A Igreja pode ser reformada através de pesquisas de opinião?

Foto: Pedro Lima | Unsplash

18 Julho 2022

 

Os bispos franceses limitaram-se a transferir o trabalho dos grupos diocesanos para o Vaticano, na Irlanda foram publicados os resultados de uma grande pesquisa de levantamento. A CEI é mais prudente - Nada mais será o mesmo no final do longo caminho sinodal desejado pelo Papa que levará para Roma, no outono europeu do próximo ano, as instâncias que surgiram das várias latitudes do planeta.

 

O comentário é de Matteo Matzuzzi, publicado por Il Foglio, 17-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Sair a céu aberto e gerar processos são os mantras do pontificado, e assim será. “Em dois mil anos de história, esta é a primeira vez que a Igreja dá vida a uma consulta tão universal”, disse a irmã Nathalie Becquart, subsecretária do Sínodo sobre o Sínodo em Roma. O que está sendo preparado é uma espécie de Vaticano III, e mais uma vez a base, o povo infalível de Deus in credendo está dando dois, três passos a mais do que se esperava em Roma, onde não poucos acreditavam que o Sínodo sobre a sinodalidade no final teria permitido reunir e diluir os pedidos mais ousados, os mais difíceis, que alguns episcopados estavam prontos a colocar sobre a mesa de Santa Marta.

 

Francisco, abrindo os trabalhos, em outubro de 2021, havia sido claro: "O Espírito nos guiará e nos dará a graça de avançarmos juntos, de nos ouvirmos reciprocamente e de iniciar um discernimento em nosso tempo, tornando-nos solidários com os esforços e desejos da humanidade". O Papa observava que esse percurso teria oferecido "três oportunidades" e a primeira "é de nos encaminharmos, não ocasionalmente, mas estruturalmente rumo uma Igreja sinodal: um lugar aberto, onde todos se sentem em casa e podem participar". Francisco reiterava “que o Sínodo não é um parlamento, que o Sínodo não é uma pesquisa de opiniões; o Sínodo é um momento eclesial, e o protagonista do Sínodo é o Espírito Santo. Se não houver o Espírito, não haverá Sínodo”. Mas como muitas vezes acontece, o Papa é interpretado um pouco como cada um acha melhor, com bispos que colocam a ênfase mais em um aspecto do que em outro, uns enfatizando mais o cum Petro e outros o sub Petro, explicando assim a universalidade da Igreja.

 

O primeiro ano do processo sinodal, aquele local, está chegando ao fim e a maré está subindo, nem tão devagar. A participação na fase diocesana é escassa, observam os episcopados e, como se esperava, quem responde ao chamado são homens e mulheres que já vivem a Igreja. São as pessoas envolvidas na vida paroquial e naquela miríade de atividades colaterais que reclamam cada vez mais pessoal, que é difícil encontrar. Faltam os jovens, e causa estranheza que os bispos percebam isso com espanto, como se nunca tivessem notado que no dia seguinte à Confirmação (na melhor das hipóteses) os centros paroquiais se esvaziam e que os primeiros bancos das celebrações litúrgicas são ocupados na maioria dos casos por cristãos idosos que o fazem por antigo costume.

 

É a Europa, como era de se esperar, que reclama com mais força pela virada, a reforma que nem sempre se distingue em seus contornos da revolução. Retornam palavras ouvidas décadas atrás, em ondas periódicas, como anticiclones de verão. Invoca-se uma "atualização" da Igreja, sua "renovação". Ninguém fala - explicitamente pelo menos - de um novo Concílio, mas afinal não é necessário: basta fazê-lo sem dizê-lo.

 

E um grande Sínodo sobre sinodalidade onde tudo, absolutamente tudo, será discutido, pouco se desvia de uma assembleia conciliar. O Papa deixou claro que o Sínodo não é uma pesquisa de opiniões? E a Irlanda, outrora muito católica e fiel a Roma, promoveu um grande levantamento nas vinte e seis dioceses do país para entender o que o povo fiel quer. O resultado é óbvio: 96 por cento são a favor da ordenação das mulheres, "tanto como diácono quanto como sacerdote", 85 por cento manifestaram preocupação com "a exclusão das pessoas LGBTI+", 70 por cento invocaram um maior envolvimento dos leigos na os processos decisórios da Igreja. Os mais atentos e "fiéis", ou seja, os "praticantes", pedem que as homilias sejam curtas e mais bem preparadas, bem como que se eliminem as leituras do Antigo Testamento que são demasiado "sanguinárias".

