologia, dada a invisibilidade que ela tem para nós. E, sobretudo, quando imaginamos o que será a tecnologia futura, porque se espera que será algo capaz de resolver qualquer outra coisa ou ocupar esse espaço em que ela faz desaparecer obstáculos. Essa expectativa afeta a maneira como se estuda, se imagina e se concebe a tecnologia.

Para Latour no livro Ciência em ação, levando em conta que naquele momento as caixas-pretas ainda não foram fechadas, ele percebe que a “boa” mediação tecnológica é aquela que se torna, ao mesmo tempo, invisível e obrigatória. A boa tecnologia é sempre esta: ela ocupa uma passagem que é obrigatória, ao mesmo tempo que não percebemos ou não pensamos que ela está ali.

IHU – Ela é invisível e incontornável...

Fernando Silva e Silva – Exatamente. Esse papel do intermediário é o grande propósito desse desenvolvimento tecnológico. Os livros posteriores de Latour serão afetados muito por esse momento social que se está vivendo a partir do fim da década de 1980. Ali não tinha acontecido ainda, mas em Jamais fomos modernos (São Paulo: Editora 34, 2019) vão aparecer questões relacionadas à queda do muro de Berlim e às mudanças climáticas.

Todas essas transformações passam a exigir da tecnologia soluções cada vez mais produtoras de mundo, que sejam capazes de dar conta de problemas de outra proporção. Ao mesmo tempo que, por uma espécie uma ideologia – que depois vai ganhar o nome de tecno-otimismo nas discussões a partir dos anos 2000 –, vai se construindo a crença de que a tecnologia finalmente é capaz de resolver qualquer problema social. Essa imagem faz com que seu papel de intermediária seja diluído, fazendo-a ser percebida como uma maneira de aniquilar os obstáculos, resolver absolutamente toda contradição, todo problema.

Latour terá um papel muito crucial de chamar atenção para a ciência, mas sobretudo para a tecnologia, em relação a quais agenciamentos materiais tornam possíveis tal intermediação, aparentemente invisível.

Não existe “ciência” grátis

Latour articula a seguinte pergunta, que é uma pergunta jamesiana [13] por excelência: quanto custa uma intermediação invisível? Essa pergunta do “quanto custa” – What is the cash-value? –, é uma coisa muito William James [14] e muito latouriana: quanto custa eu nem pensar sobre ver a previsão do tempo no meu celular? Não é algo dado, é algo que articula redes no mundo inteiro, para que naquele momento eu possa pegar um aparelho e olhar a previsão do tempo.

Latour chama atenção, justamente, para a existência do trabalho de uma mediação de humanos e não-humanos que torna possível a malha em que a ciência e a tecnologia produzem um espaço. Nada disso, porém, é dado e muito menos é algo pautado por uma mera flecha do progresso em que a ciência e a tecnologia, simplesmente num sentido genérico, avançam.

Latour chama a atenção que a ciência e a tecnologia são feitas de muitos desvios, muitas interrupções, muitas intermediações, mas que vão tornar possível esse fazer que elas praticam. Os personagens do cientista e do engenheiro – o Latour faz muito isso de pensar por personagens, é uma herança deleuziana em seu pensamento, pois ajudam a pensar o papel social que determinado personagem ocupa. O que o engenheiro faz na tessitura do social? E o que mais que essa pessoa poderia fazer por nós?

A imagem contemporânea dos engenheiros é de uma figura voltada a produzir estratégias mais avançadas de extração de valor (o que é uma dura realidade). É por isso que, geralmente, os melhores matemáticos vão para calcular investimentos em bolsas de valores e não para fazer ciência. Latour se preocupa com isso, com quais critérios que mobilizam a produção científica e a produção tecnológica tal como ela está articulada hoje. Esses personagens, levando em conta a posição em que Latour escreve, colocam em contraste o que filósofos, sociólogos e antropólogos fazem com os cientistas e engenheiros, uma vez que não são alienados do mundo, mas, sim, praticantes que produzem uma coletividade.

IHU – Sem entrar em um debate vulgar que coloca água no moinho do negacionismo científico, eu gostaria que você explicasse como Latour faz uma crítica à ciência enquanto “tribunal da razão”?

Fernando Silva e Silva – Esse papel de pensar as ciências está sempre pleno de armadilhas. Sobretudo desde que isso vem sendo discutido ao longo da segunda metade do século XX, houve um recrudescimento da posição científica disfarçada de certo realismo, no sentido de que quase qualquer reflexão sobre a ciência seria alguma espécie de negacionismo; seria algum questionamento do que é verdadeiro e sólido, o que tornou o debate muito sensível.

