Estudar a Bíblia é estudar a si mesmo. Entrevista com Roberto Della Rocca

(Foto: Priscilla Du Preez | Unsplash)

09 Novembro 2022

O rabino Roberto Della Rocca senta-se confortavelmente em uma poltrona e eu fico na sua frente com meu caderninho observando seus movimentos. Ele não é alto, usa o tradicional kipá e sua figura parece suavizada pela curva de seus olhos. Se eu estivesse vagamente inspirado, como era Isaac Singer quando falava de seu mundo (e nem sempre falava bem dele), diria que a elegância de um pensamento se mede por sua bárbara simplicidade. Eu diria assim.

Exceto depois acrescentar que o judaísmo é tudo menos algo simples. A densa teia de símbolos que o cerca, as intermináveis disputas rabínicas, até a forma soberbamente inusitada de uma religião brincar com seus próprios costumes fazem dele algo único, a meio caminho entre o sentir humano e doloroso e o suportar divino e furioso.

Olho para o meu interlocutor. Ele tem um pequeno defeito de fala e aos meus olhos o que pode parecer uma banal imperfeição assume uma importância quase igual àquela que um Moisés gaguejante exibia diante de Deus.

Que não passava de uma maneira de se fazer pequeno, de dizer: eu que quase nem se falar direito, como posso ser o líder de um povo? A língua é imperfeita, mas sua força também está em indicar uma direção a tomar e seguir. Não é por acaso que o novo livro de Della Rocca traz como título Camminare nel tempo (Caminhar no tempo, em tradução livre, publicado pela Giuntina), que é uma forma de subtrair do espaço a primazia dos lugares para entregá-la às palavras.

Camminare nel tempo. Spunti e riflessioni su passi della Torà e sulle ricorrenze ebraiche

Lembro-me das figurinhas voadoras que Chagall pintou com a graça de quem se imaginou fora do espaço, mas ainda dentro do tempo. Não é este o segredo da Torá, a pompa feroz dos monoteísmos, o livro que reúne o ensinamento mosaico? Della Rocca é um magnífico intérprete do texto, rico em curiosidade, sugestão e doutrina.

A entrevista com Roberto Della Rocca é de Antonio Gnoli, publicada por Robinson, 06-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis a entrevista.

Quem é um rabino hoje?

Um mestre, um guia espiritual. Ele pede ao estudante o estudo e aprofundamento da Torá, que é uma jornada em busca de si mesmo.

Caminhar é tão importante?

Em sentido figurado, diria que sim. Quando você fica parado por muito tempo, na realidade você está dando passos para trás.

Sempre foi sua aspiração se tornar um rabino?

Eu era advogado e então um encontro com Elio Toaff foi decisivo. Ele me disse: você não pode jogar em dois times. Você sabe quantos advogados e quantos rabinos existem na Itália? Imagine de que lado você seria mais útil para a sociedade. Toaff foi um grande rabino, sua sabedoria era tão profunda quanto seu conhecimento.

Quão importante é conhecer a Bíblia hoje?

É o livro que formou um povo, e foi além daquele povo. A mensagem judaica parte de uma dimensão particular para se estender ao universal.

Com que efeitos?

Narrar o detalhe de uma história implica algo mais do que a própria história. Noé e Abraão não são apenas eventos individuais, mas dois modelos alternativos.

Explique.

Se Noé está com frio, coloca um casaco de pele para se aquecer. Abraão combate o frio acendendo fogueiras, para aquecer os outros também. Um seleciona a raça humana e salva sua essência na Arca, o outro levanta tendas e acolhe qualquer um.

Egoísmo contra altruísmo.

Na realidade, são comportamentos humanos que devem ser inscritos na dimensão ético-religiosa. E é essa dimensão que separa o mundo judaico da mitologia grega. Na língua hebraica não existe a palavra "mito". A mitologia é composta de heróis, enquanto os personagens bíblicos são quase todos anti-heróis. São figuras contraditórias, frágeis, ambivalentes. Em busca de um papel que eles custam a encontrar.

Quem por exemplo?

