Nós, humanos, precisamos abrir nossas mentes para a personalidade dos seres não-humanos. Artigo de Daniel P. Horan

(Foto: Zdeněk Macháček | Unsplash)

02 Julho 2022

 

“A mudança na visão humana sobre os seres não-humanos pode não resolver todas as nossas crises ecológicas e espirituais da noite para o dia, mas pode ajudar a renovar a maneira como vemos, pensamos, vivemos e oramos no mundo. E essa é apenas uma maneira de abraçar a 'conversão ecológica' que o Santo Padre continuamente nos chama a buscar”, escreve Daniel P. Horan, franciscano estadunidense, diretor do Centro de Espiritualidade e professor de Filosofia, Estudos Religiosos e Teologia no Saint Mary’s College, nos Estados Unidos, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 29-06-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

No segundo parágrafo de sua carta encíclica de 2015, “Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum”, o Papa Francisco reflete sobre as maneiras pelas quais a espécie humana maltratou e abusou da Terra, que ele chama de nossa “Irmã, Mãe Terra” na tradição de seu homônimo São Francisco de Assis. O Papa então afirma: “Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2, 7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos”.

 

Esta única frase diz muito. Ele reconhece o que tanto a narrativa da segunda criação no livro de Gênesis quanto as ciências naturais afirmam sobre nossos corpos humanos serem compostos do mesmo material que a Terra, ao mesmo tempo em que observamos que “esquecemos” – ou, talvez melhor, ignoramos deliberadamente – nossa inerente condição de criatura ao longo dos séculos. Como fica claro no restante do texto, Francisco acredita que uma das principais causas das crises ambientais que a Terra enfrenta hoje é causada em parte pelo egocentrismo da espécie humana.

 

Em outras palavras, o antropocentrismo é um grande problema.

 

Muitas vezes, nós, humanos, vivemos como se tudo fosse sobre nós e toda a criação não-humana se destinasse a fazermos o que quisermos. Francisco está entre os líderes religiosos que criticaram fortemente o antropocentrismo, observando que as criaturas não-humanas também são amadas por Deus e têm sua própria dignidade e bondade inerentes.

 

Teólogos católicos como a irmã Elizabeth Johnson, professora emérita da Fordham University, em seu livro de “Ask the Beasts: Darwin and the God of Love” (2014, “Pergunte aos animais: Darwin e o Deus de Amor”, em tradução livre), e mais recentemente em meu livro “All God's Creatures: A Theology of Creation” (2018, “Todas as criaturas de Deus: uma teologia da Criação”, em tradução livre) tece argumentos teológicos construtivos para uma compreensão renovada da criação não-humana e nosso lugar dentro do cosmos que leva a sério a ciência e a religião, a razão e a tradição.

 

Ao longo dos anos, em vários artigos acadêmicos e capítulos de livros, também argumentei contra um senso de agência muito restrito, que tradicionalmente – certamente na era pós-Iluminismo ocidental – limitou quais criaturas experimentam a criação de significado ou implantou um tipo de agência apenas para os seres humanos. Eu certamente não sou o único a fazer tal argumento enraizado na teologia e nas ciências naturais. Por exemplo, penso no tremendo trabalho do teólogo Eric Daryl Meyer, do Carroll College, entre outros.

 

Mas o que foi agradavelmente surpreendente para mim é o interessante aumento na cobertura de tais ideias nas principais publicações seculares nos últimos meses.

 

As explorações da ideia de personalidade animal não-humana ou de mundos conscientes que habitam eram geralmente reservadas para etólogos e outros especialistas científicos. Da mesma forma, as considerações de redes complexas de comunicação e cooperação da vida vegetal eram do domínio de pesquisadores e estudantes de pós-graduação. Embora tenha exceções inovadoras, como o trabalho pioneiro de Jane Goodall e os conhecidos livros de Frans de Waal, a maioria do público em geral não deu muita atenção a esses temas.

 

E então, na edição de 07 de março de 2022 da The New Yorker, o redator  Lawrence Wright publicou um longo artigo intitulado “The Elephant in the Courtroom” (“O elefante na sala”, em tradução livre, disponível em inglês, neste link), sobre a luta legal para reconhecer a personalidade de animais não-humanos e seus direitos, especialmente contra ser detido por diversão ou entretenimento humano.

 

Três meses depois, na edição de 13 de junho da The New Yorker, a redatora Elizabeth Kolbert publicou um artigo intitulado “The Strange and Secret Ways That Animals Perceive the World” (“As estranhas e secretas maneiras que os animais percebem o mundo”, em tradução livre, disponível em inglês, neste link).