Nas décadas de 1970 e 1980, teremos a consolidação também de uma certa posição que seria chamada de relativismo, o que nos levou a estar entre a cruz e a espada: a cruz do realismo científico mais raso, e a espada do relativismo em que tudo vale a mesma coisa, não há diferenças.

Para Latour não é nem uma coisa, nem outra. Ele está tentando articular a posição em que estamos atentos ao fato de que as verdades são cuidadosamente construídas, e elas são relativas aos lugares em que são construídas e aos humanos e não-humanos que as mobilizam. Mas elas são verdadeiras justamente pelo fato de que assim foram feitas no sentido em que a objetividade ou o universal são coisas atingíveis, mas não estão dadas. Para uma ciência ou uma tecnologia poder funcionar de maneira universal, isto é, em qualquer lugar e em qualquer tempo, precisamos construir uma rede em que isso funcione, ou seja, não é algo dado pelos saberes científicos.

Um truque latouriano

Latour faz uma espécie de truque, como é muito dado em seus movimentos teóricos, em que ele diz: “Sim, podemos falar em objetividade, em verdade, até mesmo num universal, desde que estejamos atento ao fato de que tudo isso é construído coletivamente”. Ele tenta, de certa forma, pegar o que entende ser o melhor da posição realista e científica e o melhor da posição relativista, articulando o que chamamos, nesse período, de um “construtivismo” (mesmo nome usado por Stengers). Hoje, porém, tendemos a chamar de “pragmatismo especulativo” ou de “nova posição pragmática”.

Trata-se desse olhar atento à forma como as razões são feitas. Basicamente, a razão não pertence à ciência ou a uma ciência específica por direito, por nascimento, mas aos valores que possibilitam a circulação daquilo que entendemos ser razão, racional ou verdadeiro. Para usar uma imagem que ele repete muitas vezes: a razão é perfeitamente racional e universal, assim como um cartão de crédito é perfeitamente global até irmos a um lugar em que ele não é aceito.

A razão cobre perfeitamente o mundo inteiro, exceto onde não cobre, onde ela ainda não chegou, onde não criou ainda as redes que a sustentam naquele espaço. Não apenas no sentido de uma guerra pedagógica – como será muito presente na Modernidade – em que é preciso espalhar a razão pelo mundo, mas no sentido de que é preciso estabelecer, instalar em todo o social, a rede que faz circular a razão.

Outro fator importante é que, de novo, não será uma razão genérica; é a razão que sustenta certas verdades certas objetividades. Isso sempre vai dizer respeito a cada saber ou a cada tecnologia, porque as coisas circulam de maneiras assimétricas e não uniformes. Desse modo, a penetração de uma certa verdade científica não significa penetração de uma certa tecnologia, e vice-versa. Elas não se condicionam naturalmente nesse sentido.

As infraestruturas da razão

A disseminação da razão tal como compreendida na Modernidade, muito antes do que passar por uma ideia genérica de educação ou elevação ao verdadeiro, trata-se da instalação das infraestruturas que tornam aquelas verdades e aquelas tecnologias propriamente invisíveis e incontornáveis. Enquanto não estão postas em uma determinada malha, aquilo não tem como possuir tal ou tal valor, porque tais verdades e tecnologias circulam materialmente, isto é, não estão dadas acidentalmente pelo mero fato de serem “verdadeiras” ou “reais”.

Essa será a preocupação latouriana, desde Vida de laboratório (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997), com todos os passos de como uma verdade circula, como ela é passo a passo revalidada, avançada e transformada. Assim, ele elabora vários termos, como “centros de cálculo” e “tribunal da razão”, como sendo conceitos que pensam esses passos mediadores.

Ele acompanhará, neste livro, o que é analisado, seguindo certo protocolo, que funciona mais ou menos assim: há algo que não possui significado e isso se transforma na construção de um gráfico; mas o gráfico não possui significado até que ele passa a ser explicado e debatido em um artigo; o artigo não possui significado até circular entre a comunidade científica em uma revista reconhecida, etc.