Moisés, Davi, Jonas que até foge. São personagens que se tornam pequenos diante da missão. Eles tomam consciência daquela precariedade que os tornará fortes. Por exemplo, a luta de Jacó com o Anjo é na realidade a luta consigo mesmo. Para descobrir a sua própria identidade.

Outras interpretações defendem que o Anjo é Esaú. Repropondo a disputa entre os dois gêmeos.

É verdade. Mas acho mais convincente a leitura segundo a qual o sonho de Jacob, quando o anjo lhe aparece, é na realidade uma duplicação do seu próprio Ego. Há uma parte de Jacó que duvida de sua missão, está angustiada, sente-se solitária, sem ímpeto, enquanto a outra parte mostra o sonhador. Não o homem apagado e enganador, mas o fundador de Israel.

Você argumenta que há ambiguidade nele desde o nome.

A própria raiz do nome Yaakov indica uma pessoa tortuosa, ambígua.

A luta com o Anjo, mas também o forte desacordo com Esaú, nos fazem pensar em tantos conflitos que estão presentes na Torá. Lembramos a amarga disputa entre José e seus irmãos, que chegam a planejar seu assassinato.

Mas depois Rubem, o mais velho dos filhos de Jacó, salva José das mãos de seus irmãos. Essas histórias bíblicas, por vezes sangrentas, sofridas, dilacerantes, dizem-nos que cada um de nós é constituído por muitas partes e trabalhar sobre a identidade significa juntá-las de forma harmoniosa.

Entende-se por que a psicanálise deve muito ao mundo judaico.

A interpretação, mesmo dos sonhos, exige uma capacidade de saber ler os símbolos. A etimologia da palavra ‘símbolo’ significa que algo disjunto deve ser recomposto. Toda a tradição judaica é muito rica em símbolos.

Por exemplo, o kipá que você usa é um símbolo?

O kipá é um símbolo que nos lembra que sempre há alguém acima de nós. Esse peso aparentemente imperceptível sugere que não somos onipotentes. Portanto, meu comportamento é, de alguma forma, marcado por essa vestimenta.

O fato de alguém, ou seja, Deus, estar acima de nós limita nossa liberdade?

É uma maneira diferente de entender a liberdade.

Você argumenta que a ética judaica é baseada na verticalidade do comando.

Se não fosse assim, qualquer ética seria boa, então nenhuma ética o seria realmente.

A injunção do comando divino neutraliza o relativismo ético?

Entendo que possa parecer contraditório colocar lado a lado a obrigação de um comando e a liberdade. No Talmud há um ensinamento que pode parecer paradoxal: é mais merecedor aquele que observa um mandamento porque é obrigado do que aquele que o faz livremente. Se uma ética estivesse ligada à espontaneidade do gesto, acabaria por depender das boas intenções. Mas nem sempre o homem é guiado pelo belo gesto. É por isso que precisa de um mandamento. Está nisso a importância do símbolo do kipá.

Você mencionou o Talmud, qual é a diferença da Torá?

O Talmud é o comentário daquela parte da Bíblia, principalmente os cinco livros mosaicos, que compõem a Torá.

Em última análise, reúne as disputas rabínicas.

O Talmud é uma espécie de monumento literário, uma viagem hipertextual dentro da tradição oral judaica que depois se torna escrita, para poder conter e organizar todo esse conhecimento. Deve-se explicitar que originalmente era proibido colocar os ensinamentos por escrito.

Por quê?

A escrita tende a cristalizar e tornar dogmática a forma do pensamento. Enquanto o ensinamento da Torá é vivo e fluido. Em suma, trata-se de uma tradição inadequada para a escrita. Não é por acaso que em cada página do Talmud se percebe o sofrimento por ter aprisionado a livre palavra oral.

No entanto, é o Talmud que fornece a especificidade do pensamento judaico.

O Talmud estuda a exegese do texto bíblico, comenta-o e interpreta-o, também de um ponto de vista comportamental. Explica, por exemplo, como o sábado deve ser lembrado, evitando assim os aspectos folclóricos da tradição. Quanto mais a Bíblia se torna patrimônio de outras religiões, mais o Talmud se revela fundamental para o pensamento judaico. Os maiores exegetas bíblicos são medievais.

