O ponto de inflexão da Itália? A renúncia de Draghi pode levar ao populismo de extrema-direita. Artigo de Massimo Faggioli

Bandeira da Itália. Vídeo: Pixabay

01 Agosto 2022

 

“Declarações recentes do Papa Francisco, do cardeal Pietro Parolin e do cardeal Matteo Zuppi sugerem que os líderes da Igreja se sentem quase compelidos a apoiar políticas tecnocráticas das quais não gostam por medo de partidos de direita que fazem uso cínico do cristianismo para sua plataforma anti-imigração. Não há mais partidos ou elites políticas aos quais o papa, os cardeais e os bispos possam apelar. A “Teologia do Povo” do Papa Francisco ainda pode continuar bem na Igreja até o processo sinodal. Mas os populistas da Itália podem desvirtuar tudo o que é de Francisco, em grande parte, graças aos votos dos católicos italianos”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por Commonweal, 27-07-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

No próximo 25 de setembro os italianos irão às urnas para eleger um novo parlamento. Isso é praticamente seis meses antes do planejado, resultado da renúncia do primeiro-ministro Mario Draghi em 21 de julho e a dissolução da coalizão que eles tinham apoiado seus governos desde fevereiro de 2021. O colapso dos governos de coalizão na Itália não é tão novidade, é claro, mas desta vez as consequências podem ser particulares: os populistas da extrema-direita tem uma chance real de assumir o controle, o que afetaria não apenas as relações com a Europa e os Estados Unidos, mas também a posição do Ocidente em relação à guerra na Ucrânia.

 

Draghi foi presidente do Banco Central Europeu de 2011 a 2019, foi buscado para o governo italiano com a benção do establishment, que o via como um tecnocrata com capacidade para moderar as demandas populistas do Movimento Cinco Estrelas e, ao mesmo tempo, abafaria as pressões da extrema-direita da Lega Nord de Matteo Salvini e os Fratelli d'Italia de Giorgia Meloni. A razão de ser do seu governo era tentar fazer o melhor uso dos fundos extraordinários vindos da União Europeia para a recuperação da pandemia. Uma suspensão da política “usual” foi a única coisa que o governo conseguiu, mas uma divisão interna dentro do Movimento Cinco Estrelas rapidamente trouxe sua demissão – prova mais uma vez da instabilidade de uma vasta coalizão que vai da extrema-direita à centro-esquerda.

 

Também é possível traçar a queda de Draghi ao fracasso em elegê-lo presidente da república em janeiro de 2022. Isso teria dado à Europa e ao sistema financeiro internacional a garantia de que a Itália estava nas mãos de um funcionário público altamente respeitado. Ao mesmo tempo, eleger o primeiro-ministro em exercício como presidente teria sido constitucionalmente complicado e teria transformado a Itália de um sistema parlamentar em um sistema semipresidencialista, como o da França. A Itália continua a valorizar a proliferação de partidos políticos e, de fato, prefere que as coalizões sejam incapazes de governar de forma decisiva. Esta foi uma decisão consciente tomada durante a convenção constitucional entre 1946 e 1948, quando, com a memória do fascismo fresca em mente, os italianos temiam o poder ideológico que o vencedor em um sistema do vencedor leva tudo. Mas 75 anos depois, essa cláusula “silenciosa” antifascista (e anticomunista) pode muito bem levar ao surgimento de partidos que não possuem o DNA da democracia italiana do pós-guerra – e ainda por cima pode não até oferecem as garantias pró-ocidentais que Silvio Berlusconi tem desde 1994.

 

Nas eleições de 2018, quase um em cada três italianos votou no Movimento Cinco Estrelas. O Cinco Estrelas forneceu um alívio importante a milhões de italianos graças à sua pressão por uma renda básica universal, mas o partido era incapaz de elaborar uma plataforma e incompetente no governo. A maioria desses votos poderia ir agora para a extrema-direita, especialmente para os Fratelli d'Italia de Meloni – que foi aberto ao abraçar a nostalgia do iliberalismo, se não do fascismo. Ela e a Lega Nord isolacionista de Salvini competem na exploração da questão da imigração, mas ambas também condenam a agenda tecnocrática de Draghi em um país onde o número de italianos que vivem na pobreza ou perto da pobreza aumentou (dados recentes dizem 6 milhões), especialmente no sul. Embora a neoliberal Forza Italia de Berlusconi não domine mais a direita, ela ainda tem a bolsa mais rica e o maior apoio de propaganda, graças ao império midiático do magnata.

