"Há uma defasagem entre as massas sedentas por uma mudança radical e um projeto de esquerda transnacional viável"

O negócio da guerra é uma das bases de sustentação da economia capitalista. Nesta entrevista, William I. Robinson desenvolve sua convicção de que as políticas de mão dura podem nos arrastar para a III Guerra Mundial.

Foto: Emmanuel Ikwuegbu | Unsplash

15 Dezembro 2023

William I. Robinson (Nova York, 1959) é o autor de "Mano dura. El Estado policial global, los nuevos fascismos y el capitalismo del siglo XXI", um ensaio publicado pela Errata Naturae que vincula duas disciplinas frequentemente consideradas separadamente, ou seja, as políticas coercitivas de controle social e a análise da economia mundial. Professor de sociologia na Universidade da Califórnia, Robinson se expressa em um espanhol perfeito, pois pesquisou in loco o processo revolucionário que ocorreu na Venezuela sob o comando de Hugo Chávez.

A entrevista com William I. Robinson é de Pablo Elorduy, publicada por El Salto, 13-12-2023. 

Eis a entrevista.

O que significa esse "Estado policial global"?

O Estado policial global refere-se a três coisas. A primeira dimensão é a necessidade dos grupos dominantes, o que chamo de classe capitalista transnacional, de expandir os sistemas de controle social e repressão transnacional diante da revolta popular global que está ganhando força. Mas também é uma forma de conter a potencialidade que a "humanidade excedente" e as classes populares ao redor do mundo têm de desafiar o sistema. Os níveis de concentração de riqueza estão cada vez mais nas mãos de poucos, algo sem precedentes. Nunca vimos desigualdades tão agudas. Além disso, sabemos que as fileiras da "humanidade excedente" estão se expandindo rapidamente. São de dois a três bilhões de pessoas no setor informal, excluídas. E essas fileiras continuam a se expandir. Como resultado, a função de controle social, de repressão, torna-se cada vez mais urgente para os grupos dominantes. Muitas pessoas reconhecem essa primeira dimensão do Estado policial global, mas a segunda dimensão é igualmente ou mais importante.

Qual é essa segunda dimensão?

Refere-se ao que eu chamo de "acumulação militarizada" ou "acumulação por repressão". O capitalismo global tem enfrentado uma crise estrutural muito profunda desde 2001, quando os primeiros sinais surgiram com o estouro da bolha das empresas ponto com. Mas, na realidade, é a partir do colapso do sistema financeiro global em 2008 que a crise estrutural, ou o que chamamos mais academicamente de crise de superacumulação, se torna extremamente aguda. A classe capitalista transnacional acumulou e continua acumulando enormes quantidades de lucros, e não tem saídas para descarregar esse excedente. Assim, as guerras de baixa e alta intensidade, os sistemas de repressão, controle social, muros fronteiriços, guerras contra drogas, guerras contra migrantes, guerras contra minorias raciais e religiosas, etc., qualquer conflito social se torna uma oportunidade para acumular capital. Ou seja, o Estado policial global é enormemente lucrativo.

William I. Robinson. (Foto: Acervo Pessoal)

Você pode dar exemplos?

Vou dar dois exemplos que não estão no livro porque ocorreram após a publicação do livro em inglês em 2020. Primeiro, a invasão russa da Ucrânia e, segundo, a guerra que está ocorrendo, enquanto falamos, em Gaza. Em ambos os casos, são tragédias para os povos, mas são enormes oportunidades para a acumulação de capitais. São presentes para a classe capitalista transnacional. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, o valor das ações das principais empresas militares industriais experimentou um aumento imediato. E vale a pena lembrar que essas empresas estão vinculadas aos grandes conglomerados financeiros, que são investidores nas empresas, e também às grandes empresas de alta tecnologia. Cito um porta-voz para Northrop Grumman, Raytheon, General Dynamics e Lockheed Martin, grandes corporações transnacionais do complexo militar-industrial. Este porta-voz disse que o Sr. Putin é a melhor pessoa que eles têm para continuar lucrando e para a indústria militar. Esta é uma citação exata: "Os bons dias chegaram".

