Escutar a realidade dos grupos humanos que lutam por segurança econômica e existencial, eis o passo mais uma vez adiado pela esquerda. Entrevista especial com Flavio Lazzarin

"Hoje é a direita que mundialmente se apropria da narrativa antissistêmica e anticapitalista, juntando consensos, enquanto a esquerda perde terreno, justamente porque há muito tempo esgotou sua energia antisistemica e se adaptou ao status quo", afirma o padre italiano Fidei Donum

Foto: Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | 13 Outubro 2022

 

O resultado do primeiro turno das eleições deste ano confirma o dito do livro Eclesiastes: "Nada de novo debaixo do sol", diz Flavio Lazzarin ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. "Confirma-se, de fato, a presença, na sociedade brasileira, de uma direita autoritária e racista, com a única novidade de uma fala sem censuras, despudorada e infame. É a direita antiga, enraizada desde a época colonial e protagonista da fundação republicana, ligada à invenção esdrúxula de um quarto poder constitucional: as Forças Armadas, que desde sempre se consideram garantes e defensoras da integridade ideológica e política do Brasil", resume.

 

Este cenário, ressalta, antes de ser meramente acusatório, suscita a pergunta: "São todos e todas fascistas?" "Responder afirmativamente a essa pergunta", diz, é "superficial e equivocado" porque "evita-se o esforço de entender o que se passa na cabeça e no coração do nosso povo. Evita-se o esforço de fazer perguntas sobre um mundo e uma sociedade em incessante mudança. Elimina-se o primeiro passo metodológico que devia ser a escuta da realidade dos grupos humanos que lutam por segurança econômica e existencial". Esse processo, lamenta, "mais uma vez, é adiado pela chamada esquerda brasileira".

 

Segundo ele, o resultado das eleições também expressa um movimento que vem ocorrendo "há muito tempo", segundo o qual "as classes médias e as camadas populares, cada qual com sua crise, abrigam profundos sentimentos de desconforto em relação ao mundo globalizado, em relação ao sistema que governa o mundo – e o país – e tentam identificar forças e poderes – além de rotular inimigos e construir culpados – para escapar de conjunturas que proporcionam dificuldades econômicas e existenciais".

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Lazzarin também comenta o crescimento da extrema-direita em outros países, como EUA, França, Suécia, Hungria, Rússia, Itália, Polônia, Espanha, Áustria, e as implicações globais da guerra entre a Rússia e a Ucrânia.

 

Flavio Lazzarin

Foto: Arquivo pessoal

 

Flavio Lazzarin é padre italiano Fidei Donum. Formado em Teologia pelo Seminário de Mantova e em História pela Universidade de Milão. Atua na Diocese de Coroatá, no estado do Maranhão. Também é agente da Comissão Pastoral da Terra – CPT.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – O que o resultado das eleições do primeiro turno no Brasil revelou ao senhor?

 

Flavio Lazzarin – Devido às minhas limitações, já me vi em dificuldade diante do recente resultado das eleições italianas, com a vitória acachapante da direita, e me vejo novamente em dificuldade diante do resultado do primeiro turno das eleições brasileiras.

 

Perplexo diante dos números surpreendentes, fico quase obrigado a lembrar uma observação de Vilfredo Pareto, que escreveu que, se a economia é uma disciplina que tem a ver com lógica, a sociologia, pelo contrário, tenta estudar comportamentos que não teriam nada de racional, pois os seres humanos seriam dominados por emoções e crenças ideológicas e não usariam a razão para buscar a verdade, mas para traí-la e deformá-la. E, insistindo em negatividade, o meu pensamento retoma o Trilema de Münchhausen, que ressalta a impossibilidade de se provar qualquer verdade mesmo nos campos da lógica e da matemática.

 

É o que sinto, de imediato, vendo a vitória da direita nas eleições italianas e a conjuntural derrota eleitoral do bolsonarismo, contrabalanceada, porém, por uma inegável vitória política.

 

Não consigo encontrar explicações aceitáveis e me pergunto se a multidão, que de repente se tornou maioria na Itália e massa em preocupante crescimento no Brasil, lê a realidade como os políticos e os intelectuais de esquerda.

