O Papa: o mundo escolheu Caim, mas Deus não para de salvá-lo

Caim leva Abel à morte, pintura de James Tissot | Foto: Wikimedia Commons/Domínio Público

19 Abril 2022

 

Na entrevista concedida por Francisco à jornalista Lorena Bianchetti, em um episódio especial do programa "À sua imagem", vários temas são abordados: o drama da guerra, não só na Ucrânia, o papel das mulheres, a questão dos refugiados, a pandemia, mundanismo na Igreja. Mas também a importância do perdão e da esperança no caminho cristão. O Papa, em seguida, dirige seus votos para a Páscoa

 

Com a gentil permissão do programa À Sua Imagem, o Dicastério para a Comunicação difunde a transcrição da conversa entre o Papa Francisco e Lorena Bianchetti, transmitida na Rai1. A entrevista à jornalista Lorena Bianchetti foi exibida na tarde desta sexta-feira, 15 de abril.

 

A entrevista com o Papa Francisco é de Lorena Bianchetti, publicada por Vatican News, 15-04-2022.

 

Eis a entrevista.

 

Santidade, antes de mais nada obrigada, pois estou aqui em nome de todas as pessoas que neste momento vivem estados de espírito complexos: de perplexidade, de angústia, de medo, de sofrimento. Começo mencionando uma hora: três horas, três horas da tarde. Jesus morre na cruz e morre inocente. Há tantas pessoas inocentes que não querem a guerra, mas que a sofrem. Nos últimos dias veem-se imagens de corpos sem vida nas ruas, fala-se até de fornos crematórios ambulantes, mas também de estupros, devastações e barbáries. O que está a acontecer à humanidade, Santidade?

 

Mas isto não é uma novidade, cara. Um escritor disse que “Jesus Cristo está em agonia até ao fim do mundo”, está em agonia nos seus filhos, nos seus irmãos, sobretudo nos pobres, nos marginalizados, nas pessoas pobres que não se podem defender. Neste momento, na Europa, esta guerra atinge-nos muito. Mas olhemos um pouco para mais longe. O mundo está em guerra, o mundo está em guerra! A Síria, o Iémen, pensemos nos Rohingya, expulsos, sem pátria. Em todo o lado há guerra. O genocídio ruandês há 25 anos. Porque o mundo escolheu – é difícil dizê-lo – mas escolheu o esquema de Caim e a guerra é implementar o cainismo, ou seja, matar o irmão.

 

E precisamente porque há o bem e há o mal, tem-nos avisado muitas vezes sobre a forma como o mal age. Disse-nos que o diabo se apresenta de uma forma amável, alicia-nos, mas na realidade o mal só quer que falhemos: não há diálogo com o diabo. E por isso pergunto-lhe, precisamente à luz do que dizia, como podemos encontrar formas de mediação, formas de diálogo com quem, ou pelo menos, com aqueles que desejam e perseguem apenas a prepotência?

 

Quando eu digo que não há diálogo com o diabo é porque o diabo é mau, sem nada de bom! Dizemos que ele é como o mal absoluto. Aquele que se rebelou totalmente contra Deus! Mas com pessoas doentes, que têm esta doença do ódio, falamos, dialogamos, e Jesus dialogou com muitos pecadores, até com Judas, que depois se tornou “amigo”, sempre com ternura porque todos nós temos sempre o espírito do Senhor, que Ele semeou em nós algo de bom. E quando estou diante de uma pessoa e tenho sempre – todos dizemos isto de forma diferente – quando estamos diante de uma pessoa devemos pensar no que estamos a dizer sobre esta pessoa: do lado mau ou do lado oculto, do melhor.

 

 

Todos nós temos algo de bom, todos nós! É precisamente o selo de Deus em nós. Nunca devemos considerar acabada uma vida que não acabou... que acabou no mal, dizer “Este é um condenado”. Lembro-me da senhora que se foi confessar ao cura d’Ars porque o marido se tinha atirado da ponte. O cura ouviu-a, ela estava a chorar. “O que mais me irrita é que ele está no inferno”. “Pára”, disse-lhe ele. “Entre a ponte e o rio está a misericórdia de Deus”. Deus procura sempre salvar-nos até ao fim, porque semeou em nós a parte boa. Semeou-a também em Caim, Abel e Caim, mas Caim fez uma ação de violência e é com esta ação que se faz uma guerra.