O segundo exemplo é o que está acontecendo na Palestina.

No momento em que Israel lançou sua ofensiva contra Gaza, as ações dessas empresas subiram. O CEO da Raytheon disse que essas ações e a solicitação feita por Biden de 106 bilhões de dólares em ajuda para Israel "encaixam perfeitamente bem com nosso portfólio". Isso dá uma ideia de quão lucrativo é o Estado policial global em momentos em que a economia civil, a economia capitalista global, está em um impasse crônico e quando outras possibilidades de investimento lucrativas estão sendo limitadas, outras saídas para descarregar todo esse excedente acumulado.

Qual é a terceira característica do Estado policial global?

A última dimensão está orientada para realizar o controle social para lidar com as contradições explosivas de um capitalismo global em crise. Estamos vendo, academicamente falando, uma transição do controle social consensual para o controle social coercitivo. Isso envolve o surgimento de projetos fascistas, ditatoriais, autoritários, como resposta à crise em todo o mundo. Existe uma necessidade cada vez mais urgente por parte dos grupos dominantes de manter o controle social sobre as massas que estão em plena revolta global.

Você falou de uma crise existencial. Por que essa crise, derivada da de 2008, é diferente de crises econômicas anteriores?

Há várias razões. Mas comecemos com algo que não abordei totalmente no livro: é a crise do colapso da biosfera. Essa é uma dimensão da crise, não apenas do capitalismo global, mas da humanidade. O problema é que é uma contradição fundamental para um sistema que precisa e tem uma única prioridade, que é a constante acumulação de capital. Diante do estagnação, o capital transnacional busca como expandir, como abrir novos espaços de acumulação. E isso significa que se deve privatizar, que se deve invadir cada vez mais espaço da natureza. Isso significa que não pode existir uma transição verde porque o lucro o impede. Isso se demonstra na reunião que está ocorrendo nos Emirados Árabes Unidos: o diretor de toda essa Conferência das Nações Unidas é também o executivo da companhia petrolífera do país. Houve pelo menos três grandes crises no capitalismo mundial, a crise do petróleo dos anos 70, a Grande Depressão dos anos 30 – ambas no século XX – e, antes disso, a crise do final do século XXI. Cada uma dessas crises teve consequências graves. Uma nos conduziu à Segunda Guerra Mundial; todas conduziram a novas rodadas de colonialismo e imperialismo e a conflitos. Mas essas crises foram resolvidas. Qual é a diferença agora? Primeiro, a dimensão ecológica.

Há mais fatores além da crise ecológica?

Vamos olhar historicamente. O problema da crise da Grande Depressão dos anos 1930 era que não havia capacidade de mercado para absorver a produção do sistema capitalista: o controle de toda a riqueza e todos os recursos estava nas mãos dos capitalistas. Então, por meio das lutas, das ferrenhas lutas, das classes trabalhadoras e populares ao redor do mundo e – após a Segunda Guerra Mundial –, dos movimentos de libertação nacional do Terceiro Mundo, ocorreu um novo tipo de capitalismo que pode ser chamado de capitalismo redistributivo, como o chamo no livro, capitalismo da democracia social ou de bem-estar social. Esse capitalismo resolveu a crise em que se encontrava porque abriu mercados. Era um tipo de acordo entre as classes a partir da redistribuição. Mas, a partir dos anos 70, como resposta à próxima crise estrutural, o capital lança a globalização. Isso é feito para escapar do aprisionamento do Estado-nação, das políticas redistributivas e reguladoras do Estado-nação. E, uma vez que o capital escapa do Estado-nação, não pode mais ser regulamentado.

Por quê?

Não se podem impor medidas redistributivas porque o capital pode contornar o Estado-nação, os movimentos sociais, trabalhistas, sindicais e populares, que se desenvolvem em nível de Estado-nação. Isso é o que tem levado aos níveis de desigualdade e polarização social sem precedentes na história da humanidade. Isso ocorre há várias décadas, mas está se tornando cada vez mais agudo. Tudo indica que essa polarização social, essa desigualdade, se intensificará com a introdução das novas tecnologias, especialmente a inteligência artificial. Isso ampliará as fileiras dos desempregados, dos subempregados e daqueles que trabalham em condições muito precárias. Em resumo, além da crise ecológica, há uma crise de reprodução social: a grande massa da humanidade não tem como sobreviver.