Você costuma mencionar a figura de Maimônides.

Ele foi o maior codificador da jurisprudência rabínica e o filósofo mais profundo entre os rabinos. Sua obra fundamental é O Guia dos Perplexos. Mas até escreveu um tratado de psiquiatria.

Ele escrevia em árabe.

Como você queria que ele escrevesse. Era andaluz, nascido em Córdoba.

Como Averróis.

Seu Guia dos perplexos tendia, ao contrário de Averróis, a aproximar religião e filosofia. Em Córdoba, na única sinagoga que permaneceu de pé e que hoje pode ser livremente visitada, há uma estátua dele. A influência de seu rabinato se estendeu por séculos.

Gostaria de voltar à sua história. Eu sei que você nasceu em Roma.

Mais precisamente no gueto, de uma família de origens judaicas muito antigas. Uma família tragicamente marcada pelo Holocausto. O avô paterno foi deportado para Auschwitz por causa de um espião fascista. Ele era um agente comercial. Chamava-se Rubino, que é o meu nome do meio. Deixou minha avó com seus três filhos em situação de extrema pobreza. Meu pai era o mais novo dos três.

Como eles se arranjaram?

Foi difícil. Meu avô morreu durante uma transferência para Mauthausen. Esgotado pela pneumonia, ele não conseguia mais andar. Um soldado da SS atirou nele. O rabino-chefe de Roma pegou meu pai, então com 13 anos, sob sua proteção e o iniciou nos estudos rabínicos. Nasci de pai rabino e mãe professora de hebraico. Papai era o grande cantor da sinagoga, aquele que cantava as melodias mais solenes. Cerca de um ano e meio atrás, com 34 dias de diferernça, meus pais morreram de Covid. Para mim foi uma dor dentro da dor não poder atendê-los nos últimos dias de vida. Resta-me o seu extraordinário ensinamento.

Quanto esse ensinamento contou para suas escolhas?

Sou formado, como disse, em Direito e durante alguns anos exerci a profissão de advogado criminal. Ao mesmo tempo, aprofundei meus estudos judaicos. Fiquei em Jerusalém por muito tempo. Em 1982, há exatos 40 anos, houve o atentado à sinagoga de Roma. Naquele dia que eu estava com minha mãe, nos salvamos porque saímos do templo dez minutos antes. Foi então que fui até Toaff e ele me colocou diante da alternativa do que fazer da minha vida. E eu escolhi. Fui rabino em Veneza por dez anos. Eu casei. Tenho três filhos.

Agora está em Roma com que função?

Eu dirijo o departamento de educação e cultura para a união das comunidades. A minha maior paixão é ensinar a Torá, nas escolas e nas várias sinagogas.

A Torá prevê o canto?

Graças a uma tradição muito antiga, as suas melodias são cantadas. Como o alfabeto hebraico é consonantal, a tradição oral vocalizou a Torá.

O canto dita o ritmo. Mas os preceitos ditam o comportamento. Você realmente se sente livre?

A liberdade não pode prescindir da responsabilidade. É esta que torna consciente aquela. Hoje alcançamos um alto nível de liberdade política. Felizmente, estamos livres de ditaduras. Mas ainda somos escravos dos objetos, das ideologias, dos lugares-comuns.

É o outro lado das democracias. O que você sugere?

Não cabe a mim oferecer indicações políticas. Só posso recordar a respeito de símbolos e ritos o significado da Páscoa judaica, durante a qual se celebra a saída do povo judeu do Egito.

Qual significado atribuir-lhe?

Sete semanas se passam desde a saída do Egito até a Torá. Isso significa simbolicamente que a liberdade requer um caminho e uma consciência particulares. Os judeus não podem desembarcar imediatamente na terra prometida. Para que isso aconteça, para fazer sair o Egito que está dentro de nós. O exílio não é somente uma questão geográfica, o exílio mental é pior que o físico.

Pior em que sentido?

A liberdade não pode ser autocelebração. Não pode se tornar alienação ou idolatria. O dom mais importante da Torá é ter-nos dado uma liberdade que é também ética.

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