 

 

Depois de ter acalmado as emoções, posso dizer, no entanto, que, há muito tempo, as classes médias e as camadas populares, cada qual com sua crise, abrigam profundos sentimentos de desconforto em relação ao mundo globalizado, em relação ao sistema que governa o mundo – e o país – e tentam identificar forças e poderes – além de rotular inimigos e construir culpados – para escapar de conjunturas que proporcionam dificuldades econômicas e existenciais.

 

Hoje é a direita que mundialmente se apropria da narrativa antissistêmica e anticapitalista, juntando consensos, enquanto a esquerda perde terreno, justamente porque há muito tempo esgotou sua energia antissistêmica e se adaptou ao status quo. E Lula é o político que adere ao sistema, representante de uma esquerda, não somente brasileira, que deixou, há muitas décadas, de ser anticapitalista.

 

No Brasil, a revelação patente e incontestável da vocação sistêmica da esquerda se dá em junho de 2013, quando a multidão contesta veementemente o PT e o condomínio peemedebista e enfrenta a truculenta repressão policial das manifestações. O divórcio das esquerdas da movimentação e da capacidade de insurreição popular não podia não ter um desfecho tão emblemático, que se consolida juridicamente quando a presidente Dilma Rousseff sanciona a lei de antiterrorismo, às vésperas dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro.

 

 

Nada de novo debaixo do sol

 

Além de confirmar o papel sistêmico da esquerda, o resultado do primeiro turno nos diz, por certos aspectos: “nada de novo debaixo do sol”. Confirma-se, de fato, a presença, na sociedade brasileira, de uma direita autoritária e racista, com a única novidade de uma fala sem censuras, despudorada e infame. É a direita antiga, enraizada desde a época colonial e protagonista da fundação republicana, ligada à invenção esdrúxula de um quarto poder constitucional: as Forças Armadas, que desde sempre se consideram garantes e defensoras da integridade ideológica e política do Brasil. A meu ver, esta agremiação é mais relevante do que o bolsonarismo, que, conjunturalmente, é usada para ocupar espaços políticos mais amplos no futuro. Extrema-direita que tem características globais e se afina com o crescimento das direitas nos EUA, França, Suécia, Hungria, Rússia, Itália, Polônia, Espanha, Áustria...

 

Por outros aspectos, não faltam novidades. Afirma-se uma multidão de eleitores, que, surpreendentemente – e acrescentaria: apesar de tudo –, vota em Bolsonaro e dá um poder e uma projeção política à extrema-direita nunca vistos anteriormente no país.

 

 

São todos e todas fascistas?

 

Cabe aqui uma pergunta: são todos e todas fascistas? Acredito que responder afirmativamente a essa pergunta seja superficial e equivocado. Evita-se o esforço de entender o que se passa na cabeça e no coração do nosso povo. Evita-se o esforço de fazer perguntas sobre um mundo e uma sociedade em incessante mudança. Elimina-se o primeiro passo metodológico que devia ser a escuta da realidade dos grupos humanos que lutam por segurança econômica e existencial. José de Sousa Martins, numa recente entrevista, citava Harold Garfinkel e a etnometodologia, que pretende escutar a realidade a fim de perceber mudanças e variações no comportamento político das várias camadas da sociedade. Mas este processo, mais uma vez, é adiado pela chamada esquerda brasileira. Prefere-se pensar em multidões eleitorais fixas e imutáveis, em torcidas fanaticamente fiéis e ideologicamente ou geograficamente mumificadas.

 

 

IHU – No que a composição da Câmara e do Senado, eleita no último dia 3, efetivamente representa sobre o Brasil que se o senhor tem visto e vivido?

 

Flavio Lazzarin – Neste caso, percebe-se algo novo: o enxugamento dos partidos de centro-direita, começando pelo antigamente poderoso PSDB, que foram absorvidos pelo aumento do número de deputados e senadores explicitamente de direita, que, junto com também expressivo número de governos estaduais bolsonaristas, poderá dificultar ulteriormente o governo Lula, se sair vitorioso no segundo turno.

 

O desaparecimento dos tucanos seja talvez o sintoma da crise da hegemonia do neoliberalismo, sistema sólido e indiscutível ao menos até 2008.

 

O quadro de graves dificuldades que esperam o lulo-petismo, em caso de vitória, fica caracterizado por desafios básicos: Vai ter comida para os que passam fome? Vai ter emprego? E o valor do salário-mínimo? O preço dos combustíveis? Como retomar políticas públicas desestruturadas? E o SUS e a educação?