Quais são as consequências disso?

O fato de haver uma massa da humanidade, talvez a maioria da humanidade, que não pode sobreviver, não significa necessariamente uma crise para o capital. Apenas significa uma crise para o capitalismo global sob duas instâncias: uma é quando essa massa, por desespero, desafia o sistema, tenta transformá-lo ou derrubá-lo. E é para isso que estamos indo. E segundo, representa uma crise para o sistema quando não pode mais continuar produzindo, porque há regiões que estão em colapso total, onde os mercados de trabalho entram em colapso devido a essa crise de reprodução social. Por último, há mais uma coisa, que é que estamos caminhando para uma terceira Guerra Mundial. E a humanidade não sobreviveria a essa: 20 milhões de mortos na Primeira Guerra Mundial; 80 milhões na Segunda Guerra Mundial. Mas a humanidade sobreviveu. O capitalismo mundial sobreviveu. Ele se reestruturou, viveu mais. Mas não sobreviveríamos a uma Terceira Guerra Mundial.

Você mencionou o conceito de "humanidade excedente", aquela que não tem emprego nem formas de sobrevivência em seu território. Qual é o tratamento dado a essas massas de população pelo Estado policial global?

Em dezembro de 2023, estamos vendo a resposta para a pergunta de como controlar a humanidade excedente: a resposta está em Gaza. Israel colonizou a Palestina. Ocupa militarmente a Cisjordânia e Gaza. Mas, até recentemente, os palestinos eram a mão de obra superexplorada, barata, controlada que Israel usava para agricultura, indústria, setor de serviços. Centenas de milhares de trabalhadores palestinos atravessavam de Cisjordânia e, anteriormente, de Gaza. A partir do início do século, Israel mudou sua estratégia. A nova estratégia é importar mão de obra migrante das Filipinas, do Sri Lanka, do Paquistão, da Índia, da Tailândia, do norte da África, de muitas outras partes. É mão de obra migrante que a qualquer momento pode ser deportada, expulsa; que não está reivindicando direitos civis, políticos, de cidadania, etc., porque são migrantes temporários e estão fortemente controlados por fronteiras transnacionais. Então, de repente, a partir de 2002-2003, os palestinos passam de ser mão de obra superexplorada a mão de obra excedente e supérflua. Nesse momento, começa a pressão até chegar a esse genocídio.

Quais são as respostas que os grupos dominantes têm para controlar a mão de obra excedente?

O primeiro é militarizar as fronteiras. Estamos vendo uma tremenda escalada de migrações transnacionais. Centenas de milhares de pessoas estão chegando da África, Ásia, América do Sul, atravessando a América Central, México, tentando chegar aos Estados Unidos. Estamos vendo que do Oriente Médio, da Ásia, da África, estão tentando entrar na Europa. Há colapso nas comunidades de onde vêm. É uma crise de reprodução social, há uma impossibilidade de sobreviver. Então, o que podem fazer os grupos dominantes diante dessas crescentes fileiras da humanidade supérflua? No pior dos casos, é o genocídio, como estamos vendo em Gaza. Mas, além disso, são criadas fortalezas ao redor das áreas onde vivem as camadas privilegiadas e todo o mundo se torna uma fortaleza. As tecnologias de vigilância e controle social são extremamente sofisticadas. Elas podem captar cada comunicação no planeta, podem identificar por reconhecimento facial cada ser humano no planeta. A coleta, o processamento e a análise de enormes quantidades de dados atingiram um nível nunca antes visto. Existem duas formas de genocídio. Uma é eliminar fisicamente a população. Mas a outra forma é simplesmente trancar e não deixar sair massas que já não têm como sobreviver de um dia para o outro.

No livro, você divide o mundo em três tipos de zonas, uma de liberdade e as outras duas de exclusão e conflito.

