Agnus Dei. Artigo de Anita Prati

Reprodução da obra de Francisco de Zurbaràn, Agnus Dei, 1635-1640, Museu do Prado, Madri (Foto: Museu do Prado)

21 Dezembro 2022

"A Igreja, perante o escândalo dos abusos, é chamada a viver o caminho que vai da negação à reparação, colocando-se à escuta e frequentando a escola das vítimas e ajudando os abusadores a enfrentar um necessário percurso de conscientização e responsabilização pessoal". 

O artigo é de Anita Prati, professora de Letras no Instituto Estatal de Educação Superior Francesco Gonzaga, em Castiglione delle Stiviere, Itália, publicado por Settimana News, 18-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo. 

A Igreja, diante do escândalo dos abusos, é chamada a viver o caminho que leva da negação à reparação.

Uma pintura

A pintura é pequena, apenas 37 x 62 cm, mas o impacto visual é tal que não tolera olhares apressados ou indiferentes. Toda a superfície da pintura é ocupada pela figura anormalmente arqueada de um cordeiro cujas patas, fortemente amarradas por um laço duplo, se estendem para o primeiro plano; a brancura suave da pelagem do animal destaca-se na escuridão surreal do fundo, suspensa num vibrante contraste entre o cromatismo negro da parede sem profundidade e o cinza da mesa onde repousa o cordeiro. A construção espacial poderia nos fazer pensar em uma natureza morta, mas aquele cordeiro imóvel na mesa não é um objeto inanimado ou um ser sem vida – caça ensanguentada entre frutas ou grupos de vegetais. Aquele cordeiro ainda está vivo. Os olhos o dizem, abertos mas inclinados, como para escapar de olhares ávidos e indiscretos, e cheios de resignação, como se soubessem que a salvação não pode vir de nenhuma mão humana.

Reprodução da obra de Francisco de Zurbaràn, Agnus Dei, 1635-1640, Museu do Prado, Madri (Foto: Museu do Prado)

Por aqueles olhos semicerrados passa toda a dor do mundo: a inocência sofre, silenciosa, a violência do gesto voraz que obriga ao silêncio impotente. O olhar que se pousa sobre a pintura a sente plenamente, esta dor, e não pode deixar de ser tocado por ela.

Ele foi maltratado, humilhado, torturado; contudo, não abriu a sua boca; agiu como um cordeiro levado ao matadouro; como uma ovelha que permanece muda na presença dos seus tosquiadores ele não expressou nenhuma palavra.

Da pintura, obra de Francisco de Zurbaràn, um dos grandes pintores do Siglo de Oro espanhol, desprende-se uma dolorosa carga emocional. Diante do mistério do sofrimento dos inocentes, a ênfase barroca despoja-se de todo excesso, percorrendo os caminhos de uma essencialidade tosca e por isso ainda mais devastadora: não há auréolas ou outras sugestões iconográficas que permitam decifrar de imediato o valor simbólico do tema em chave teológica cristã e, no entanto, mesmo que não soubéssemos o título da pintura, naquele cordeiro imobilizado e silencioso não podemos deixar de reconhecer o Agnus Dei qui tollit peccata mundi.

Victimæ paschali laudes

immolent Christiani.

Agnus redemit oves:

Christus innocens Patri

reconciliavit pecadores.

O escândalo da cruz, coração do mistério pascal, subverte todo paradigma triunfalista e curva o caminho da fé para assumir, em nome da vítima inocente Cordeiro, todas as vítimas da história.

Um livro

Comecei a ler Agnus Dei: gli abusi sessuali del clero in Italia (Agnus dei: os abusos sexuais do clero na Itália, em tradução livre) [1] no final de novembro, após a publicação do primeiro relatório da CEI [Conferência Episcopal Italiana] sobre a rede territorial de proteção de menores e pessoas vulneráveis, e terminei a leitura alguns dias antes de aparecer a notícia sobre o caso Rupnik; nos últimos dias, enquanto escrevo, vários jornais nacionais estão dedicando amplos espaços ao tema da pedofilia e dos abusos na Igreja italiana e no Vaticano.