 

Mas, na sua opinião, existe empenho suficiente do ponto de vista cultural – estou a dizer também a nível eclesial, não apenas a nível cultural – existe empenho suficiente para alertar as pessoas contra a tentação de cair e viver o inferno no coração já nesta terra? Digo isto porque por vezes vivemos numa sociedade em que parece que o diabólico é decididamente mais fascinante, mais estimulante do que o bom, o honesto, o gentil e também o espiritual, que aparece e é proposto como maçante.

 

Sim, é verdade. O mal é mais sedutor. Voltando ao diabo, alguns dizem que eu falo demasiado sobre o diabo. Mas é uma realidade. Eu acredito nisto, eh! Alguns dizem: “Não, é um mito”. Eu não vou com o mito, vou com a realidade, eu acredito. Mas é sedutor. A sedução procura entrar, prometer algo sempre. Se os pecados fossem feios, se não tivessem algo de belo, ninguém pecaria. O diabo apresenta algo belo no pecado e leva ao pecado. Por exemplo, aqueles que fazem a guerra, aqueles que destroem a vida dos outros, aqueles que exploram as pessoas no seu trabalho.

 

No outro dia ouvi uma família contar como o pai, que casou jovem, teve de trabalhar como operário, saindo de manhã cedo e voltando à noite, por pouco dinheiro, explorado por uma empresa bilionária. Isto também é guerra. Também é destruição, não apenas os tanques, isto também é destruição. O diabo procura sempre a nossa destruição. Porquê? Porque nós somos a imagem de Deus. Voltemos ao início, às três horas da tarde. Jesus morre, morre sozinho. A mais completa solidão, abandonado até por Deus: “Porque me abandonaste?”. A mais completa solidão, porque queria descer à mais terrível das solidões do homem para nos livrar dela. Ele regressa ao Pai, mas é o primeiro a descer, está em cada pessoa explorada, que sofre guerras, que sofre destruição, que sofre tráfico. Quantas mulheres são escravas do tráfico, aqui em Roma e nas grandes cidades. É obra do mal. É uma guerra.

 

Em suma, como Dostoievski disse em Os Irmãos Karamazov: “A batalha entre Deus e o diabo está no coração do homem”. É aí que se decide o jogo.

 

É aí que se joga. É por isso que precisamos da mansidão, da humildade para dizer a Deus: “Sou um pecador, mas tu salvas-me, ajudas-me”. Pois cada um de nós tem dentro de si a possibilidade de fazer o que quantos destroem as pessoas fazem, que exploram as pessoas. Porque o pecado é uma possibilidade da nossa fraqueza e também do nosso soberba.

 

Dizia antes, recordava, a frase pronunciada por Jesus na cruz: “Meu Deus, por que me abandonaste?” e esta frase traduz a solidão, mas também o desânimo, a angústia e portanto também o desespero, o estado de espírito que todos nós experimentamos quando não sabemos qual pode ser a solução para uma dor, mas também para um sentimento de culpa. A propósito de desespero, Santidade, vem-me à mente uma imagem desta guerra – e digo isto como mãe – um pai a correr com o filho nos braços porque foi atingido por estilhaços de uma bomba. Ele e a esposa a correr para o hospital, desesperados. A notícia que chegou foi que esta criança infelizmente não se salvou. Não consigo imaginar um desespero mais angustiante do que o de dois pais que perdem um filho desta forma. O que diria aos pais que estão a passar por esta experiência angustiante?

 

Na vida, aprende-se. Tive de aprender muitas coisas e ainda tenho de aprender porque espero viver um pouco mais, mas tenho de aprender. E uma das coisas que aprendi foi a não falar quando alguém está a sofrer. Seja uma pessoa doente, seja uma tragédia. Pego-lhes na mão, em silêncio. Mas quando vêm [a dizer] e tu estás doente “Não, mas isto, aquilo, mas o Senhor...”. Cala-te! Silêncio. Em frente da dor: silêncio. E choro. É verdade que chorar é um dom de Deus, é um dom que devemos pedir: a graça de chorar, perante as nossas fraquezas, perante as fraquezas e tragédias do mundo.