 

 

E esses desafios básicos são inadequados e mínimos diante da crise civilizatória, porque atrasam indefinitivamente a tomada de decisões políticas urgentes, relativas a ajustes e reviravoltas necessárias, alternativas ao modelo econômico hegemônico: energia, agro e hidronegócio, mineração, Amazônia, Cerrado, aquecimento global, mudanças climáticas...

 

Isso, realisticamente, significa que deixaremos ao Papa Francisco e às minorias abraâmicas a tarefa da profecia e da praxe antissistêmica e que o nosso país, ainda por muito tempo, será condenado a viver a terrível alternância entre governos de extrema-direita e governos de esquerda obrigados a implementar políticas de direita, no âmbito desta polarização que nos divide radicalmente.

 

 

O bem possível ou o mal menor?

 

Tenho dúvidas de que a esquerda possa abandonar os vícios inconcludentes de narrativas vinculadas à repetição do passado. A impotência diante do presente repete-se quando aplicamos o rótulo do inimigo a quem cuja insatisfação deveria nos mobilizar para traduzi-la politicamente. Na Itália, a derrota da esquerda mostra a mesma patologia com os mesmos sintomas, mas de uma forma talvez mais próxima do fim. E, obviamente, discute-se sobre a necessidade de mudar, mas a única mudança que está sendo proposta é a do nome do partido.

 

Por enquanto, aqui no Brasil, podemos e devemos esperar por um pacto de não beligerância, um armistício propiciado pela habilidade de Lula, que talvez abra perspectivas menos sombrias. É o bem possível – ou o mal menor? – que nos sobra, para aquecer um mínimo de esperança na política institucional.

 

Mas a minha aposta, maximizando o poder da esperança, continua posta na convicção de que a salvação e a mudança vêm da planície e não do Planalto. E quero manter esta fidelidade às insurgências e lutas das minorias messiânicas, dos povos do Bem Viver, o Teko Porã dos Guarani, o Ubuntu da África, a Minga dos Andes, o samba e a capoeira, o candomblé e São Francisco de Assis. São estes pequeninos e pequeninas que propõem caminhos, inspirados pelos Encantados e pelo Evangelho, para enfrentar as contradições da modernidade e a destruição capitalista. É nesta planície que se defendem e retomam territórios e ancestralidades, nunca esquecidos, apesar da hegemonia da modernidade colonial.

 

 

IHU – Em suas reflexões, o senhor tem apontado que a modernidade tem se revelado capaz de “derreter tudo que já parecia sólido”, como a democracia, o Estado de direito etc. Gostaria que retomasse esse raciocínio e analisasse se, a partir do caso brasileiro, a extrema-direita não tem compreendido melhor esse processo de "derretimento".

 

Flavio Lazzarin – Faz-se mister citar um antigo livro de Marshall Berman, intitulado Tudo o que é sólido desmancha no ar, afirmação de Marx e Engels com relação à modernidade, que encontramos no Manifesto do Partido Comunista de 1843. Berman mostra como, nos séculos XIX e XX, as mudanças na literatura, na arquitetura, na urbanística, são acompanhadas por processos de destruição física e cultural de territórios e espaços de relações humanas tradicionais. Isto em Paris, com Le Corbusier, em Nova York, com Robert Moses, na São Petersburgo de Nicolau I.

 

Berman retoma também outro mito fundador da modernidade e nos conta novamente a história de dois velhinhos, Filémon e Baucis, no Fausto, tragédia de Goethe. O casal vive em harmonia com a natureza e preza pela hospitalidade e fraternidade, mas o Doutor Fausto consegue obter do imperador algumas terras, submersas pelas águas, como um feudo, graças à ajuda de Mefistófeles, a quem vendeu a alma. As terras improdutivas são recuperadas pelas barragens construídas por Fausto. As barragens afastam o mar e agora tudo está sob o seu domínio. Quase tudo. No território tem uma cabana onde vivem Filémon e Baucis. É preciso eliminá-los e Fausto os eliminará.

 

Goethe oferece talvez o primeiro símbolo trágico da modernidade: Fausto, homem de ciências e técnicas, mestre do progresso, cheio de energia satânica que destrói a vida e profana os valores mais sagrados. “Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas”.

