Teologia animalista: o olhar de Deus e do ser humano sobre os animais

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04 Junho 2022

 

"A nossa relação com os animais mudou. Mudou também o nosso imaginário sociocultural. Agora nos perguntamos se os animais têm uma alma, se eles vão para o paraíso. O próprio Papa Francisco fala de um 'pecado' contra os animais. O respeito, senão o amor, por todas as criaturas (não humanas sencientes ou não) está inscrito na mensagem cristã que muitos compreendem e vivem, mas outros não. Somos chamados a tratar os animais com gentileza e responsabilidade".

 

Publicamos aqui o editorial da revista CredereOggi, n. 248, de maio de 2022, que tem como tema central a “Teologia animalista”. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

“O homem pode e deve amar as criaturas de Deus. De Deus ele as recebe e as guarda [respicit] e as honra como se no presente saíssem das mãos de Deus” (GS 37).

 

Não que antigamente as coisas eram melhores para os animais; nós sempre os exploramos, certamente não em sentido cooperativo. O “respeito” que lhes demos também vinha quase sempre de uma vantagem ponderada. Exceto para os santos, que em grande número conviviam com os animais [1], ou para aqueles que precisavam de companhia. Como hoje.

 

De fato, hoje a relação parece ter se radicalizado: por um lado, a exploração é cientificamente organizada para alimentação, lucro, ciência, esporte: bilhões de criaturas que são cruelmente dizimadas (talvez convencidos de lhes evitar dolorosas torturas); por outro lado, igualmente exploradas mesmo que para companhia, por diversão, até mesmo para terapia: milhões de criaturas que, por exemplo, são castradas (com anestesia, por favor!) ou segregadas nos ambientes das nossas casas.

 

Os animais hoje são criaturas sofredoras, sofrem violência  seja quando nós as matamos impunemente, seja quando, como amigos (ineptos), não respeitamos a sua “natureza”. Mas quem pensamos que somos na criação?

 

Deveríamos começar com essa pergunta antes de nos envolvermos em longas discussões éticas. Porque, antes mesmo de avaliar a relação utilitarista e emocional com os animais, temos o dever de tomar consciência do nosso delírio de onipotência em relação a eles e à criação inteira.

 

E falamos de criação porque o horizonte de compreensão do agir salvífico de Deus é sempre cósmico. A sua ação eletiva em relação à humanidade não a torna “extraterrestre”, mas especial, assim como pode ser especial quem se ama.

 

Essa espécie humana traz em si o sinal (rompido, aliás) do amor de Deus que constitui toda a criação. A graça dessa eleição é dada à humanidade como mandato para agir pela salvação de todo o cosmos no seguimento de Cristo e segundo o seu estilo. Que certamente não é o do poder despótico, mas sim o da mediação e do serviço; em uma palavra, da responsabilidade.

 

Até aqui, nada de novo. A teologia da criação, a cristologia e a antropologia orientadas em sentido histórico-salvífico têm trilhado caminhos de reflexão que levaram a uma recentralização da ideia de criação, do seu dinamismo interno, impressão do dinamismo trinitário divino. Teologias que não podem se dizer definitivamente completas, mas em contínua elaboração. Sobretudo a antropologia, cujas questões se reavivam sempre que entra em diálogo/confronto com as interrogações levantadas pelos saberes da melhor cultura científica.

 

Para não exagerar no recuo na história, basta pensar nos efeitos do encontro entre teologia e ecologia. Só nos resta nos referirmos à Laudato si’. Aí encontramos uma série de questões que dizem respeito aos animais. O Prof. Lintner falará disso no seu artigo.

 

Decidimos dedicar um fascículo inteiro à questão dos animais na tentativa de traçar as coordenadas de fundo de uma teologia que, ao término desta análise, nos parece incompleta, senão justamente ausente. Não é o caso de pensar em um tratado em si, mas de prestar uma nova atenção a eles, dedicada ao esclarecimento daquilo que lhes é dado ser e viver envolvidos como estão no grande mistério da salvação. Não bastam mais as referências fugazes, as poucas linhas que lhes são dedicadas nas teologias da criação e nas diversas antropologias teológicas.

 

A nossa relação com os animais mudou. Mudou também o nosso imaginário sociocultural. Agora nos perguntamos se os animais têm uma alma, se eles vão para o paraíso. O próprio Papa Francisco fala de um “pecado” contra os animais. O respeito, senão o amor, por todas as criaturas (não humanas sencientes ou não) está inscrito na mensagem cristã que muitos compreendem e vivem, mas outros não. Somos chamados a tratar os animais com gentileza e responsabilidade.