 

A inspiração de Kolbert veio do trabalho de outro jornalista científico, Ed Yong, que trabalha na revista The Atlantic e foi vencedor do Prêmio Pulitzer, cujo novo livro é intitulado “An Immense World: How Animal Senses Reveal the Hidden Realms Around Us” (“Um mundo imenso: como os sentidos animais revelam os reinos escondidos em nosso entorno”, em tradução livre), e seus trechos foram publicados na The Atlantic (disponível em inglês, neste link).

 

O livro magistral de Yong é o mais recente de uma linha de trabalho que remonta pelo menos à virada do século XX e ao desenvolvimento do campo da biossemiótica pelo filósofo e zoólogo estoniano Jakob von Uexküll (deve-se reconhecer que Uexküll foi até certo momento membro do partido nazista, mas pesquisadores também aponta que ele se distanciou da ideologia nazista, fazendo declarações públicas em oposição às políticas racistas e antissemitas).

 

Entre os conceitos-chave pioneiros de Uexküll estava a noção de umwelt (alemão para “ambiente” ou “percepção do mundo”), que ele usou para descrever o mundo como sentido, experimentado e entendido por um determinado animal. Sugeri que os corpos dos animais são semelhantes a uma casa na qual há muitas janelas que dão para partes do mundo e essas janelas permitem a entrada de dados sensoriais que podem ser percebidos (visão, som, paladar, tato etc.) com as habilidades da criatura dada.

 

Todos nós — humanos, formigas, pássaros, esquilos e assim por diante — podemos habitar um espaço semelhante (como um jardim), mas nossa experiência, percepção e compreensão desse espaço é condicionada pela composição biológica e o “mundo” ou “meio ambiente” que vivenciamos é nosso respectivo “umwelt”.

 

Cada criatura, do carrapato ao humano, tem uma experiência relativa do mundo e da construção de sentido. Yong resume as implicações disso: “Ao contrário de muitos de seus contemporâneos, Uexküll via os animais não como meras máquinas, mas como entidades sencientes, cujos mundos internos não apenas existiam, mas valiam a pena contemplar”.

 

Uexküll não afirmou que todas as criaturas — humanas e não-humanas — tinham o mesmo valor ou dignidade. Em vez disso, ele fez a afirmação ousada de que só porque um carrapato ou um esquilo não experimenta o mundo como nós, humanos, não significa que eles não tenham uma experiência profunda e particular do mundo à sua maneira.

 

Durante grande parte de nossa história humana moderna, presumimos nossa absoluta singularidade como espécie, negando a possibilidade de inteligência, emoção, raciocínio moral, construção de relacionamentos e até mesmo tipos de experiência religiosa para animais não-humanos. Nós simplesmente assumimos que outras criaturas são, como René Descartes argumentou no início do século XVII, meras máquinas de carne que apenas simulam sentimentos.

 

 

Não é preciso muito esforço para ver como um antropocentrismo tão rígido, o que o teólogo moral britânico David Clough chamou de “separatismo humano”, contribuiu para nosso tratamento abominável de animais não humanos ao longo dos anos – da caça à extinção e à criação industrial, à experimentação científica, a circos e zoológicos.

 

Independentemente de os tribunais dos Estados Unidos concederem direitos legais a alguns seres não-humanos, conforme descrito na cobertura de Wright do caso do elefante (e eu diria que há boas razões para pelo menos alguma forma de reconhecimento legal da personalidade de alguns seres não-humanos, particularmente quando você considerar que as corporações são reconhecidas como “pessoas jurídicas” com certos direitos no sistema americano), acredito que nós humanos precisamos ajustar nosso senso de mundo mais que humano.

 

Em vez de fingir que o mundo ao nosso redor – e o bioma dentro de nós – é apenas algum tipo de pano de fundo inerte e estático para a vida humana, talvez possamos abrir nossas mentes para reconhecer que criaturas não-humanas também estão vivendo plenamente neste mundo, o que Francisco chama “nossa casa comum”. Da mesma forma, faríamos bem em reconhecer nossa interdependência e conexão inextricável com o resto da criação. Também somos criaturas, mesmo que queiramos fingir o contrário.

 

Se você está procurando uma fonte de inspiração nesse sentido, você pode conferir a série de cinco volumes recentemente publicada intitulada “Kinship: Belonging in a World of Relations” (“Parentesco: pertencimento em um mundo de relações”, em tradução livre), produzida pelo Center for Humans and Nature em Illinois. Esses volumes, coeditados por Gavin Van Horn, Robin Wall Kimmerer e John Hausdoerffer, contêm ensaios e poesias que convidam à reflexão e consideração do mundo humano e não-humano através das lentes de nossa interconexão inerente.

 

Essa mudança na visão humana sobre os seres não-humanos pode não resolver todas as nossas crises ecológicas e espirituais da noite para o dia, mas pode ajudar a renovar a maneira como vemos, pensamos, vivemos e oramos no mundo. E essa é apenas uma maneira de abraçar a “conversão ecológica” que o Santo Padre continuamente nos chama a buscar.

 

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