Pe. Clemente Steffen: do jardim de plantas medicinais à Farmácia Viva. O legado de uma vida dedicada à pesquisa e à comunidade

Hoje, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU relembra a memória do jesuíta Pe. Clemente José Steffen, promotor do projeto Farmácia Viva, uma parceria entre a Unisinos, a Prefeitura Municipal de São Leopoldo e a Escola Agrícola Visconde de São Leopoldo – CEEPRO

Foto: Arquivo

Por: Patricia Fachin | 17 Abril 2023

"A humanidade entrou em crise com a tecnologia e, para corrigir os erros, usa mais tecnologia."

O diagnóstico do padre jesuíta Clemente José Steffen data do início do século e continua pertinente, atual e aplicável a diversas dimensões da vida humana. Na área da ecologia, por exemplo, que foi uma de suas especialidades, isso é observável nas tentativas de enfrentar o novo regime climático, resolver os problemas relativos à destruição socioambiental, e nas discussões em torno de como efetivar a transição energética. Já na área da saúde, outro foco de seu interesse de pesquisa, essa constatação pode ser sopesada na busca de alternativas para um fenômeno que marca a era contemporânea: a medicalização da vida.

A declaração de Pe. Clemente também visa chamar a atenção para as relações e os modos de vida que foram alterados e substituídos, sem contribuir, efetivamente, para a realização integral do ser humano, gerando, pelo contrário, novas dependências, doenças e destruições.


Pe. Clemente Steffen (Foto: Arquivo)

Uma dessas mudanças diz respeito à relação entre o ser humano e seu habitat, a natureza que o circunda. Na virada do milênio, ele destacava a relação dos povos com a natureza como elemento fundamental para garantir não apenas a saúde ambiental dos ecossistemas, mas também a manutenção da vida humana no planeta:

"Por que as tribos antigas não destruíam as florestas, os rios? Não é porque não tivessem motosserra ou dinamite, mas porque respeitavam a natureza, por acreditarem que nela – e agora falo também como padre – havia uma divindade. A natureza para eles era sagrada. E isso nós desaprendemos."

Em discursos proferidos no final da década de 1970, quinze anos antes do surgimento das Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas – ONU, Pe. Clemente alertava para os problemas socioecológicos em curso:

"Tereis que ajudar a humanidade a encontrar e a enveredar por um caminho novo, porque o que estamos trilhando está prestes a desembocar no caos, em catástrofes imprevisíveis. Não é sem razão que nunca uma ideia se espalhou tão rapidamente e se firmou tão solidamente como a da ecologia, da preocupação pela conservação do ambiente."

Nesta sexta-feira, 14-04-2023, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU recorda a memória de Pe. Clemente José Steffen, falecido há 20 anos, com uma exposição virtual (abaixo), que destaca sua trajetória pioneira. A exposição presencial ocorrerá em frente à sede IHU a partir de hoje, 14-04-2023, até a próxima sexta-feira, 21-04-2023.

 

 

Natural de Santo Cristo, RS, ele nasceu em 14-09-1925, graduou-se em Filosofia, Teologia e História Natural, e especializou-se em Fisiologia Vegetal e Ecologia. Como professor do curso de Biologia da Unisinos, participou de inúmeros projetos de divulgação e manutenção da ecologia no campus universitário.

 


Linha do Tempo sobre a trajetória do Pe. Clemente (Arte: Arthur Mallmann | IHU)

 

Segundo Denise Maria Schnorr, professora da Unisinos e bióloga do Instituto Anchietano de Pesquisas da Unisinos, na década de 1970, Pe. Clemente "acompanhou a construção do campus da Unisinos em São Leopoldo. Participou do planejamento e implantação das áreas verdes como jardins e parques, assim como áreas de preservação".

Uma de suas iniciativas, começada em 1992 e visível até hoje na universidade, é o Projeto Plantas Medicinais, constituído a partir de um grande jardim no campus, que, desde 2010 é continuado pelo Instituto Anchietano de Pesquisas. "Em 1992, Pe. Clemente iniciou um projeto com plantas medicinais, pioneiro para a região. No campus da Unisinos, Centro 2, Centro de Ciências da Saúde, ele implantou um grande jardim didático de plantas medicinais, aromáticas, condimentares e comestíveis. Eram cultivadas cerca de 240 espécies herbáceas e arbustivas, além das lianas e arbóreas. No jardim também havia espaço para as plantas espontâneas. Todas as espécies foram registradas em fotos e slides e catalogadas. Criou uma coleção de herbário, sementes, raízes e cipós. Disponibilizou, para a comunidade acadêmica, uma biblioteca especializada em botânica", recorda a professora.