Ele vai pensando sobre todos esses saltos que precisam ser dados, passo a passo, para que algo de fato encontre seu lugar de razão, ganhe sua forma enquanto verdade, sem jamais recorrer ao que foi – e ainda é – muito comum na maneira de pensar as ciências: a ideia de que o verdadeiro tem o direito de ser disseminado e absorvido simplesmente porque é verdadeiro. A verdade possuiria uma força elementar que encobriria todo e qualquer outro desafio de entendimento, de mediação etc. Uma mera ideia de que a verdade vai vencer.

Latour é totalmente contrário a essa posição, porque, para qualquer coisa poder se disseminar, ganhar corpo e persistir no tempo e no espaço, ela precisa se atrelar a outras coisas, o que é feito com os passos mediatórios.

Notas: 

[1] Alfred North Whitehead (1861-1947): filósofo, lógico e matemático britânico. É o fundador da escola filosófica conhecida como a filosofia do processo, atualmente aplicada em vários campos da ciência, como na ecologia, teologia, pedagogia, física, biologia, economia e psicologia. No início de sua carreira, dedicou-se à matemática, à lógica e à física. Seu primeiro grande trabalho foi O tratado sobre a álgebra universal (1898), onde buscou unificar a álgebra. Entre o fim da década de 1910 e o início da década seguinte, Whitehead enveredou-se gradualmente para a filosofia da ciência e para a metafísica. Nesse período, afastou-se do logicismo e passou a se dedicar à filosofia da natureza como mostrado nas obras Os princípios do conhecimento natural (1919) e O conceito da natureza (1920). Em Os princípios da relatividade (1922), ele faz uma abordagem crítica à teoria da relatividade de Albert Einstein. (Nota do IHU)

[2] Bruno Latour (1947-2022): antropólogo, sociólogo e filósofo da ciência francês. Um dos fundadores dos chamados Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT), sua principal contribuição teórica – ao lado de outros autores como Michel Callon – foi o desenvolvimento da teoria ator-rede que, ao analisar a atividade científica, considera tanto os atores humanos como os não humanos, estes últimos devido à sua vinculação ao princípio de simetria generalizada. Latour foi doutor em filosofia e professor do Institut d’Etudes Politiques de Paris (Sciences Po), professor da École Nationale Supérieure des Mines de Paris (Mines ParisTech) e da Universidade da Califórnia, em San Diego. Em setembro de 2007, tornou-se diretor científico e vice-diretor da Sciences Po. Atuou também como professor visitante da London School of Economics e da Universidade Harvard.

[3] Isabelle Stengers (1949): uma filósofa e historiadora belga, notável por sua contribuição à filosofia da ciência. Formada em química na Universidade Livre de Bruxelas, é autora de livros sobre teoria do caos, em parceria com o químico russo Ilya Prigogine. Seus mais recentes trabalhos referem-se à sua proposta de cosmopolítica, um aspecto-chave ao qual Bruno Latour se refere como composição progressiva de um mundo comum, no qual o não humano e o humano estão intimamente ligados. Além disso, ela também tem se dedicado à revisitação e modulação pragmática da filosofia especulativa de Alfred North Whitehead. Seu livro Cosmopolitics ganhou o Prêmio Ludwik Fleck de 2013. (Nota do IHU)

[4] Albert Einstein (1879-1955): físico teórico alemão, que desenvolveu a teoria da relatividade geral, um dos pilares da física moderna ao lado da mecânica quântica. Embora mais conhecido por sua fórmula de equivalência massa-energia (E=mc²), também chamada de “a equação mais famosa do mundo”, foi laureado com o Prêmio Nobel de Física de 1921 “por suas contribuições à física teórica” e, especialmente, por sua descoberta da lei do efeito fotoelétrico, que foi fundamental no estabelecimento da teoria quântica. A relatividade geral é uma teoria da gravitação que foi desenvolvida por Einstein entre 1907 e 1915, explicando a atração gravitacional observada entre massas que resulta da curvatura do espaço e do tempo. A relatividade geral tornou-se uma ferramenta essencial na astrofísica moderna. Ela fornece a base para o entendimento atual de buracos negros, regiões do espaço onde a atração gravitacional é tão forte que nem mesmo a luz pode escapar. (Nota do IHU)

[5] Bertrand Arthur William Russell (1872-1970): um dos mais influentes matemáticos, filósofos, ensaístas, historiadores e lógicos do século XX. Em vários momentos na sua vida, ele se considerou um pensador progressista, socialista e pacifista. Sendo um popularizador da filosofia, Russell foi respeitado por inúmeras pessoas como uma espécie de profeta da vida racional e da criatividade. A sua postura em vários temas foi controversa. Russell nasceu em 1872, no auge do poderio econômico e político do Reino Unido, e morreu em 1970, vítima de uma gripe, quando o império se tinha desmoronado e o seu poder drenado em duas guerras vitoriosas mas debilitantes. (Nota do IHU)

