Admirar o admirável para aprendermos a amar a Deus e ao próximo

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17 Dezembro 2022

"Na antessala da virada do último milênio, o poeta Carlos Drummond de Andrade registrou em versos o acontecimento anunciado pelo profeta e o gesto que repetimos a cada Natal: 'nos curvamos diante do seu berço tecido de palha, vento e ar'".

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

"Causa-te estranheza, porventura, o inusitado parto de uma virgem? Nem sequer isso deve constranger-te. Digo mais: isso deve conduzir-te a aceitar a ter piedade, porque aquele que é admirável nasce admiravelmente."

São com estas palavras que Santo Agostinho, em A Cidade de Deus, nos propõe refletir sobre o acontecimento que celebraremos nos próximos dias: o nascimento do Cristo Salvador.

Ao refletir sobre este mesmo fato e mistério, 12 séculos mais tarde, São Luis Maria Grignion de Montfort disse que "a Santíssima Virgem Maria foi a afortunada a quem se fez esta divina saudação para concluir o maior e mais importante 'assunto' do mundo: a encarnação do Verbo eterno, a paz entre Deus e os homens e a redenção do gênero humano".

Em um de seus sermões na Vigília do Natal, no século VIII, São Beda o Venerável, monge inglês, da Abadia de São Pedro e São Paulo, Monkwearmouth–Jarrow, e doutor da Igreja, lembrou as palavras do profeta:

"Eis que a Virgem conceberá, e dará à luz um filho, e lhe porá o nome de Emanuel (que significa 'Deus conosco'), indicando dupla natureza de uma única pessoa. Na verdade, aquele que é Deus nascido do Pai antes de todos os séculos, é o mesmo que, na plenitude dos tempos, tornou-se, no seio materno, no Emanuel, isto é, em 'Deus conosco', porque se dignou assumir a fragilidade de nossa natureza na unidade de sua pessoa, quando a Palavra se fez carne e habitou entre nós, isto é, quando de modo admirável começou a ser o que nós somos, sem deixar de ser o que era, assumindo de tal forma nossa natureza que não ficasse obrigado a deixar de ser o que ele era."

No Sermão sobre o nascimento do Senhor, Santo Agostinho pergunta quem narrará a geração que teve lugar na eternidade e pela qual nasceu Deus de Deus e clama:

"Considera, ó homem, o que Deus veio a ser por ti; aprende a doutrina de tão grande humildade da boca daquele doutor que ainda não fala. Em outra época, no paraíso, tu foste tão fecundo que impuseste o nome a todo ser vivente; apesar disso, deitado no presépio sem falar, estava o teu Criador; sem chamar por seu nome, nem sequer a sua mãe. Tu, descuidando da obediência, te perdeste no amplo jardim de árvores frutíferas; ele, por obediência, veio em condição mortal a um estábulo apertado, para buscar, mediante a morte, ao que estava morto. Tu, sendo homem e para tua perdição, quiseste ser Deus; ele, sendo Deus, quis ser homem para encontrar o que estava perdido. Também te oprimia a soberba humana, que somente a humildade divina podia te levantar. Celebremos, pois, com alegria o dia em que Maria deu à luz ao Salvador."

Na antessala da virada do último milênio, o poeta Carlos Drummond de Andrade registrou em versos o acontecimento anunciado pelo profeta e o gesto que repetimos a cada Natal: "nos curvamos diante do seu berço tecido de palha, vento e ar".

 

O rei menino

O estandarte do Rei não é de púrpura e brocado,
é um lírio flutuante sobre o caos
onde ambições se digladiam
e ódios se estraçalham.
O Rei vem cumprir o anúncio de Isaías:
Vem para evangelizar os brutos,
consolar os que choram,
exaltar os cobertos de cinza,
desentranhar o sentido exato da paz,
magnificar a justiça.

Entre Belém e Judá e Wall Street,
no torvelinho de negações e equívocos,
a vergasta de luz deixa atônitos os fariseus.
Cegos distinguem o sinal,
surdos captam a melodia de anjos-cantadores,
mudos descobrem o movimento da palavra.
O Rei sem manto e sem jóias,
nu como folha de erva,
distribui riquezas não tituladas.
Oferece a transparência
da alma liberta de cuidados vis.
As coisas já não são as antigas coisas
de perecível beleza
e o homem não é mais cativo de sua sombra.
A limitação dos seres foi vencida
por uma alegria não censurada,
graça de reinventar a Terra,
antes castigo e exílio,
hoje flecha em direção infinita.

O Rei, criança,
permanecerá criança mesmo sob vestes trágicas
porque assim o vimos e o queremos,
assim nos curvamos diante do seu berço
tecido de palha, vento e ar.

Seu sangrento destino prefixado não dilui
a luminosidade desta cena.
O menino, apenas um menino,
acima das filosofias, da cibernética e dos dólares,
sustenta o peso do mundo
na palma ingênua das mãos.

Que possamos, como Santo Agostinho, celebrar com alegria, admirar o "admirável" que "nasce admiravelmente" e elevar nossas preces:

O Mãe do Redentor, do céu ó porta,
ao povo que caiu, socorre e exorta,
pois busca levantar-se, Virgem pura,
nascendo o Criador da criatura:
tem piedade de nós e ouve suave,
o anjo te saudando com seu Ave!

 

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