 

 

Mas não há palavras. Citou Dostoievski. Vem-me à mente aquele livrete que é como um resumo de toda a sua filosofia, da sua teologia, de tudo: Memórias do Subsolo. E ali está, quando alguém morre, quando uma pessoa morre – são condenados, prisioneiros que estão no hospital – alguém morre lá, pegam nele e levam-no. E o outro, da outra cama, diz: “Por favor, parai! Ele também tinha uma mãe”. A figura da mulher, a figura da mãe, em frente da cruz. Esta é uma mensagem, é uma mensagem de Jesus para nós, é a mensagem da sua ternura na sua mãe. No pior momento da sua vida, Jesus não insultou.

 

Dado que menciona as mulheres, Santidade, havia mulheres debaixo da cruz, debaixo da cruz de Jesus. Há outra imagem que gostaria de lhe propor. Voltemos novamente à Ucrânia. Uma grávida, carregada numa maca porque foi ferida na guerra, transportada no meio dos escombros, tentando acariciar o seu ventre com o último suspiro de força que lhe restava. Pelo que sabemos, nem esta mulher com o seu filho se salvaram. Mas o que realmente me vem à mente são as mulheres, a força das mulheres. Vêm-me à mente as mães russas, vêm-me à mente as mães ucranianas. E por isso pergunto-lhe qual o papel das mulheres: quão importante é um papel ativo das mulheres, na mesa de negociações, para construírem concretamente a paz?

 

“As mulheres são capazes de dar vida até a um morto” é um ditado. As mulheres estão na encruzilhada das maiores fatalidades, elas estão lá, são fortes. É interessante. Jesus é o esposo da Igreja e a Igreja é uma mulher, é por isso que a Igreja-Mãe é tão forte. Não estou a falar de clericalismo, dos pecados da Igreja. Não, Igreja-Mãe significa aquela que está aos pés da cruz a apoiar-nos, a nós pecadores. Algo que me impressiona tanto, que me faz pensar em Maria e nas outras mulheres aos pés da cruz. Por vezes tive de ir a alguma paróquia num bairro chamado Villa Devoto, em Buenos Aires, e ia de autocarro, o 86. Ele passava em frente da prisão e muitas vezes eu via uma fila de mães de presos lá. Expunham os seus rostos pelos seus filhos, porque todos os que passavam, diziam: “Esta é a mãe de alguém que está dentro”.

 

E toleravam os controlos mais vergonhosos, mas para verem o seu filho. A força de uma mulher, de uma mãe que é capaz de acompanhar os seus filhos até ao fim. E esta é Maria e as mulheres aos pés da cruz. Acompanha o filho, sabendo que muitas pessoas dizem: “Mas como educou o filho que acabou assim?”. Tagarelice imediata. Mas as mulheres não se preocupam: quando há um filho envolvido, quando há vida envolvida, as mulheres vão em frente. Por isso o que diz – dar às mulheres um papel em momentos difíceis, em momentos de tragédia – é tão importante, é muito importante. Elas sabem o que é vida, o que se prepara para a vida e o que é a morte, conhecem-na bem. Falam esta linguagem.

 

E há, Santidade – também porque estamos a falar das muitas mortes causadas pela guerra – há mortes mais silenciosas, mas não menos sangrentas. Estou a pensar naqueles que foram assassinados pelas máfias e estou a pensar nas mulheres mortas pelos seus companheiros. É verdade que os últimos serão os primeiros no Céu, mas como podem estas pessoas e aqueles que perdem os seus afetos acreditar na justiça, numa recompensa já nesta terra?

 

A exploração das mulheres é o nosso pão quotidiano. A violência contra as mulheres é o nosso pão de cada dia. Mulheres que sofrem golpes, que sofrem violência por parte dos seus companheiros e carregam isto em silêncio ou afastam-se sem dizer porquê. Nós, homens, teremos sempre razão: somos os perfeitos. E as mulheres estão condenadas ao silêncio pela sociedade. “Não, mas esta é louca, é uma pecadora”. Era o que costumavam dizer sobre Madalena: “Olha o que ela fez, é uma pecadora!”. “E tu não és um pecador? Não erras?”.