 

Até aqui estamos cada vez mais de acordo, (quase) todos. Mas quando vamos motivar essas ações na raiz a confusão ainda é grande não só no âmbito filosófico-cultural, mas também no teológico. Entre antropocentrismo, biocentrismo e ecocentrismo, especismo e antiespecismo, animalismo e veganismo, a reflexão muitas vezes se torna bioética, às vezes zooantropológica. Assume-se como evidente ou talvez já concluída a reflexão teológica?

 

Pensamos, pelo contrário, que ela deve interrogar mais a fundo e tematizar Deus, o ser humano e a criação, por exemplo, diante do mistério do sofrimento animal que é bem mais radical do que a interrogação do sofrimento humano (acorrentado ao pecado). Assim como deve ser repensado mais a fundo o sentido da perturbação das naturezas sencientes e não sencientes. Em permanente conexão com o ser humano, tais naturezas sofrem, inculpáveis, o seu desequilíbrio radical.

 

Entre os teólogos, ainda há muito medo de arriscar uma reflexão sistemática, uma zooteologia, se poderia dizer, adequada: urgente, mas parece ainda complicada, difícil de desvendar entre arché e éschaton, lógos trinitário e lógoi das criaturas, Cristo primogênito de todas as criaturas… ensinam Moltmann e poucos outros (Linzey, Gaillard).

 

Talvez ainda temamos demais as implicações éticas de tal teologia? Ou se temem desvios esotéricos ou os excessos humanizantes? Falsos temores, que mascaram a incompletude de uma humanidade que se descobre constantemente nua, intencionada a se espelhar (e a se exasperar) narcisicamente na própria diferença específica, esquecendo a terra e o animal de onde todos provêm.

 

O leitor saberá tirar uma conclusão disso ao ler as várias contribuições dos colaboradores que propõem pistas de reflexão em diálogo com as ciências naturais para entender as suas consequências em nível filosófico e teológico. São inevitáveis, além disso, as interações com as várias abordagens da ética filosófica animal em relação com a ética teológica.

 

Certamente não pudemos interrogar todas as várias interações homem-animal, mas nos bastou dar a perceber, farejar e sentir as condições teológicas a serem desenvolvidas (!) para nos habilitar em um fecundo diálogo interdisciplinar, capaz de nos fazer entrar em uma era nova, integralmente ecológica, capaz de celebrar na fé e na práxis o oitavo dia de todas as criaturas do planeta e do cosmos.

 

A monografia começa pelo motivo que lhe deu origem: a necessidade de compreender melhor aquelas passagens da Laudato si’ em que o papa volta a sua atenção para as criaturas não humanas e, de modo particular, para o mundo animal. Um “antropocentrismo desordenado” (cf. LS 68-69, 119), que vê o ser humano no centro de tudo, despótico ou indiferente em relação às outras criaturas, se contrapõe hoje a um biocentrismo que coloca o ser humano e os animais no mesmo nível. Dois desvios de uma relação que deve primeiro ser repensada e depois reavaliada também no âmbito teológico.

 

Ao se desviar de ambas, a encíclica não ditaria exatamente uma mudança de paradigma, afirma Martin M. Lintner (“A importância da Laudato si’ para a ética animal cristã: uma mudança de paradigma?”), mas certamente chega a uma passagem que a teologia terá que percorrer e ultrapassar, recalibrando o sentido autêntico de um “antropocentrismo” ecológico feito de responsabilidade mais do que de dignidade altiva.

 

No âmbito da teologia bíblica, Piero Stefani (“Os animais na Bíblia”) relembra imediata e precisamente o que há de mais mal compreendido em muitas intervenções sobre a questão: a Escritura se move no âmbito da criação, e não no da natureza, razão pela qual o discurso sobre os animais está soldado ao de Deus e do ser humano, e se articula entre narrativas e preceitos (puro/impuro). Muitas das “teologias” releem essas raízes a partir das filosofias de referência assim como, por outro lado, muitas das contestações mais desenvoltas.

 

Como uma simples revista, certamente não conseguiremos elaborar detalhadamente uma reflexão ampla e homogênea, mas podemos propor algumas harmônicas cujas frequências resultam das reflexões hodiernas mais atualizadas.

 

Uma delas é a interrogação sobre a salvação dos animais. Isto é, parece impossível que o paraíso não se abra também aos animais. No entanto, foi (e para muitos ainda é) uma doutrina bem estabelecida o fato de que a vida eterna com e junto de Deus está reservada apenas para os humanos. As razões são muitas, mas também contraditórias. Christoph J. Amor (“O cumprimento escatológico dos animais. Uma esperança e as suas motivações”) reflete sobre isso e, com astuta essencialidade, conduz o leitor a assumir o resultado de uma teologia que já não tem dúvidas: os animais não apenas fazem parte da criação, mas também estão incluídos e envolvidos na história da salvação até o seu cumprimento último.

