“As consequências econômicas da guerra, um desastre para os ucranianos e os pobres deste planeta”

Fonte: Flickr

06 Mai 2022


“Os potenciais efeitos econômicos de longo prazo da guerra na Ucrânia e no resto do mundo não atraíram tanta atenção [da mídia], por razões compreensíveis. São menos palpáveis e, por definição, menos imediatos. No entanto, a guerra terá um enorme impacto econômico, não apenas na Ucrânia, mas também nas pessoas extremamente pobres que vivem a milhares de quilômetros de distância. Os países mais ricos também sofrerão os efeitos adversos da guerra, mas estarão mais aptos a enfrentá-los”. A análise é de Rajan Menon, em artigo publicado por A L’Encontre, 05-05-2022. A tradução é do Cepat.



Rajan Menon é professor emérito de relações internacionais na Powell School do City College de Nova York e membro do Saltzman Institute of War and Peace da Universidade da Columbia.

 

Eis o artigo.

 

Em 1919, o célebre economista britânico John Maynard Keynes escreveu As consequências econômicas da paz, livro altamente polêmico. Nele advertiu que as condições draconianas impostas à Alemanha derrotada após a então chamada Grande Guerra – que hoje chamamos de Primeira Guerra Mundial – teriam consequências desastrosas não apenas para aquele país, mas também para toda a Europa. Hoje, adaptei seu título para considerar as consequências econômicas da (menor) guerra em andamento – a da Ucrânia, é claro – não apenas para as pessoas diretamente afetadas, mas também para o resto do mundo.


Após a invasão russa em 24 de fevereiro, não é à toa que a cobertura da mídia se concentrou principalmente nos combates diários, na destruição dos bens econômicos ucranianos, que vão de construções e pontes a fábricas e cidades inteiras, na crítica situação dos refugiados ucranianos e dos deslocados internos, bem como a acumulação de provas sobre as atrocidades. Os potenciais efeitos econômicos de longo prazo da guerra na Ucrânia e no resto do mundo não atraíram tanta atenção, por razões compreensíveis. São menos palpáveis e, por definição, menos imediatos. No entanto, a guerra terá um enorme impacto econômico, não apenas na Ucrânia, mas também nas pessoas extremamente pobres que vivem a milhares de quilômetros de distância. Os países mais ricos também sofrerão os efeitos adversos da guerra, mas estarão mais aptos a enfrentá-los.

 

Ucrânia quebrada

 

Alguns acreditam que essa guerra dure anos, até décadas, mas essa estimativa parece muito sombria. O que sabemos, ao contrário, é que, mesmo após dois meses de guerra, as perdas econômicas da Ucrânia e a assistência externa de que este país necessitará para recuperar alguma aparência de normalidade são consideráveis.


Comecemos pelos refugiados e deslocados na Ucrânia. Juntos, esses dois grupos já representam 29% da população total do país. Para colocar isso em perspectiva, tente imaginar 97 milhões de estadunidenses se encontrando nessa situação nos próximos dois meses.


Até o final de abril, 5,4 milhões de ucranianos haviam fugido do país para a Polônia e outros países vizinhos. Embora muitos deles – as estimativas variam entre várias centenas de milhares e um milhão – tenham começado a retornar, não é certo que possam ficar (e é por isso que os números da ONU os excluem de sua estimativa do número total de refugiados). Se a guerra se intensificar e realmente durar anos, um êxodo contínuo de refugiados pode resultar em um total inimaginável hoje.


Isso testará ainda mais os países que os acolhem, especialmente a Polônia, que já acolheu quase 3 milhões de ucranianos. Uma avaliação estima em 30 bilhões de dólares o custo para fornecer-lhes as necessidades básicas. E isso, por apenas um ano. Além disso, quando essa projeção foi feita, havia um milhão de refugiados a menos do que hoje. Acrescente-se a isso os 7,7 milhões de ucranianos que deixaram suas casas, mas não o próprio país. O custo da reconstrução de todas essas vidas será monumental.