 

Mas as mulheres são a reserva da humanidade, posso dizer isto: estou convencido disto. As mulheres são a força. E ali, aos pés da cruz, os discípulos fugiram, as mulheres não, as que o seguiram ao longo da vida. E Jesus, a caminho do Calvário, pára em frente de um grupo de mulheres que choravam. Elas têm a capacidade de chorar, nós, homens, somos mais brutos. Ele pára [e diz]: “Chorai pelos vossos filhos”, porque farão muitas coisas contra eles.

 

E neste período, Santidade, estou a pensar na fuga: há estas imagens que falam da fuga de ucranianos que são forçados a deixar as suas terras, as suas casas, os seus afetos. É um dos últimos êxodos a que provavelmente estamos, infelizmente, a habituar-nos. Mas, neste caso, houve uma resposta concreta e real. Uma resposta que, peço-lhe, na sua opinião derrubou os muros da indiferença, do preconceito para com aqueles que fogem de outras partes do mundo porque estão feridos pela guerra, ou continuam a dividir os refugiados em categorias incómodas?

 

É verdade. Os refugiados estão divididos. Primeira classe, segunda classe, cor da pele, [quer sejam] provenientes de um país desenvolvido [ou de] um que não é desenvolvido. Nós somos racistas, somos racistas. E isto é mau. O problema dos refugiados é um problema que até Jesus sofreu, porque era um migrante e refugiado no Egito quando era criança, para escapar à morte. Quantos destes sofrem para escapar à morte! Há um quadro da fuga para o Egito que um pintor piemontês fez. Ele enviou-mo e eu fiz alguns santinhos: há José com o menino em fuga.

 

Mas não é São José com a barba, não. É um sírio, de hoje, com a criança, a fugir da guerra de hoje. O rosto de angústia que estas pessoas têm, como Jesus forçado a fugir. E Jesus já passou por todas estas coisas, mas ele está lá. Na cruz estão os povos dos países da África em guerra, do Médio Oriente em guerra, da América Latina em guerra, da Ásia em guerra. Há alguns anos eu disse que estávamos a viver a terceira guerra mundial em pedaços. Mas ainda não aprendemos.

 

 

Eu – sou um ministro do Senhor e um pecador, escolhido pelo Senhor – mas, pecador assim, quando fui a Redipuglia em 2014, para a comemoração do centenário, vi e chorei. Chorei unicamente. Todos os jovens, todos os rapazes. Então um dia fui ao cemitério de Anzio e vi aqueles jovens que tinham desembarcado em Anzio. Todos jovens! E eu chorei lá, outra vez. Choro diante disto. Há dois anos, penso que, quando houve a comemoração do desembarque na Normandia, vi os chefes de governo, houve um encontro... eles estavam a comemorar isto.

 

Mas por que não comemoramos todos nós os 30.000 soldados que morreram na praia da Normandia? A guerra cresce com a vida dos nossos filhos, dos nossos jovens. É por isso que digo que a guerra é uma monstruosidade! Vamos a estes cemitérios que são precisamente a vida desta memória. Pensemos naquela cena que está escrita: barcos a chegar à Normandia, abriam-se, saltavam fora com os fuzis os jovens e os alemães... (ndr o Santo Padre imita o gesto de disparar). 30.000, na praia.

 

Isso leva-me precisamente à corrida aos armamentos, a este tema. Um argumento que já abordou muitas vezes, e talvez nem sempre lhe tenha sido dada a ênfase certa. Pois disse que, nos últimos tempos, se investiu mais em armas do que em educação ou formação. Por que os seres humanos não aprenderam com o passado e continuam a usar armas para resolver os seus problemas?

 

Eu compreendo os governantes que compram armas, compreendo-os. Não os justifico, mas compreendo-os. Porque temos de nos defender, porque [é] o esquema cainista de guerra. Se fosse um esquema de paz, isto não seria necessário. Mas vivemos com este esquema demoníaco, [que diz] para nos matarmos uns aos outros por causa do poder, por causa da segurança, por causa de muitas coisas. Mas penso nas guerras ocultas, que ninguém vê, que estão longe de nós. Tantas. Porquê? Para explorar? Esquecemos a linguagem da paz: esquecemo-nos dela. Fala-se de paz.