O livro investigativo de Lucetta Scaraffia, Anna Foa e Franca Giansoldati tem uma capa totalmente preta na qual se destaca a imagem do Agnus Dei de Francisco de Zurbaràn. A mensagem é clara e inequívoca: nenhum discurso sobre os abusos, para ser considerado credível, pode ignorar as vítimas. Com indignação e sobriedade, sem jamais se desviar para tons escandalosos ou pruriginosos, as autoras apresentam sete casos da ordinária sordidez clerical. Sua reconstrução parte do material coletado no único arquivo de abusos disponível na Itália, o site da associação Rete L'Abuso, fundada em 2010 por Francesco Zanardi, vítima de um padre pedófilo; os casos apresentados são todos casos em que a culpa do agressor foi confirmada através de uma sentença condenatória transitada em julgado.

Na introdução assinada por Lucetta Scaraffia, intitulada Um confronto com o mal, a autora traça um breve relato da história das investigações sobre abusos sexuais a partir das primeiras denúncias do dominicano estadunidense Thomas Doyle, em meados da década de 1980; o relatório Doyle foi fortemente contestado pelas hierarquias e quase vinte anos tiveram que se passar antes que, em 2002, a investigação jornalística do Boston Globe, da qual o filme Spotlight (ganhador do Oscar em 2016), conseguisse impedir os abusos cometidos na diocese de Boston permanecessem encobertos. Os abusos aparecem apenas quando os meios de comunicação os trazem à tona, obrigando as hierarquias a enfrentar a visibilidade do escândalo, ressalta Scaraffia. Observação que encontra amarga confirmação também no que está acontecendo na Itália justamente nestes dias [2].

Uma sensação profunda, quase intolerável, de mal-estar. Gostar-se-ia de fechar as páginas do livro, ou não colocar os olhos nas manchetes, para não se sentir submerso em um mar de imundície. Mas o escândalo dos abusos não é um detalhe colateral ou uma ninharia irrelevante, por mais irritante que seja, na vida da Igreja; ao contrário, é um dos detonadores da crise irreversível que está esfacelando a instituição. Não se pode fechar os olhos, nem se limitar a um olhar apressado e constrangido: só acertando as contas com essa triste história poderemos gerar caminhos transformadores capazes de dar à crise a forma de uma transição, ao invés de uma inexorável e definitiva queda.

Poder sacralizado

O vínculo que se estabeleceu na Igreja entre o poder e o sagrado afunda suas raízes na história imperial romana. O imperador Otaviano Augusto selou sua ascensão ao poder absoluto ao assumir, em 12 a.C., o cargo de Pontifex Maximus, a mais alta posição sacerdotal: assim o poder político supremo e a autoridade religiosa suprema coincidiam na mesma pessoa. O legado imperial romano, tão carregado de consequências para a história da Igreja, pesou não apenas em termos de títulos, rituais e paramentos, mas também marcou o aparato identitário clerical com o estigma de uma sacralidade incontestável. É precisamente a partir dessa dimensão sacralizada do poder, dessa atribuição de poder ao sagrado, que os abusos cometidos pelo clero nunca podem ser considerados apenas como abusos sexuais; o abuso sexual cometido por um eclesiástico está sempre ligado, de alguma forma, a um uso instrumental do papel e à sacralidade do poder que está ligado a tal papel.

O poder sacralizado sempre joga na defesa, estruturando todo um aparato defensivo para garantir e proteger seus privilégios. Manzoni escreveu sobre Dom Abbondio: “Ele não tinha pensado muito nas obrigações e nobres fins do ministério ao qual se dedicava: ganhar a vida com algum conforto e colocar-se em uma classe reverenciada e forte, tinham lhe parecido duas razões mais do que suficientes para tal escolha”.

As práticas de silêncio conivente implementadas para acobertar o escândalo dos abusos fazem parte do sistema de defesa da instituição e dos privilégios garantidos aos que nela ingressam. O silêncio erigido como um sistema: encobrimentos, ocultações, desorientações, omissões protegem a instituição dos escândalos, combinando um sigilo obsessivo e mentiroso com a indiferença para com as vítimas ou a sua manipulação.