 

A história de Filémon e Baucis é infelizmente atual e se repropõe, sem solução de continuidade, em todas as investidas da modernidade capitalista, do progresso, contra os povos originários e o campesinato tradicional.

 

 

A tragédia de Goethe é escrita entre 1808 e 1832. Já na Primeira Revolução Industrial o capitalismo mostrava a sua cara maléfica e destruidora. Nos séculos seguintes, foi obrigado, pelas lutas populares, a conceder direitos e a se remodelar politicamente no confronto com os trabalhadores, em suma, a disfarçar a sua constitutiva violência.

 

O que se revelou constitutivo do capitalismo moderno nos seus inícios pode ajudar a entender a crise atual e responder a quem se pergunta se o fascismo generalizado é efeito neoliberal ou se, pelo contrário, seria o fascismo a causa da decadência do neoliberalismo. Parece-me óbvio que a direita, apesar da sua artificiosa postura antissistêmica, irá apoiar irrestritamente, em oposição à lei e aos direitos mais básicos, a versão mais desumana e destruidora do capitalismo.

 

Esses meus delírios nos dizem que devemos nos preparar para a resistência e a luta, com novas perguntas, novas forças, novos estilos e estratégias, porque a hipótese de um cenário mais grave não é tão bizarra, pois parece que a classe trabalhadora e seus subsequentes substitutos – o movimento dos anos 70 ou mais recentemente as multidões – não podem ser os protagonistas coletivos da mudança e que, pelo contrário, em breve, podemos testemunhar a realização hegemônica, autoritária e assassina de uma oligarquia mundial reconstituída, com matrizes e filiais nacionais.

 

 

IHU – A esquerda no Brasil e no mundo não estaria demasiadamente ainda lastreada em ideias e conceitos da Modernidade, enquanto para a vida concreta essa já parece ter sido superada?



Flavio Lazzarin – Não dá para fugir da modernidade, porque não dá para escamotear a realidade, e as nostalgias das “certezas” do passado podem se transformar em pesadelos, envolvendo ambos os segmentos ideológicos, seja de direita, seja de esquerda.

 

Vejo atualmente com simpatia atitudes e posturas da esquerda “que pensa” em dois intelectuais importantes: Giuseppe Cocco e Bruno Cava Rodrigues, da Universidade Nômade. São vozes que soam desafinadas diante do coro unânime da intelectualidade institucional de esquerda. E oportunamente desafinadas diante do obediente âmbito teológico, supostamente libertador, da intelectualidade e da militância católica.

 

Sedutora a leitura da conjuntura brasileira dos dois professores. O elemento prioritário não é a repetição ritualista e moralista da degeneração ética e incapacidade política do lumpesinato brasileiro, ou o elogio da maturidade política nordestina, mas o esforço de entender o que mudou na nossa sociedade. Trata-se de uma interessante interpretação urbana, que, todavia, aparentemente, esquece a insurgência territorial, no campo e na cidade, dos povos originários, quilombolas e camponeses.

 

Diante de uma realidade social com certeza bem mais complexa, os dois levantam a hipótese que o ponto-chave seria a divisão do povo brasileiro em dois grupos: aqueles, que, apesar do desmonte dos direitos trabalhistas, conseguem se reinventar, até se uberizando, e um segundo grupo, nos limites da sobrevivência, que depende da transferência de renda por programas governamentais. “Batalhadores” que, na eleição brasileira, segundo Giuseppe Cocco, se dividiram “entre pró-Bolsonaro (mais empreendedores e menos atendidos) e pró-Lula (mais atendidos pelos programas).

 

É uma contribuição importante que estimula novas perguntas e novas abordagens. A flexibilidade que caracteriza a mobilização do trabalho no Brasil pode ser lida não simplesmente como perda dos direitos trabalhistas, garantidos num sistema salarial, mas como mutação que comporta novos sujeitos políticos, novas liberdades, novos antagonismos, tendo os trabalhadores renovado poder de enfrentamento do capital.

 

 

IHU – No que consiste e como se articula o conservadorismo na Igreja? Como podemos compreender as relações entre o conservadorismo político e eclesial?

 

Flavio Lazzarin – Por incrível que pareça, percebo que a agressão da Rússia à Ucrânia me ajuda a entender melhor a questão da oposição à modernidade por setores significativos da Igreja Católica. Deixo de lado a tentativa de abrir uma janela sobre as Igrejas Evangélicas do Brasil, porque o quadro é talvez mais complexo e de árdua interpretação.