Integrando pesquisa universitária e atenção à comunidade, Pe. Clemente também "divulgou a importância do conhecimento sobre a identificação, o uso e o cultivo agroecológico das plantas medicinais ministrando cursos de extensão, escrevendo artigos populares, recebendo pesquisadores, grupos de universidades e entidades diversas como pastorais da saúde e EMATER", destaca.

Em 1994, ele foi diplomado como professor emérito da Unisinos e, no final da década de 1990, em reconhecimento ao relevante trabalho realizado na universidade, foi convidado, pela Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, a contribuir com sua experiência na integração dos saberes científicos e populares da flora medicinal.

Defensor da ideia de que os cursos de Biologia deveriam dar um tratamento às plantas medicinais, escreveu e ministrou cursos e palestras sobre suas características, denominações científicas e uso popular tradicional. "Não se trata de textos científicos, nem de receitas para automedicação, mas de divulgação de práticas de uso popular, transmitidas durante muitas gerações. Com o desenvolvimento da pesquisa e da indústria farmacêutica, o uso caseiro, natural, dessas plantas praticamente desapareceu e passou a fazer parte da história da cultura de nosso povo, que vale a pena conhecer", diz Denise Schnorr.

No repositório digital do Instituto Anchietano de Pesquisa é possível encontrar o registro de mais de 60 plantas medicinais. A redação dos textos mostra que muito mais do que um botânico, no sentido estritamente técnico da palavra, Pe. Clemente foi um homem versado em diversos conhecimentos, que podem ser atestados nas suas descrições sobre uma planta:

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TANCHAGEM

P. Clemente José Steffen, S.J.

"A tanchagem, também chamada tansagem, transagem ou plantagem, é uma planta invasora muito mal vista em hortas e jardins. Ao longo de uma haste, que sai de uma roseta de folhas, se forma uma quantidade muito grande de sementes muito pequenas, e estas garantem sua dispersão eficiente e consequente infestação. Encontram-se espécies diferentes de tanchagem entre nós.

A mais comum tem o nome científico Plantago tomentosa. É a que se encontra nos gramados, beira de caminhos, lavouras abandonadas. Uma outra, Plantago lanceolata, tem as folhas estreitas e compridas, e as sementes se formam só num tufo na ponta da haste. Uma terceira é a Plantago major, que, como seu nome diz, é a maior de todas. Tem as folhas estreitas na base e muito alongadas e arredondadas para a ponta. Estas três são as mais conhecidas e usadas. Podem ser usadas primeiro como salada. Não são grande coisa quanto ao gosto, mas, quando novas, servem muito bem para misturar com outras saladas. Seu uso principal é medicinal, e neste caso suas propriedades são extraordinárias. Provavelmente o uso mais comum é como antiinflamatório.

Externamente seu cozimento, seu suco ou a própria folha amolecida na fervura, são usados para todo tipo de lesões, feridas. Internamente o chá ou a tintura são realmente eficientes contra todos os tipos de inflamações. Muito usada nos problemas do aparelho respiratório. Para as crianças se recomenda contra a
tosse um xarope de tanchagem: o suco espessado adoçado com mel ou açúcar. As sementes são levemente laxantes.

Por fim uma boa notícia para eles e para nós, isto é, para os fumantes e os não fumantes.

Segundo vários autores, na expressão de um deles, 'o uso da tisana (=chá) de tanchagem origina repugnância ao desejo de fumar, como diz a experiência dos antigos'".