A primeira zona é a zona verde. Quando os Estados Unidos invadiram o Iraque, estabeleceram no centro de Bagdá a famosa zona verde; lá estavam os oficiais políticos e militares norte-americanos, mas também a nova elite iraquiana trazida ao poder pelas tropas invasoras. E lá construíram um muro impenetrável, não apenas um muro físico e militarizado, mas um muro eletrônico, digital, tecnológico. Dentro, havia cinemas, restaurantes, escritórios. Essas "zonas verdes" estão aparecendo em todo o mundo. Em minha cidade, Los Angeles, temos áreas onde vivem as camadas privilegiadas, onde estão os escritórios das corporações. Não estão atrás de um muro físico, mas sim de um muro que o Estado policial global protege com tecnologia.

O segundo tipo são as zonas de guerra.

Sim, zonas onde há guerra aberta, de baixa ou alta intensidade ou de contenção total: certas áreas do chifre da África, por exemplo, certas áreas da fronteira entre Estados Unidos e México, ou as áreas do Mediterrâneo, é claro. Israel. Ucrânia. São zonas de guerra aberta, onde há destruição e miséria e o rosto mais aterrorizante do Estado policial global está mais presente.

E a zona cinza.

É onde está a maior massa da humanidade. Nessa zona cinza, o Estado policial global também é implantado. Este é essencial para controlar as fileiras crescentes dessa massa humana. Mas eu adicionaria mais um ponto: eu insisto na crise estrutural de sobreacumulação. Uma das contradições do sistema é que, quanto mais lucro ele tem, quanto mais ele introduz novas tecnologias, quanto mais o poder e a riqueza se concentram no capital transnacional, mais as contradições do sistema se agravam.

Contradições de que tipo?

Esta nova geração de alta tecnologia, como a inteligência artificial ou a aprendizagem automatizada, vai agravar ainda mais essas contradições: se não houver uma reestruturação radical do sistema, um reformismo radical —nem falar em derrubar o sistema, apenas reformá-lo—, a crise se intensificará, as fileiras da humanidade excedente aumentarão, e a necessidade que o sistema tem desse Estado policial global se incrementará.

Não há esperança?

Sim, há esperança. Há esperança por várias razões. Primeiro, pela revolta global. Este livro tem uma segunda parte chamada "Guerra civil global", que ainda não foi traduzida para o espanhol, onde eu me concentro nas resistências, nos movimentos populares ao redor do mundo. Aí está a esperança e a resposta de baixo para cima. Há uma revolta global tremenda e cada vez maior contra este sistema. As contradições do sistema provocaram a revolta popular. Também provocou divisões dentro dos grupos dominantes da classe capitalista transnacional, e especialmente de seus intelectuais, da elite transnacional. Há uma fração da elite transnacional que reconhece a gravidade da crise e a necessidade de um reformismo muito substancial. Eu sou socialista, eu gostaria de derrubar o capitalismo e ter outro sistema, mas não acredito que isso esteja na agenda a curto prazo. O que está ao nosso alcance, nesta década e na próxima década, é uma profunda reforma do sistema... se conseguirmos ter uma correlação de forças políticas, sociais, de classe para permitir esse reformismo radical. Será através da revolta das classes populares e trabalhadoras junto com a ala reformista da elite transnacional que reconhece a necessidade dessas reformas. Uma reforma radical do sistema é necessária para salvar o sistema de seu próprio colapso. Aí está a esperança imediata. Isso, se conseguirmos evitar uma guerra mundial antes.

Com o desenvolvimento de uma indústria armamentista e de vigilância, como você descreve, estamos nos enganando ao pensar que podemos tomar o poder por meio de revoluções clássicas?

Pode haver revoluções, não nos Estados Unidos, talvez não na Espanha, talvez não na Alemanha, nem falemos da China também, mas digamos, ainda podem ocorrer revoluções na África, na América Latina, em certas circunstâncias. Mas o problema é o poder estrutural do capital transnacional, o poder estrutural de uma economia global, integrada. Cada país depende dessa economia global controlada pelo capital transnacional. Isso significa que o capital transnacional e seus agentes políticos e estatais têm a capacidade de esmagar qualquer revolução que ocorra em um país individual.