[6] Galileu Galilei (1564-1642): astrônomo, físico e engenheiro florentino, às vezes descrito como polímata. Frequentemente é referenciado como “pai da astronomia observacional”, “pai da física moderna”, “pai do método científico” e “pai da ciência moderna”. Galileu estudou o princípio da relatividade e fenômenos como a rapidez e a velocidade, a gravidade e a queda livre, a inércia e o movimento de projéteis, mas também trabalhou em ciência e tecnologia aplicadas. (Nota do IHU)

[7] Isaac Newton (1642-1727): matemático, físico, astrônomo, teólogo e autor inglês (descrito em seus dias como um “filósofo natural”), foi uma figura-chave na Revolução Científica. Seu livro Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica (Princípios matemáticos da filosofia natural), publicado em 1687, lançou as bases da mecânica clássica. Nele, Newton formulou as leis do movimento e da gravitação universal, que criaram o ponto de vista científico dominante até serem substituídas pela teoria da relatividade de Albert Einstein. Usou sua descrição matemática da gravidade para provar as leis de movimento planetário de Kepler, explicar as marés, as trajetórias dos cometas, a precessão dos equinócios e outros fenômenos, erradicando a dúvida sobre a heliocentricidade do Sistema Solar. (Nota do IHU)

[8] Roger Guillemin (1924-2024): endocrinologista francês. Foi agraciado com a Medalha Nacional de Ciências em 1976, e o Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1977, por estudos relacionados com vários hormônios produzidos pelo hipotálamo. (Nota do IHU)

[9] Michel Callon (1945): professor de Sociologia na École des Mines de Paris e investigador no Center for the Sociology of Innovation. A sua principal contribuição teórica foi ter elaborado, junto com Bruno Latour e John Law, a atual e inovadora teoria ator-rede, teoria que consiste na progressiva constituição de uma rede na qual atores humanos e não-humanos assumem identidades de acordo com a sua estratégia de interação. As qualidades e identidades dos atores são definidas através de processos de negociação entre atores humanos e não-humanos que são ambos encarados como variáveis na análise da atividade científica. (Nota do IHU)

[10] Madeleine Akrich (1959): socióloga francesa da tecnologia. Atuou como diretora do Centro de Sociologia da Inovação da Mines ParisTech de 2003 a 2013. Ela é conhecida por desenvolver a teoria ator-rede (TAR) com Bruno Latour, Michel Callon, John Law e outros. (Nota do IHU)

[11] Alexandre Koyré (1892-1964): filósofo francês de origem russa que escreveu sobre história e filosofia da ciência. Em Göttingen, na Alemanha, ele estudou com Edmund Husserl e David Hilbert. Husserl não aprovou a tese de Koyré, após o que este partiu para Paris. Depois das Meditações cartesianas de Husserl, uma série de conferências proferidas em Paris e um dos mais importantes trabalhos tardios deste filósofo, Koyré encontrou-se repetidamente com ele e influenciou a sua compreensão de Galileu Galilei. (Nota do IHU)

[12] Thomas Samuel Kuhn (1922-1996): físico, historiador e filósofo da ciência estadunidense. Seu trabalho incidiu sobre história da ciência e filosofia da ciência, tornando-se um marco no estudo do processo que leva ao desenvolvimento científico. Em 1962, com a publicação de A estrutura das revoluções científicas, Kuhn se tornou conhecido não mais como físico, mas como intelectual voltado para a história e a filosofia da ciência. A polêmica sobre sua obra gira em torno da noção de paradigma científico e da “incomensurabilidade” entre os paradigmas. (Nota do IHU)

[13] Relativa à perspectiva do filósofo William James. (Nota do IHU)

[14] William James (1842-1910): filósofo e psicólogo americano e o primeiro intelectual a oferecer um curso de psicologia nos Estados Unidos. James foi um dos principais pensadores do final do século XIX e é considerado por muitos como um dos filósofos mais influentes da história dos Estados Unidos enquanto outros o rotularam de “pai da psicologia americana”. Juntamente com Charles Sanders Peirce e John Dewey, é considerado uma das principais figuras associadas à escola filosófica conhecida como pragmatismo. (Nota do IHU)

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