Quando a guerra terminar e esses 12,8 milhões de ucranianos desenraizados começarem a tentar reconstruir suas vidas, muitos descobrirão que suas construções e casas estão destruídas ou sem condições para morar. Os hospitais e as clínicas de que dependiam, os lugares onde trabalhavam, as escolas de seus filhos, as lojas e shoppings em Kiev e em outros lugares, onde compravam produtos de primeira necessidade, também podem ter sido arrasados ou seriamente danificados. A economia da Ucrânia deve encolher 45% somente este ano, o que não é surpreendente, considerando que metade de suas empresas não está funcionando e, segundo o Banco Mundial, as exportações por mar de sua costa sul, agora sitiada, foram efetivamente interrompidas. O retorno aos níveis de produção anteriores à guerra levará pelo menos vários anos.



Cerca de um terço da infraestrutura da Ucrânia (pontes, estradas, linhas férreas, redes de água, etc.) já foi danificada ou demolida. A sua reparação ou reconstrução exigirá entre 60 e 119 bilhões de dólares. O ministro ucraniano das Finanças estima que, se somadas as perdas de produção, exportação e renda, o dano total causado pela guerra já ultrapassa 500 bilhões de dólares. Isso representa quase quatro vezes o valor do produto interno bruto da Ucrânia em 2020.


E tenha em mente que esses números são, na melhor das hipóteses, aproximações. Os custos reais serão, sem dúvida alguma, maiores, e grandes quantidades de ajuda das organizações financeiras internacionais e dos países ocidentais serão necessárias nos próximos anos. Em uma reunião convocada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial, o primeiro-ministro da Ucrânia estimou que a reconstrução de seu país exigirá 600 bilhões de dólares e que precisará de 5 bilhões de dólares por mês nos próximos cinco meses apenas para apoiar seu orçamento.


As duas organizações já tomaram medidas. No início de março, o FMI aprovou um empréstimo de emergência de 1,4 bilhão de dólares para a Ucrânia e o Banco Mundial outros 723 milhões de dólares. E este é certamente apenas o começo de um fluxo de fundos de longo prazo para a Ucrânia desses dois credores, enquanto os governos ocidentais e a União Europeia, sem dúvida, farão seus próprios empréstimos e subsídios. [Isso colocará o problema do estatuto da dívida da Ucrânia, que já é objeto de uma reivindicação do movimento de solidariedade – Nota do editor.]

 

O Ocidente: inflação mais alta, crescimento mais baixo

 

As ondas de choques econômicos criadas pela guerra já estão impactando as economias ocidentais e isso só vai recrudescer. O crescimento econômico dos países europeus mais ricos foi de 5,9% em 2021. O FMI prevê que caia para 3,2% em 2022 e 2,2% em 2023. Enquanto isso, somente entre fevereiro e março deste ano, a inflação na Europa saltou de 5,9% para 7,9%. E isso parece moderado em comparação com os preços crescentes da energia na Europa. Em março, os preços já haviam aumentado 45% em relação ao ano anterior.


A boa notícia, de acordo com o Financial Times (1º de abril de 2022), é que o desemprego caiu para um mínimo recorde de 6,8%. A má notícia, no entanto, é que a taxa de inflação é superior à evolução dos salários, razão pela qual os trabalhadores, em média, perderam cerca de 3%.


Já nos Estados Unidos, o crescimento econômico, estimado em 3,7% para 2022, deve ser melhor do que nas principais economias europeias. No entanto, o Conference Board, um think tank para suas 2.000 empresas associadas, espera que o crescimento desacelere para 2,2% em 2023. Enquanto isso, a taxa de inflação nos Estados Unidos atingiu 8,54% no final de março. Isso é o dobro do que era há 12 meses e a maior desde 1981.



Jerome Powell, presidente do Federal Reserve (Fed), alertou que a guerra provocaria mais inflação. O colunista e economista do New York Times Paul Krugman acredita que a inflação vai diminuir. Mas se isso acontecer, a questão é: quando e com que velocidade? Além disso, Paul Krugman espera que os aumentos dos preços se aprofundem antes que comecem a diminuir. O Fed pode conter a inflação aumentando a taxa de juros, mas isso pode acabar reduzindo ainda mais o crescimento econômico. De fato, o Deutsche Bank ganhou as manchetes no dia 26 de abril ao prever que a luta do Fed contra a inflação levaria os Estados Unidos a uma "grande recessão" no final do próximo ano.