Você desenvolveu parte do seu trabalho na Venezuela. Qual é a aprendizagem desse contexto?

A Venezuela começou sob Chávez com um processo revolucionário. Isso se deteriorou em grande parte devido às sanções, à agressão econômica, à necessidade de estar vinculado e integrado à economia global capitalista. Também pelos próprios erros e limitações do governo venezuelano. Isso demonstra que hoje pode haver revoluções nos países periféricos, mas elas não conseguirão realizar as transformações. Elas serão esmagadas. Por isso, há a necessidade de lutas transnacionais.

Nos países do centro, como a Espanha, que tipo de revolta estamos falando?

É preciso voltar a Gramsci e ao seu conceito de contra-hegemonia. Realmente pode haver revoluções uma vez que há uma acumulação de forças contra-hegemônicas. Essa contra-hegemonia pode desafiar a hegemonia dos grupos dominantes. Repito que eu gostaria de ver revoluções que derrubassem o capitalismo, mas isso é uma expressão política. No entanto, falando analiticamente, eu acredito que a esperança não reside no fato de que a elite reformista dirija as lutas de massa, mas sim que as lutas das massas forcem a elite a se unir e impulsionar uma reestruturação radical. Isso é o que Gramsci dizia, que precisamos primeiro construir trincheiras de contra-hegemonia antes de poder derrubar um Estado capitalista.

Em que consistiria uma reestruturação radical do capitalismo?

Teria que começar por impor novamente a regulação estatal dos mercados. Mas isso não pode ser feito ao nível do Estado-nação, é impossível. De fato, os Estados Unidos tentaram. Sempre que tenta ou propõe uma regulação do mercado de capital dentro dos Estados Unidos, o capital é muito forte e vai embora para outro lugar. Pode fazer o que quiser. Não precisa ficar dentro dos Estados Unidos. Portanto, precisamos de medidas de regulação do mercado global. Em segundo lugar, precisamos de políticas redistributivas radicais. Muitos estão falando de renda básica universal, aqui nos Estados Unidos também. Redistribuição e regulação dos mercados, políticas fiscais progressistas e não regressivas, impostos sobre transações financeiras transnacionais. Todas essas coisas já foram debatidas dentro da elite. E, ao mesmo tempo, as massas estão exigindo as mesmas coisas: não estão dizendo "queremos uma revolução contra o capital", as massas estão dizendo "precisamos de programas sociais, precisamos que a austeridade acabe, precisamos aumentar os salários, precisamos do poder para enfrentar nossos empregadores". Poderíamos imaginar uma profunda reestruturação do capitalismo global como o primeiro passo para uma acumulação de forças contra-hegemônicas. Mas isso também teria que incluir medidas ambientais radicais.

Qual é o papel do Estado-nação neste momento do século XXI? Entendo que, apesar de todas as limitações que você mencionou, seu papel ainda é importante, especialmente a partir da perspectiva do controle social.

O Estado-nação não desaparece, mas suas funções mudam. O capital precisa do Estado. No meu trabalho teórico anterior, introduzi o conceito de Estado transnacional. O capital transnacional precisa dos Estados nacionais para alcançar uma estabilidade macroeconômica que permita acumular capital dentro de cada país do mundo. Ele precisa principalmente do Estado nacional para implementar o controle social e a repressão. Ele precisa das forças militares e policiais de cada Estado nacional. Ele precisa do Estado nacional para fornecer subsídios. O Estado nacional é útil para abrir fronteiras para o capital e fechar fronteiras para movimentos de migrantes transnacionais: conter as populações enquanto desmantela essas fronteiras para o capital transnacional. Portanto, os Estados nacionais são parte integrante de toda essa história da globalização capitalista. Mas é preciso voltar ao ponto-chave de que o capital não quer nenhuma restrição do Estado nacional sobre seu direito de livre acumulação de capitais.

Você pode dar um exemplo?