O sistema estratégico defensivo encontra mais confirmação no fato da abertura de centros de recuperação para padres pedófilos ou problemáticos não correspondem iguais intervenções duradouras, eficazes e concretas de apoio às vítimas, que, na maioria das vezes, se veem obrigadas a enfrentar a solidão e os silêncios da Igreja no momento em que denunciam o abuso. Enquanto isso, o abusador, transferido de uma paróquia a outra, de uma região a outra, de um continente a outro, pode contar com os braços abertos e misericordiosos da Mãe Igreja, que lhe concede justificação e perdão sem que nele possa se desenvolve a mínima consciência do mal cometido [3]. Mas uma misericórdia sem justiça, que tipo de misericórdia é?

A marginalização das vítimas

A marginalização das vítimas também faz parte do sistema de defesa da instituição eclesiástica. Isso é especialmente verdadeiro quando as vítimas de abuso são as religiosas. O documentário francês Religiosas abusadas, o outro escândalo da Igreja [4], lançado em 2017 após um trabalho de pesquisa de dois anos, expõe as responsabilidades do Vaticano em proteger e encobrir padres abusadores e na prática sistemática de minimizar denúncias: não só o abuso é apresentado como transgressão contra o voto de castidade, mas às religiosas é frequentemente imputada a culpa de serem a causa primeira para o abusador "ceder ao pecado".

Além disso, para uma religiosa é muito difícil encontrar forças para romper o vínculo de um abuso que muitas vezes se configura também como abuso de consciência, já que os sacerdotes abusadores são frequentemente pais espirituais ou superiores de comunidade. Denunciar e se manifestar não é fácil. A encruzilhada em que se encontram essas mulheres é tragicamente dolorosa: porque, se manter o silêncio significa acobertar o mal, denunciar um padre significa também denunciar a Igreja e, para uma mulher que fez do caminho religioso a sua opção de vida, essa perspectiva pode chegar a questionar radicalmente até a própria fé.

Acontece muitas vezes que as vítimas só conseguem encontrar forças para denunciar os abusos anos depois dos fatos, quando, vencidos os prazos, o crime já prescreveu. E, no entanto, como recorda Véronique Margron, “o mal feito pelo agressor pode ter sido cometido apenas uma vez, ou mesmo cem vezes, mas é ‘passado’ (tem uma data). Mas o mal sofrido pelas vítimas é para toda a vida” [5]. O mal nunca prescreve.

Muitas vezes o abuso se apresenta de forma insidiosa e não se deixa reconhecer, enquanto a vítima não possui os instrumentos para decodificar, entender e tomar consciência do que está acontecendo com ela. Vale a pena reler a décima novela do terceiro dia do Decameron, onde Boccaccio conta a história da ingênua Alibech, uma jovem donzela pagã de 14 anos que, ansiosa por conhecer e servir ao Deus cristão, vai sozinha pelo deserto de Tebaida, onde encontra o eremita Rustico. Com sutil ironia e, por vezes, arroubos de comicidade, Boccaccio ilustra com clareza os mecanismos pelos quais o abuso é posto em ato, chegando mesmo a transformar a vítima em cúmplice consensual. [6]

A história da ingênua Alibech reverbera nos depoimentos reunidos pela irmã Mary Lembo, freira togolesa, psicoterapeuta e educadora em seminários e institutos religiosos, que recentemente publicou sua tese de graduação, defendida na Gregoriana de Roma em 2019 [7]. É um estudo inédito sobre as religiosas abusadas na Igreja da África onde, ao drama dos abusos, se soma o dos abortos a que as freiras são forçadas para evitar o aparecimento do escândalo. Lembo destaca como a assimetria da relação impede que a relação se configure como consensual: “Nessa relação assimétrica, que tem em si uma forma de dependência (espiritual, fraterna, afetiva, mas por vezes também financeira, pois pode acontecer que o padre fornece ajuda financeira a algumas jovens em formação), o consenso não é válido". [8]

Enquanto a revolução feminista permitiu ao Ocidente dar forma a algumas passagens irremeáveis no plano constitucional, legislativo e social, nas Igrejas dos países onde não aconteceu e ainda não se estruturou uma reflexão feminista incisiva o poder do sacerdote é ainda mais amplificado pelo seu próprio ser masculino: a mulher assume como fato incontestável e como parte da ordem natural das coisas a sua submissão ao domínio masculino e a fé em Cristo, em vez de se tornar um instrumento de libertação, é usada para reforçar as correntes que mantêm as mulheres subservientes.