Além da Europa e dos Estados Unidos, a Ásia-Pacífico, terceiro maior gigante econômico do mundo, também não sairá ilesa. Citando os efeitos da guerra, o FMI reduziu ainda em 0,5% suas previsões de crescimento para esta região, reduzindo-as para 4,9% este ano, contra 6,5% no ano passado. A inflação na região da Ásia-Pacífico tem sido baixa, mas espera-se que aumente em vários países.


Essas lamentáveis tendências não podem ser atribuídas apenas à guerra. A pandemia da Covid-19 criou problemas em muitas frentes e a inflação nos Estados Unidos já estava em alta antes mesmo da invasão da Ucrânia, mas esta certamente piorará as coisas [o comércio especulativo não é levado em consideração aqui – Nota do editor.]. Considere os preços da energia desde 24 de fevereiro, dia em que a guerra começou. O preço do petróleo era então de 89 dólares por barril. Depois de alguns altos e baixos e chegando a 119 dólares no dia 9 de março, estabilizou-se (pelo menos por enquanto) em 104,70 dólares no dia 28 de abril, um salto de 17,6% em dois meses. Os apelos dos governos dos EUA e do Reino Unido para que a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos aumentem sua produção de petróleo não surtiram efeito; ninguém deve, portanto, esperar uma melhora rápida.


As tarifas do transporte marítimo e do frete aéreo, que já haviam aumentado devido à pandemia, aumentaram ainda mais após a invasão da Ucrânia, e as interrupções na cadeia de suprimentos também se agravaram. Os preços dos alimentos também aumentaram, não apenas devido ao aumento dos custos da energia, mas também porque a Rússia representa quase 18% das exportações mundiais de trigo (e a Ucrânia 8%), enquanto a participação da Ucrânia nas exportações mundiais de milho é de 16% e os dois países juntos respondem por mais de um quarto das exportações mundiais de trigo, commodities cruciais para muitos países.


A Rússia e a Ucrânia também produzem 80% do óleo de girassol do mundo, que é amplamente utilizado na culinária. O aumento dos preços e a escassez dessa commodity já são visíveis, não apenas na União Europeia, mas também nas regiões mais pobres do mundo, como o Oriente Médio e a Índia, que se abastecem quase exclusivamente na Rússia e na Ucrânia. Além disso, 70% das exportações ucranianas são transportadas por navio, e o Mar Negro e o Mar de Azov agora são zonas de guerra.

 

A situação crítica dos países de “baixa renda”

 

A diminuição do crescimento, a alta dos preços e das taxas de juro resultantes das iniciativas dos bancos centrais para conter a inflação, bem como o aumento do desemprego, atingirão os habitantes dos países ocidentais, especialmente os mais pobres, que gastam uma parcela maior da sua renda em necessidades básicas como comida e gás. Mas os “países de baixa renda” (segundo a definição do Banco Mundial, aqueles com renda média anual per capita inferior a 1.045 dólares em 2020), e especialmente seus habitantes mais pobres, serão muito mais atingidos.


Dadas as enormes necessidades financeiras da Ucrânia e a determinação do Ocidente em atendê-las, os países de baixa renda provavelmente encontrarão muito mais dificuldades para obter o financiamento necessário para pagar sua dívida [que se reafirma no centro das preocupações populares e que vai recolocar com força a "constituição" e a "legitimidade" desta dívida – Nota do editor.], devido ao aumento do endividamento destinado a cobrir o aumento do custo das importações, sobretudo de produtos essenciais como energia e gêneros alimentícios. Soma-se a isso a redução das receitas de exportação devido à desaceleração do crescimento econômico global.


A pandemia da Covid-19 já havia forçado os países de baixa renda a enfrentar a tempestade econômica tomando mais empréstimos, mas as baixas taxas de juros estavam tornando sua dívida, que já estava em um recorde de 860 bilhões de dólares, um desafio um pouco menor. Agora, com a desaceleração do crescimento global e o aumento dos custos da energia e dos alimentos, eles serão forçados a tomar empréstimos a taxas de juros muito mais elevadas, o que só aumentará sua taxa de reembolso.