Nos Estados Unidos, há uma situação muito interessante neste momento: o governo de [Joseph] Biden tentou, com medidas protecionistas, tarifas, etc., fazer com que a indústria transnacional — não vou dizer americana, porque é capital transnacional — volte aos Estados Unidos para fornecer emprego. Mas é uma grande ilusão, porque primeiro não há como obrigar o capital transnacional a voltar. Então, o que ele fez? Aprovou mais de um trilhão de dólares em incentivos para que o capital transnacional, seja de onde for (há empresas brasileiras, europeias, etc.), venha para os Estados Unidos instalar suas fábricas. Primeiro: elas não querem e não há como obrigá-las, mas, segundo, mesmo que essas empresas voltem ou venham, elas vão instalar fábricas automatizadas. É uma ilusão pensar que o Estado nacional pode controlar o capital. A menos que haja coordenação transnacional.

Então, as medidas protecionistas dos últimos anos não estão funcionando?

Há uma contradição fundamental. A economia globalizada ainda está se globalizando mais. Mesmo com protecionismo, tarifas, uma nova Guerra Fria entre China e Estados Unidos, ainda assim a integração transnacional de capitais continua se aprofundando. Isso entra em contradição com um sistema de autoridade política baseado no Estado-nação. Cada Estado-nação controla seu próprio território politicamente, enquanto a economia globalizada é global. O político e o econômico colidem. Isso precisa ser reconhecido, pois isso gera uma crise de legitimidade nos Estados.

De que tipo?

Podemos dizer que há uma contradição entre as duas funções do Estado nacional: sua primeira função é garantir as condições para a acumulação de capital dentro desses territórios, como atrair o "capital andorinha" para seus territórios. Porque precisa criar empregos, gerar riqueza dentro do Estado-nação. Deve buscar como criar todas as condições para agradar ao capital transnacional para que venha investir. Isso é verdade para os Estados Unidos, para a Espanha, para a Guatemala... para qualquer país. A outra função é que o Estado nacional precisa obter legitimidade dentro do Estado-nação. Qualquer Estado, mesmo que seja ditatorial ou fascista, precisa de uma certa base social, precisa garantir que a formação social nacional se reproduza, se estabilize. Então, essas duas funções: obter legitimidade e obter a acumulação transnacional de capital dentro de seus territórios estão em uma contradição fundamental.

Não podemos deixar de lado o tema que você levantou sobre o perigo da III Guerra Mundial.

Temos um sistema em crise, com contradições que estão se agravando cada vez mais, por isso o perigo da Terceira Guerra Mundial. Porque, o que o Estado faz diante dessa contradição e da perda de legitimidade, do descontentamento e dos protestos dentro de suas próprias fronteiras? Externaliza essas tensões. O Estado norte-americano busca externalizar essas tensões provocando uma nova guerra fria com a China, por exemplo. A crise leva não apenas à intensificação do Estado policial global, mas está levando a uma guerra de maior escala. Suas raízes analíticas teóricas são essa contradição entre a legitimidade e a acumulação de capitais. Este é um momento de virada, um momento muito perigoso.

No livro, você diferencia o fascismo clássico do fascismo do século XXI, em que o primeiro "ofereceu" certos benefícios às suas sociedades de referência e o atual só pode oferecer "prestações psicológicas". Então, por que a extrema direita cresceu?