 

Posso me aventurar a pensar que a invasão da Ucrânia também é uma operação militar e ideológica antissistema. Na verdade, a guerra não se caracteriza como um evento regional, mas já é global quando, querendo ou não, a Rússia rompe com o projeto capitalista de finanças, tecnologias, alimentos, energia e matérias-primas circulantes, sem fronteiras e alfândegas, no mercado global. Esta guerra parece ser radicalmente contra o projeto sistêmico de interdependência, hegemônico neste último quarto de século e, de fato – se uma solução diplomática não for encontrada –, podemos sugerir a hipótese de um retorno à lógica oligárquica dos impérios e das identidades étnicas e nacionais.

 

 

Radicalismo ético e político

 

Hoje, há outra posição antissistema e isso é explicitamente assumido com radicalismo ético e político. Podemos afirmar que o Papa Francisco é o líder mundial deste confronto, na luta contra a injustiça, a fome e a guerra, em defesa amorosa da vida, de toda a vida, do clima, do meio ambiente. Esta posição da Igreja Católica diante dos resultados perniciosos da modernidade não é nova e, infelizmente, somos obrigados a recordar a dureza desumana do Silabus e do Concílio Vaticano I, que condenam o racionalismo e o liberalismo. Documentos que deveriam ter sido um serviço à verdade, reveladores dos males da modernidade, mas que, em vez disso, escondem-na com a arrogância presunçosa daqueles que se consideram os senhores da verdade, sentados entre os senhores do mundo. Na verdade, Pio IX parece esquecer a Palavra e a pessoa de Jesus, e, inevitavelmente, aceita a companhia e aliança explícita com os poderes reacionários, aristocráticos e imperiais da época.

 

Hoje, temos amplos setores da Igreja Católica que se opõem, até com ódio e agressividade, aos caminhos abertos pelo Papa Francisco, e setores significativos da Igreja que esperam uma mudança radical real de perspectivas, estilos e prática evangélica e não a reprodução revisada e manipulada do passado. Os tradicionalistas, fortalecidos também pelo apoio oferecido pelo pântano dos chamados moderados, escolhem, pelo contrário, a repetição sagrada da tradição, a fidelidade idolátrica à doutrina, a adesão a um cristianismo prevalentemente ideológico, de estilo neoescolástico, mais racional e menos existencial. Desde sempre estas posições levam à aliança com as forças políticas mais reacionárias e propriamente nazifascistas. No Brasil, isto se deu com clareza na sustentação da ditadura civil-militar e se repete, hoje, no casamento com o bolsonarismo.

 

É o que está acontecendo também, em contextos bem diferenciados, na Igreja Ortodoxa do Patriarcado de Moscou, que apoia a guerra e a reproposição da hegemonia pan-russa da oligarquia de Putin. Ortodoxia antimoderna em nome da tradição religiosa russa.

 

 

IHU – Ainda sobre o resultado das urnas nesse primeiro turno, podemos afirmar que no nordeste brasileiro há sensibilidades maiores, e, logo, respostas, para as crises de nosso tempo?

 

Flavio Lazzarin – Precisamos falar de dois Brasis, e eu também acho que é preciso compartilhar a posição de Eduardo Viveiros de Castro. Recuso-me a tematizar o dualismo entre um Brasil moderno do Sul e do Centro-Oeste e um Brasil arcaico do Nordeste. Mas sublinho a existência de um Brasil branco e colonizador no Sul e um Brasil indígena, negro e caboclo no litoral e nos interiores, no Cerrado, na Amazônia e na Caatinga. Este Brasil pode representar o arcaico na medida em que se adapta à condição de povos ainda controlados e explorados pela lógica e poder dos colonizadores, mas, quando insurgente, é profecia existencial do Bem Viver e da Terra sem Mal, perigoso inimigo espiritual e político da modernidade capitalista.

 

O único Brasil inegavelmente arcaico é o Brasil colonizador e racista; o Brasil oligárquico, fascista, militar e miliciano.

 

O Brasil indígena, negro, quilombola e caboclo tem, desde sempre, uma sábia relação antropofágica com os colonizadores. Canibaliza-se simbolicamente o adversário para se apropriar criticamente do que pode ser sincretizado nos processos de autonomia e independência religiosa, cultural e territorial.

 

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