Da negação à reparação

Grada Kilomba, em seu livro Memórias da plantação [9], identifica em um processo coletivo de conscientização que se desenvolve pela sequência de negação - culpa - vergonha - reconhecimento - reparação, a possibilidade de superação da violência e das feridas causadas pelo colonialismo e pelo racismo cotidiano. Não se trata de um percurso moral, mas de um percurso de responsabilização, chamado a lidar com a tomada de palavra de subjetividade silenciadas por muito tempo e com palavras que criam espaços para realidades por muito tempo negadas.

Chegou a hora de sair da perspectiva aristotélica, segundo a qual o juízo visa apenas julgar o tempo passado [10]. É hora de pensar uma modalidade de juízo capaz de concretizar um novo paradigma, capaz de construir pontes para o futuro, superando a falaciosa encruzilhada entre misericórdia sem justiça e punição exemplar com sabor de vingança.

“Uma nova ideia surgiu timidamente. Uma nova palavra finalmente foi dita na reflexão mundial sobre os sistemas penais. A palavra nova é 'encontro': encontro entre a vítima e o culpado e, se possível, com a comunidade. A ideia nova é responder ao crime com o encontro, livre e voluntário, entre quem cometeu o crime e quem o sofreu”. [11]

Justamente quando o modelo de justiça reparadora está se tornando cada vez mais credenciado no Direito Penal internacional, também aceito na Itália com a recente reforma Cartabia, que prevê que a vítima do crime, o autor do crime e a comunidade, juntos, de forma consensual, ativa e voluntária, reconstruam vínculos de relação através do reconhecimento mútuo, também a Igreja, perante o escândalo dos abusos, é chamada a viver o caminho que vai da negação à reparação, colocando-se à escuta e frequentando a escola das vítimas e ajudando os abusadores a enfrentar um necessário percurso de conscientização e responsabilização pessoal.

Notas

[1] Lucetta Scaraffia, Anna Foa, Franca Giansoldati, Agnus Dei: gli abusi sessuali del clero in Italia, Solferino, maio de 2022.

[2] Pedofilia, il caso Spotlight è a Roma: é o título do artigo da primeira página de Federica Tourndia em Domani 12/12/2022.

[3] Disponível aqui.

[4] Disponível aqui.

[5] Véronique Margron, o relatório sobre os abusos na França, SettimanaNews 22 de fevereiro 2022.

[6] Alibech confidencia a Rustico seu desejo de servir a Deus. Rustico oferece-lhe hospitalidade em sua cela e prepara uma cama de folhas de palmeira para ela. Mas a beleza e a juventude de Alibech são irresistíveis, então Rustico, tendo testado a inocência da jovem com várias perguntas, "pôs-se a imaginar uma maneira de induzi-la a satisfazer aos seus desejos, malgrado convicta de estar em verdade a servir a Deus". Depois de catequizá-la sobre a figura do demônio, o monge ensina Alibech a “colocar o demônio de volta no inferno” …

[7] Mary Lembo, Religieuses abusées en Afrique, faire la vérité. Une étude inédite, Salvator 2022.

[8] “Dans cette relation asymétrique, qui contient une forme de dépendance (spirituelle, fraternelle, affective, mais même parfois financière, car il arrive aussi que le prêtre apporte une aide financière à certaines jeunes filles en formation), le consentement n’est pas valide”. Disponível aqui.

[9 ] Grada Kilomba, Memorie della piantagione. Episodi di razzismo quotidiano, Capovolte 2021.

[10] “Para o contendente em juízo o tempo é passado; de fato, é sempre sobre fatos realizados que um acusa e o outro defende” (Retorica 1358b).

[11] Claudia Mazzucato, Oltre la punizione ecco la giustizia riparativa, Vita e Pensiero 4, 2016.

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