 

Onde não se realizam pesquisas, os bispos, temerosos das reações públicas, limitam-se a receber as instâncias da base e transmiti-las a Roma, como aconteceu na França no mês passado. Longo cahier de doléance, acusações severas contra o clero que o episcopado do país compartilhou limitando-se a redigir um documento de acompanhamento. Denuncia-se "autoritarismo, dificuldades nas relações com as mulheres, atitude controladora mais que fraterna". Depois, as propostas para “resolver” o problema: “o celibato dos sacerdotes deve ser deixado à sua livre escolha, para que a ordenação e o casamento sejam compatíveis”.

 

Também aqui se sublinha “a evidente desproporção entre o número de mulheres envolvidas e quantas têm possibilidade de decidir”. Tudo isso, atestam os bispos franceses, "gera inúmeras feridas" e "uma revolta". Mulheres entristecidas por sua marginalização que invocam "ordenação diaconal" e permissão para "pregar". Este seria "um primeiro passo" em antecipação à ordenação sacerdotal. Não acaba aqui, porque mesmo na França aparecem observações sobre a missa, e se não se propõe a eliminação do sangrento Antigo Testamento, aqui se sugere "diversificar as liturgias" aumentando as oportunidades de "celebração da Palavra", para melhor meditar as Escrituras. Certamente, "a Eucaristia é essencial, mas a sua liturgia pode ser um lugar de tensão", tanto pela "inadmissibilidade da linguagem", demasiado complexa para os fiéis, como pelo sofrimento causado àqueles que "são excluídos dos sacramentos (homossexuais, divorciados recasados)".

 

Quantos participaram do levantamento? Cerca de 150.000 católicos, ou seja, dez por cento dos praticantes, com um vazio evidente na faixa dos 25 aos 45 anos. O vaticanista do Figaro, Jean-Marie Guenois, escreveu que "a Igreja da França nunca votou e aprovou um texto tão radicalmente reformador, em particular sobre o sacerdócio".

 

O fato que o episcopado tenha se limitado a acolher e transmitir os desiderata, com função que pareceria quase de mero registro, atesta a evidência de uma dificuldade em orientar-se no marasmo geral; os bispos sentem a pressão, percebem que estão quase que submetidos a uma chantagem: se tudo não mudar, não há alternativa à implosão. Mas ter enviado as pastas a Roma sem nada acrescentar ou explicar significa que as instâncias das bases, sejam elas dez ou trinta por cento dos católicos locais, não podem mais ser contidas ou resolvidas com o diálogo. É uma onda que continua a crescer e o episcopado francês entendeu que é inútil (porque esvaziar o oceano com uma colher não é realmente possível) levantar taludes.

 

Também na Espanha, o mesmo programa: reformar tudo, revolucionar, subverter. Sim, chega de celibato obrigatório, homens casados devem ser ordenados, a Igreja não pode ser mais autorreferencial, mas aberta a todas as pessoas de boa vontade. E o sim também a mudanças na liturgia, não mais adequada para os tempos atuais. Tudo se torna relativo e interpretável, afinal na época de Jesus não havia gravadores e ninguém pode afirmar com segurança o que ele efetivamente disse dois mil anos atrás observou não por acaso o prepósito jesuíta padre Sosa.

 

Em uma Europa fervilhante, com a Alemanha liderando a marcha sobre Roma a ponto de assustar até o grande cardeal reformista Walter Kasper, que reduziu o caminho bienal alemão a "algo de não católico", a Itália é uma exceção. Seu caminho sinodal prossegue lentamente, os bispos se reúnem e discutem, inclusive requentando o discurso de Bento XVI em Verona em 2006 – últimos vislumbres da época de Ruini – em conversas reservadas. A CEI torna-se pragmática, e até os mais convictos defensores da necessidade de deixar entrar ar fresco nas salas abafadas mostram-se cautelosos.

 

O problema é que bem poucos entenderam a que deverá levar o Sínodo sobre a sinodalidade. Cada um, nas diferentes latitudes planetárias, o interpreta um pouco como quer, focando em um aspecto e não em outro: aqueles que visam principalmente despertar a fé adormecida de um catolicismo cansado e cada vez mais envelhecido e aqueles que, por outro lado, veem na assembleia convocada por Francisco a oportunidade de ir além do Vaticano II, acreditando e talvez se iludindo que o fim do celibato e a ordenação das mulheres resolveriam todos (ou quase) os problemas.