 


Jardim de Plantas Medicinais (Arte: Arthur Mallmann | IHU)

 

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CAPIM-CIDRÓ

P. Clemente José Steffen, S.J.

"Esta erva medicinal é muito conhecida do nosso povo e muito cultivada e usada. Tem ainda os nomes populares de capim-limão, capim-cidreira, capimsanto e outros. Seu nome científico é Cymbopogon citratus, da família Gramineae. Os alemães e os ingleses o chamam de capim-da-febre, aludindo a uma de suas principais propriedades que é a de baixar a febre. Na literatura universal é conhecido como 'lemon grass', que corresponde ao nosso capimlimão. Como seu nome diz, é um capim que cresce em touceiras vigorosas, até cerca de um metro de altura. A touceira é formada por numerosas brotações, que fazem que ela se alargue rapidamente. Não se observa floração e por isso também não há sementes. A reprodução é feita facilmente dividindo-se as touceiras, formando cada brotação uma nova muda. Porque é fácil de reproduzir e porque as touceiras são largas e firmemente enraizadas, o capim-cidró é muito plantado em lavouras, ao longo das curvas de nível, para evitar erosão e ao longo de rodovias para firmar os barrancos, donde lhe vem ainda o nome de cháde-estrada.

O capim-cidró tem um aroma característico e muito agradável, que lembra tanto o do limão, como o da melissa ou erva-cidreira, o que explica seus nomes populares. Na indústria se extrai dele um óleo essencial, que é usado em perfumaria e produtos farmacêuticos. Há pesquisas que provam que tem propriedades inseticidas. Como planta medicinal tem vários usos. Para começar, é uma bebida que, por seu gosto, é agradável de tomar, tanto quente como gelada. Muito usado adicionado ao chimarrão. É digestivo, calmante, sudorífero, febrífugo, sendo usado também contra dores musculares e gases intestinais.

É sabido que abaixa a pressão sangüínea, pelo que se recomenda cautela aos que tem pressão baixa.

Durante a secagem se perde em grande parte o aroma do capim-cidró. Por isso, bom mesmo é ter um pé plantado em algum espaço perto de casa."

 


Jardim de Plantas Medicinais (Arte: Arthur Mallmann | IHU)

 

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Na avaliação de Denise, Pe. Clemente "deixou, para muitas gerações de biólogos, a lembrança de um professor que acolhia a todos em seu gabinete, que ensinava, nas saídas a campo, no contato com a natureza, o que não estava escrito nos livros. Para a comunidade universitária e população da região, um legado de trabalho pioneiro".

Projetos em andamento

As pesquisas de Pe. Clemente com plantas medicinais originaram novos projetos, como a Farmácia Viva Pe. Clemente Steffen, uma parceria entre a Universidade, a Prefeitura Municipal de São Leopoldo e a Escola Agrícola Visconde de São Leopoldo – CEEPRO, lançada em 27-03-2023.

Segundo informa a Comunicação Institucional da Unisinos, "a Farmácia Viva Pe. Clemente foi criada a partir da contemplação em edital do Ministério da Saúde no ano de 2019. Em todo o país, 144 municípios enviaram propostas, mas somente 20 foram selecionados para receber o modelo de Farmácia Viva. O nome é em homenagem ao Pe. Clemente José Steffen, jesuíta que foi professor da Unisinos e pesquisador reconhecido no estudo de plantas medicinais".

 


Lançamento do Projeto Farmácia Viva (Foto: Divulgação)

 

De acordo com o reitor da Unisinos, Pe. Sergio Mariucci, “a implantação da Farmácia Viva no município de São Leopoldo/RS, com o cultivo e manipulação de fitoterápicos, visa qualificar a Assistência Farmacêutica em todos os serviços da rede municipal de saúde, bem como proporcionar um espaço para o desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa e extensão”.

A decana da Escola de Saúde, Rochele Ross, destaca que "os fitoterápicos fazem parte das políticas públicas em plantas medicinais do Brasil. Estão inseridos no contexto da Atenção Básica em Saúde não só pela valorização do conhecimento tradicional e da biodiversidade brasileira como também para a diminuição dos custos que o município tem com Medicamentos industrializados”.

Memória no IHU

Por ocasião da morte de Pe. Clemente, a Revista IHU On-Line n. 56 publicou a edição "Por uma sociedade sustentável. Em memória do Pe. Clemente", em 22 de abril de 2003. A versão PDF está disponível abaixo.

 
Padre Clemente José Steffen concedeu uma entrevista à edição n. 18 da Revista IHU On-Line, intitulada "Lutzenberger. Uma vida em favor da natureza", em homenagem ao ambientalista gaúcho e seu amigo pessoal, falecido aos 75 anos, em 14 de maio de 2002. A entrevista está disponível a seguir.

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