Durante a pandemia, 60% dos países de baixa renda solicitaram um alívio das suas obrigações de pagamento da dívida (em comparação com 30% em 2015). O aumento das taxas de juros, assim como o aumento dos preços dos alimentos e da energia, agora piorará sua situação já adversa. Este mês, por exemplo, o Sri Lanka deixou de pagar sua dívida. Eminentes economistas alertam que isso pode ser um barômetro, já que outros países, como o Egito, Paquistão e Tunísia, enfrentam problemas de dívida semelhantes, que a guerra só está agravando. Juntos, 74 países de baixa renda tiveram que pagar 35 bilhões de dólares em dívidas este ano, um aumento de 45% em relação a 2020.


E esses, veja bem, nem são considerados países de baixa renda. Para eles, o FMI tem atuado tradicionalmente como um emprestador de última instância; mas eles podem contar com sua "ajuda" quando a Ucrânia precisa urgentemente de volumosos empréstimos? O FMI e o Banco Mundial podem pedir contribuições adicionais aos seus Estados membros ricos; mas as receberão, quando esses países também enfrentam problemas econômicos crescentes e seus governos se preocupam com a ira social de seu eleitorado?


É claro que quanto mais pesado o fardo da dívida dos países de baixa renda, menos serão capazes de ajudar seus cidadãos mais pobres a enfrentar o aumento dos preços dos produtos de primeira necessidade, especialmente os alimentos. O índice de preços dos alimentos da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) subiu 12,6% entre fevereiro e março e já era 33,6% superior ao do ano anterior.


O aumento dos preços do trigo – em determinado momento, o preço por bushel [1 bushel americano de trigo equivale a 27,21 kg] quase dobrou antes de se estabilizar em 38% mais alto que no ano passado – já provocou a falta de farinha e pão no Egito, Líbano e Tunísia, países que não muito tempo atrás dependiam da Ucrânia para fornecer entre 25% e 80% de suas importações de trigo. Outros países como o Paquistão e Bangladesh – o primeiro compra quase 40% de seu trigo da b, o segundo 50% da Rússia e da Ucrânia – podem enfrentar o mesmo problema.


O país que mais sofrerá com o aumento dos preços dos alimentos pode ser o Iêmen. Tem sido atormentado pela guerra civil há anos e enfrentou escassez crônica de alimentos e fome muito antes de a Rússia invadir a Ucrânia. Trinta por cento do trigo importado pelo Iêmen vem da Ucrânia e, devido à redução da oferta criada pela guerra, o preço do quilo já aumentou quase cinco vezes no sul do país. O Programa Mundial de Alimentos (PAM) vem gastando mais 10 milhões de dólares por mês em suas operações no país, já que quase 200 mil pessoas podem estar em “condições próximas à fome” e um total de 7,1 milhões experimentarão “níveis de fome de emergência”. O problema, no entanto, não se limita a países como o Iêmen. Segundo o PMA, 276 milhões de pessoas no mundo já sofriam de “fome aguda” antes mesmo da guerra começar e, caso ela se prolongar verão adentro, mais entre 27 a 33 milhões de pessoas poderão cair nesta situação precária.

 

A urgência da paz – e não apenas para os ucranianos

 

A magnitude dos recursos necessários para reconstruir a Ucrânia, a importância que os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, a União Europeia e o Japão atribuem a esse objetivo e o aumento do custo das importações essenciais colocarão os países mais pobres do mundo em uma situação econômica ainda mais difícil. É claro que os pobres dos países ricos também são vulneráveis, mas os dos países mais pobres sofrerão muito mais.


Muitos deles já lutam para sobreviver e carecem do leque de serviços sociais de que desfrutam os pobres dos países ricos. A rede de segurança social dos EUA é pequena comparada com seus pares europeus, mas pelo menos existe. Este não é o caso nos países mais pobres. Aí, os menos "favorecidos" sobrevivem com pouca ou nenhuma ajuda de seus governos. Apenas 20% deles são cobertos de alguma forma por esses programas.


Os mais pobres do mundo não são responsáveis pela guerra na Ucrânia e não têm a capacidade de acabar com ela. No entanto, além dos próprios ucranianos, são eles que mais sofrerão com seu prolongamento. Os mais pobres dentre eles não são bombardeados pelos russos ou ocupados e submetidos a crimes de guerra como os habitantes da cidade ucraniana de Bucha. No entanto, também para eles o fim da guerra é uma questão de vida ou morte. Eles compartilham essa preocupação com o povo ucraniano.

 

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