Cresceu porque o neoliberalismo agravou tantas tensões que a globalização capitalista gerou um enorme descontentamento. A globalização capitalista significou que as camadas anteriormente privilegiadas, com empregos seguros, desmoronaram, tanto nos países desenvolvidos quanto em certas camadas dos países chamados "em desenvolvimento" (embora não estejam se desenvolvendo). Essas camadas experimentam a desestabilização social, econômica, a ansiedade social em massa. Tomando o caso dos Estados Unidos, aqui temos um movimento fascista muito forte, que adquiriu uma expressão política com o trumpismo, agora com a ameaça do trumpismo pela segunda vez, porque parece que vai ganhar as eleições. E então, qual é a base social desse projeto fascista nos Estados Unidos? Em grande parte, são setores da classe trabalhadora que tinham estabilidade no período pós-II Guerra Mundial. Há uma desproporção de setores brancos, mas não apenas brancos, também latinos e afro-americanos, que tinham garantias e seguranças sociais até o novo século e agora estão perdendo seus empregos. A precariedade se espalha e, logicamente, eles têm muita ansiedade social, muita insegurança. Não temos uma esquerda que possa dizer a essas massas, a base social do fascismo: "veja, o problema é o mesmo sistema: esse mesmo sistema te prejudicou —desculpe pela linguagem". Diante da ausência de uma esquerda viável, e com o fracasso do neoliberalismo, os fascistas vêm com uma mensagem antissistema: "eu entendo seu sofrimento, eu vou restaurar seus privilégios, eu vou garantir sua segurança, estabilidade, vou atender ao seu sentido coletivo de ansiedade". Esse é o discurso de [Donald] Trump. É o discurso dos racistas na Alemanha, nos Países Baixos, onde acabaram de vencer as eleições, é o discurso de [Javier] Milei na Argentina.

Detalhe um pouco mais isso.

Por um lado, você tem a extrema-direita na Argentina, que é desastrosa e cem por cento neoliberal, e por outro lado tem o centro, que é o peronismo, que não pode resolver a crise por essa contradição: precisa defender o capital. Não é que as massas estejam encantadas com Milei, é que o veem como algo fora do sistema político existente. As massas são suscetíveis a essa mensagem fascista. Isso precisa ser visto do ponto de vista da luta política: da luta entre hegemonia e contra-hegemonia. Mas não é apenas ideológico e cultural. Nisso, é preciso ir além de Gramsci. A esquerda precisa ser capaz de oferecer um projeto transnacional de transformação. Houve tentativas: olhe para o fracasso do Syriza na Grécia. Olhe para o caso do Podemos. Ao redor do mundo, houve muitas esperanças, mas a esquerda não conseguiu se organizar, não conseguiu garantir que houvesse uma esquerda política ou organizacional junto com a mobilização de massas, e que essa mobilização de massas e movimentos sociais de baixo para cima controlasse a instância política. E então, uma vez que, seja o Podemos, seja o Syriza, chegue ao poder, eles enfrentam a pressão estrutural do capital transnacional, pelo Banco Central Europeu ou pelo Fundo Monetário Internacional, pelos investidores privados ou de onde quer que venha. Em vez de ter pressão de baixo, que não os force a se acomodar com o capital transnacional, as esquerdas acabaram se acomodando. Existe um descompasso entre o movimento de massas sedento por mudanças radicais, mobilizando-se de baixo para cima, e um projeto esquerdista transnacional viável. Nessas condições, as portas se abrem para o fascismo, para a outra mensagem.

Quais são os sinais mais visíveis dessa revolta global que você mencionou?

Lembremos de uma coisa; isso não está no livro, porque aconteceu no final de 2019 e depois novamente no final de 2020, quando já estava publicado: na Índia, tivemos em dezembro de 2019 uma greve geral de 150 milhões de pessoas. Sem precedentes na história. E um ano depois, 250 milhões de pessoas. Imagine uma mobilização das classes populares e uma greve geral dessa magnitude, o que Rosa Luxemburgo chamava de greve de massas. Isso assusta muito os grupos dominantes, e, portanto, intensificam o Estado policial global, mas também se voltam cada vez mais para a resposta fascista. Por isso, a resposta tem sido mais repressão e o avanço do projeto fascista na Índia. Hoje, na Índia, existem organizações de esquerda, mas na maioria dos países temos esses surtos sociais sem esquerda. Então, acabam em fracasso. Com a desilusão das massas, entra a mensagem fascista. Essa é a encruzilhada. Esta história ainda não está escrita, mas é o momento de virada em que estamos. Ameaça de fascismo, ameaça de Terceira Guerra Mundial, um sistema em crise impregnado de contradições, e a possibilidade de rebelião de baixo para cima.