 

Se toda a criação está incluída no evento salvífico de Cristo, isso não deve suscitar tantos afetos e orações piedosas ou ser o motivo para retóricas animalistas, mas deve se concretizar em atitudes e ações concretas em relação aos animais e à natureza, a fim de instaurar e praticar uma relação correta e respeitosa do status específico de cada ser vivo. Mas qual é o status moral dos animais? Retomando a longa reflexão filosófica e teológica sobre o tema, Francesco Allegri (“Abordagens filosóficas à ética animal”) responde ilustrando as várias posições, desde a antianimalista (a moral é um assunto exclusivamente humano), passando pela opção “animalista moderada” (não se deve fazer sofrer os animais sencientes...) até a “forte” (todos os indivíduos dotados de sensibilidade gozam de um status moral de destaque, independentemente das diferenças) para acabar com a opção “animalista radicais” (humanos e animais têm crédito moral igual).

 

A etologia e a biologia desmentiram muitas das teses sobre a superioridade da espécie humana. O ser humano depende de um irreprimível fundo animal a partir do qual se diversifica para uma forma de vida totalmente própria. A teologia, sem exagerar mais ao se apropriar de diferenças ontológicas de natureza divina, mas consciente hoje de uma inadiável vocação ao cuidado de cada ser vivo, também deve assumir a responsabilidade como critério de ação. Markus Moling (“Ética animal em diálogo com a etologia”) fala sobre isso, especificando como deve ser entendida e conjugada a “diferença antropológica”.

 

Outro tema importante, em certo sentido central no debate contemporâneo justamente sobre a questão animal, é a exploração (econômica) dos animais. Há sofrimento em tudo isso. Os animais sentem, sofrem, temem, sofrem danos, constrições e castrações. O fato de não questionarem o seu sentido não significa que não sintam a sua mordida. A nossa, aliás. Giuseppe Bertoni (“Ética animal e regime de nutrição”) nos fala da escolha do ser humano de recorrer à utilização dos animais, em particular falando dos criadouros. Às vezes, tem-se a suspeita de que o ser humano, ainda hoje, remove o animal do qual continua a provir e aborda a questão com uma dupla moral: ele se compraz em considerá-los “próximos”, ignorando a sua pesada e obtusa exploração.

 

Como se pode superar a dicotomia humano-animal? Como ambos podem conviver em uma dimensão existencial comum? Giannella Biddau (“O significado da empatia para a ética animal”) sugere desenvolver “o habitus empático”, uma relação que “pode superar o diferencialismo entre ser humano e animal”, colocando-os em um circuito de recíproca influência, uma “experiência salvífica” para ambos.

 

Depois desses esboços – porque assim permanecem, se olharmos para a complexidade das temáticas teológicas envolvidas, não apenas no âmbito ético, mas também no da teodiceia e da antropologia – reservamos uma reflexão que olha além da tradição ocidental para investigar como o mundo cristão-ortodoxo se posiciona a respeito do tema tratado. Lá onde se fala de “divina humanidade”, no que diz respeito à origem e ao destino do ser humano, de “cocriaturalidade”, no que diz respeito à condição de seres humanos, animais e plantas, e de universalidade, unidade e comunhão (sobornost) de tudo, como se dá a relação com a criação e com os animais? Pietro Chiaranz (“Animais e criado na tradição teológica ortodoxa”) nos fala sobre isso.

 

Um aspecto em comum entre as duas tradições, oriental e ocidental, é a imensa experiência que a vida dos santos nos oferece: uma chave hermenêutica necessária para construir ou, melhor, reconstruir, uma nova abordagem aos animais nem sempre pensada da melhor forma possível pela própria razão teológica nos dois milênios de cristianismo. A própria encíclica Laudato si’ exemplifica a sua importância desde o acordo inicial assumido por São Francisco de Assis. Optamos por falar sobre isso, porém, a partir da perspectiva monástica na necessária (e oportuna) síntese preparada por Michael Rosenberger (“Tradição monástica e animais”).

 

Na seção Documentação, disponibilizamos ao leitor em tradução dois textos de autores diferentes que iluminam aspectos particulares do tema central do fascículo. O primeiro é uma reflexão do frade capuchinho Anton Rotzetter (“O animal como sujeito em São Francisco. Uma perspectiva até agora pouco percebida”) que oferece uma perspectiva até agora não captada acerca da “sujeitualidade” animal em São Francisco.

 

E o outro é uma intervenção do teólogo Heike Baranzke (“As diferenciações são necessárias”) que resume os termos da discussão sobre a “dignidade das criaturas” em relação à humana, como delineada na Constituição suíça. Um exemplo laborioso, mas bem-sucedido.

 

Notas:

1. A revista já dedicou ao tema uma monografia intitulada “Os santos e os animais”, em CredereOggi 27 (6/2007), n. 162.

 

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