 

Do outro lado do espectro, não há um equivalente socialmente progressista aos populistas. O Partido Democrata tornou-se uma facção moderada e conservadora pró-establishment, apoiadora de políticas tecnocráticas e sem credibilidade na justiça social e econômica. Seu progressismo limita-se às questões da vida (aborto e eutanásia) e à plataforma LGBTQIA+, onde o partido defende um laicismo brando. Os católicos entre as elites nacionais são agora conhecidos principalmente por sua vontade de permanecer no poder, tendo desperdiçado o melhor do legado político católico leigo italiano. De fato, a Itália está dividida não tanto por direita e esquerda quanto por populista e pró-establishment, e são os populistas que parecem muito mais fortes hoje.

 

A campanha antes das eleições de setembro será curta, mas também desagradável, chegando no meio da pior seca em 70 anos e antes de uma iminente crise econômica e energética no outono e inverno causada pela guerra na Ucrânia. Também há incerteza sobre a chegada dos fundos de recuperação da UE, dos quais o futuro da Itália depende em grande parte. Do ponto de vista internacional, uma vitória da direita também significaria uma vitória para as forças que têm uma posição fundamentalmente diferente na guerra da Rússia do que a posição pró-ocidente de Draghi. Estes vão desde as ambiguidades ideológicas do Cinco Estrelas até a simpatia aberta de Salvini e Meloni pelas principais figuras pró-Putin da Europa, como o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán e a francesa Marine Le Pen. Uma vitória da direita também pode criar impulso para retirar a Itália da União Europeia, o que para a UE seria uma crise muito pior do que o Brexit.

 

Isso também apresentaria problemas para o Vaticano e a Igreja Católica na Itália. As declarações circunspectas do Papa Francisco sobre a Ucrânia distanciaram efetivamente o Vaticano de Draghi e do establishment pró-ocidente. Mas Draghi, católico e educado por jesuítas, não é hostil à Igreja, como são os populistas – o que deixa o Vaticano em uma situação delicada. Declarações recentes de Francisco, do secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, e do presidente da Conferência Episcopal Italiana, cardeal Matteo Zuppi, sugerem que os líderes da Igreja se sentem quase compelidos a apoiar políticas tecnocráticas das quais não gostam por medo de partidos de direita que fazem uso cínico do cristianismo para sua plataforma anti-imigração. Não há mais partidos ou elites políticas aos quais o papa, os cardeais e os bispos possam apelar. Eles têm uma linha direta apenas com o presidente da república, Sergio Mattarella, um atencioso católico do Vaticano II que agora tem 81 anos e cujo segundo mandato expira em 2029.

 

Embora a hierarquia católica possa temer líderes “cristãos” como Salvini e Meloni, há alguns bispos e muitos católicos que nutrem simpatias por eles. Além disso, a crise política ocorre em um momento em que a colaboração entre o papado e o episcopado italiano é a mais baixa da história da Itália unificada. Em maio passado, a nomeação de Zuppi pelo Papa Francisco para liderar a conferência episcopal – depois de o Papa “orientar” o voto do episcopado em uma pequena lista de nomes – atingiu a relação entre Francisco e os bispos, dos quais muitos acreditavam que estariam livres para eleger um novo presidente, mas acabaram se sentindo pressionados a votar pelo candidato papal. Nada disso tem ajudado na credibilidade política da Igreja em sua tentativa de promover o “popularismo” católico como um antídoto ao populismo. A “Teologia do Povo” do Papa Francisco ainda pode continuar bem na Igreja até o processo sinodal. Mas os populistas da Itália podem desvirtuar tudo o que é de Francisco, em grande parte, graças aos votos dos católicos italianos.

 

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