Me interessa que nos detenhamos no caso da Espanha, não por particularismo, mas porque acredito que pode ser útil para a reflexão. Há uma reedição do governo de coalizão graças ao fato de que, em grande medida, algumas das bases materiais para a subsistência dos sujeitos tradicionais, trabalhadores brancos autóctones, foram mantidas por meio de subsídios, aumento do salário mínimo, medidas anti-inflacionárias, etc. Temos essa experiência e um debate importante sobre se isso é suficiente para conter a extrema direita. Qual é a sua opinião?

Qualquer medida que ajude a massa dos trabalhadores e das massas a sobreviver é bem-vinda e é preciso lutar por cada medida protecionista e de assistência social. Mas se você me pergunta se é suficiente para conter a onda fascista: absolutamente não. E vou te dizer por quê. Não é por meu sentimento político, de que eu quero revolução e não apenas reformismo, nada do tipo, mas sim parte de uma análise estrutural. Lembre-se de que essas medidas temporárias dependem da economia global como um todo e, por enquanto, a economia global não entrou em recessão. Existem muitas tendências recessivas, mas não colapsou. No entanto, com certeza, com certeza, haverá outro colapso financeiro, outra crise da economia global como a de 2008 ou ainda maior. E por que digo isso? Porque a análise estrutural indica isso.

Que bases tem essa análise?

Como a economia global tem progredido desde 2001, ou especialmente desde 2008, até agora? Com quatro medidas. Primeiro, a especulação financeira, ou seja, a criação de capital fictício. Hoje, o capital fictício está cerca de 1.000% acima da economia real. Acredito que o dado no livro é que a economia real de bens e serviços no mundo totaliza 75 trilhões de dólares e o capital fictício, apenas em derivativos, é mais de um trilhão de dólares. A lacuna entre o capital fictício especulativo e a economia real de bens e serviços está aumentando. Esse é o primeiro fator. Segundo, a economia global tem se sustentado por meio do crescimento impulsionado pelo endividamento, e esse endividamento atinge níveis nunca antes vistos: endividamento corporativo, endividamento dos consumidores e, sobretudo, endividamento dos Estados. Estamos falando de mais de 300 trilhões de dólares. Não se pode continuar com mais dívida. E a terceira medida, que funcionou até muito recentemente, até o pós-covid, é que os responsáveis pelas finanças, os Bancos Centrais, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos e na China, imprimiram mais dinheiro, foi o Quantitative Easing. Mas não temos mais esse instrumento, os Estados reconheceram isso.

Já não é possível seguir a lógica do crescimento por endividamento.

A outra saída tem sido justamente a acumulação militarizada por meio do Estado policial global e das guerras. Na Espanha, a coalizão atual introduz medidas de assistência, etc., detendo momentaneamente a mensagem fascista ou a base social de um fascismo. Mas no momento em que amanhã, daqui a um ano, 18 meses, ocorrer um colapso financeiro global como o de 2008, de repente essas medidas não poderão mais ser sustentadas em meio a uma depressão econômica global. E, a menos que haja uma radicalização dessas medidas com bases massivas da esquerda ou das classes populares, virá o fascismo.

Há precedentes na história.

Isso é o que aconteceu com o colapso de 1929 a 1931, que é exatamente quando tanto a esquerda quanto a direita fascista subiram e o centro entrou em colapso. Isso é o que estamos vendo agora. E quando houver outro colapso, é isso que vai acontecer. Quando veio a Grande Depressão dos anos 30, os fascistas venceram, porque se uniram ao capital. Esse foi o ponto de virada na Alemanha: em certo momento, o capital alemão, que agora é capital transnacional, não estava seguro de apoiar os nazistas. Depois ocorreu uma famosa reunião com os executivos do grande capital e, parafraseando, [Adolf] Hitler disse "acalmem-se, vamos representar seus interesses, vamos proteger e fazer avançar seus interesses". A partir desse momento, o fascismo vence sobre a resposta esquerdista à Grande Depressão. Para concluir, quero dizer que essa contenção da ameaça fascista na Espanha é temporária porque depende do estado de toda a economia global. E essa economia global está em profunda crise estrutural. O risco, no mínimo, é de uma forte recessão, mas acredito que seja muito mais. E isso está ao virar da esquina.

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