 

Inútil dizer que onde essas "inovações" foram introduzidas há tempo, como o mundo protestante, a crise é muito mais dramática do que na realidade católica. O especialista em Vaticano Sandro Magister escreveu que o Papa "deixa fazer". Uma questão não insignificante tem a ver com a parcela do Povo de Deus que participa ativamente do processo sinodal. É uma parte minoritária, como se viu na França, mas certamente a mais empenhada e que em diversos contextos rege a vida das paróquias que de outra forma teriam fechado suas portas há tempo. Mas é também uma parte representativa?

 

O pedido de retirar as leituras do Antigo Testamento corresponde ao que pensam e desejam aqueles que, sejam poucos ou muitos, habitualmente assistem à missa dominical? Basicamente, a Igreja pode se reformar por meio de pesquisas de opinião? Episcopados inteiros podem aceitar como válidos os pedidos recebidos por meio de pesquisas nas quais se mostra que um determinado percentual prefere a ordenação diaconal de mulheres e outro percentual aponta para a sacerdotal? Não é justamente esta, realmente, a mundanização que o Papa Francisco sempre contesta?

 

Assim que algum bispo discorda do suposto sentimento comum, como aconteceu recentemente na Austrália, o clamor é unânime. Compacto. Jornais, Tvs, pessoas que até ontem nunca haviam entrado em uma igreja gritam indignados contra o entrincheiramento dos habituais potentados clericais, refratários à mudança e fechados em seu forte atemporal. Que a Igreja seja um alvo suculento não é novidade, basta constatar quão veementes foram as “decepções” pelo que, em maio passado, o presidente da CEI havia dito sobre a investigação de casos de abuso por membros do Clero. O Cardeal Zuppi, pragmático como é, havia dito que é inútil fazer hipóteses e cálculos sobre histórias de setenta ou oitenta anos atrás, mas o objetivo é esclarecer os fatos dos últimos vinte anos, um prazo temporal sobre o qual não falta material. Aqui queremos fazer algo sério, acrescentou. Evitando desencavar túmulos de bispos já mortos há décadas apenas para satisfazer os falsos recatos da mídia, como aconteceu anos atrás na Bélgica.

 

Mas o mundo vai para o outro lado. Este não é o momento para pragmatismo e baixo perfil. As trombetas sinodais, que entendem o que bem querem sobre o que o Papa pediu e colocou como fundamento da grande assembleia que se encerrará em Roma dentro de um ano e alguns meses, estão tocando. Francisco ressaltou que se trata de responder aos desafios atuais, não de transformar a Igreja Católica em uma das tantas denominações protestantes.

 

A questão é entender até que ponto a Igreja deve se adequar à vontade do povo. Exagero? Não, ao se olhar para o resumo produzido pela Conferência Episcopal Francesa, segundo a qual muitos se queixam de que as homilias “não correspondem às preocupações dos fiéis”. Quase como se, em suma, a missa fosse uma espécie de grupo de escuta com o sacerdote chamado para consolar e tranquilizar. A paróquia que se torna um consultório. Um paradoxo, considerando que os levantamentos também mostram que os fiéis se queixam de uma fraca preparação sobre as Escrituras.

 

Provavelmente, frustrando muitas expectativas revolucionárias, o cerne das discussões sinodais finalmente se voltará para a compreensão do que é o laicato. Há dez anos, a ex-presidente da Ação Católica, Paola Bignardi, escrevia que “o laicato, como conjunto daqueles que vivem segundo o mesmo estilo espiritual – o Concílio diria segundo a mesma vocação – não existe mais”. Em suma, muitos falam sobre isso sem realmente saber quem seja o leigo. Afinal, escreveu o Cardeal Carlo Maria Martini, "hoje na eclesiologia pós-conciliar parece desproporcional o esforço para definir um estado de vida particular ou mesmo para reivindicar a definição de uma 'teologia do laicato’, que para reconhecer um espaço para o leigo na Igreja parece perfilar sua tarefa específica na animação cristã do mundo”.

 

Em suma, "parece que o leigo, para encontrar sua especificidade eclesial, deve entrar no mundo para animá-lo de modo cristão ou para ordenar as coisas do mundo segundo Deus". É sobre esse tema, se a intenção é realmente dar respiro à Igreja no terceiro milênio, que o Sínodo se concentrará. Bem mais do que nas indagações sobre a ordenação sacerdotal das mulheres.

 

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