 

As Nações Unidas fizeram tudo, mas não tiveram êxito. Regresso ao Calvário. Lá Jesus fez tudo. Ele tentou com piedade, com benevolência, convencer os líderes e [em vez disso] não: guerra, guerra, guerra contra ele! Por mansidão, opõem-se à guerra pela segurança. “É melhor que um homem morra pelo povo”, diz o sumo sacerdote, porque, ao contrário, os romanos virão. E a guerra.

 

Então faço uma ligação com o que estava a dizer. Há pouco falámos sobre as mulheres aos pés da cruz. Mas a propósito dos homens que têm poder. Na época havia Pilatos, Herodes, Caifás. Todos eles poderiam ter salvo uma pessoa inocente, mas não o fizeram: preferiram não enfrentar o risco da verdade. Essas pessoas morreram, mas a sua forma de fazer as coisas continua a ser atual. Porque não temos a coragem de escolher este bem e de defender o Homem que nos tinha simplesmente pedido para nos amarmos uns aos outros?

 

Há uma mulher no Evangelho sobre a qual não se fala muito – um pouco en passant, diz-se – é a esposa de Pilatos. Ela compreendeu alguma coisa. Diz ao marido: “Não te envolvas com este homem justo”. Mas Pilatos não a ouve, “coisas de mulher”. Mas esta mulher, que passa inesperada, sem força no Evangelho, compreendeu o drama lá de longe. Porquê? Talvez ela fosse mãe, tinha essa intuição de mulher. “Toma cuidado para que não te enganem”. Quem? O poder. O poder que é capaz de mudar a opinião das pessoas de domingo para sexta-feira. O Hosana de domingo torna-se o Crucifica-o! de sexta-feira. E este é o nosso pão quotidiano. Precisamos de mulheres que deem o alarme.

 

Então, Santidade, Jesus na cruz, depois daquela frase, “Meu Deus, por que me abandonaste?”. Estávamos a falar de desespero, desânimo e também solidão: Sexta-feira Santa é um pouco como o dia da solidão. E a solidão faz-me inevitavelmente pensar no que cada um de nós sentiu durante o período mais difícil da pandemia. Penso nos idosos, nos jovens, nas pessoas que vivem a provação da doença, naqueles que usavam aparelhos porque não conseguiam respirar. E também penso em Vossa Santidade, a 27 de março de 2020. Quais foram os seus pensamentos naquele momento, ao atravessar a Praça de São Pedro completamente vazia, molhada pela chuva, ao chegar ao adro?

 

Não sei se pensei. Senti, sim. Procurava, sentia o drama daquele momento, de tantas pessoas. A senhora sublinhou a solidão, o sofrimento daquele momento, dos idosos. É curioso: são eles que pagam sempre a conta. E os jovens também, porque roubamos a esperança aos jovens. Fazemo-los seguir o caminho da Turandot: “a esperança que sempre desilude”. Não, a esperança não desilude! Mas são os jovens e os idosos que têm nas mãos e no coração a possibilidade de reagir: é por isso que insisto tanto para que os jovens e os idosos dialoguem. A sabedoria dos idosos, mas com a solidão que eles sofreram. A sabedoria dos idosos é muitas vezes negligenciada e deixada de lado num lar de idosos. Gostava de visitar os lares de idosos em Buenos Aires, havia tantos numa grande cidade. Perguntei a uma mulher: “Como estás? Quantos filhos? Ah, quatro? E eles vêm?”. “Sim, não me deixam sozinha”. A enfermeira ouviu e na saída disse: “Padre, há seis meses que não vem ninguém”. O abandono dos idosos e o abandono da sabedoria, porque por vezes somos superhomens, sabemos tudo. Nós não sabemos nada!

 

A solidão dos idosos e o uso dos jovens, porque os jovens sem a sabedoria que vem de um povo irão errar. Jesus tinha tudo isto no seu coração naquele momento: estávamos todos lá. A senhora lembrou a Statio Orbis de março, há dois anos, e sentia tudo isto. Mas eu não sabia que a praça estaria vazia, não sabia. Eu cheguei lá e [não havia] ninguém. Sim, eu sabia que com a chuva haveria poucas pessoas, mas ninguém. Foi uma mensagem do Senhor para compreender bem a solidão. A solidão dos idosos, a solidão dos jovens que deixamos sozinhos. “Deixai que sejamos livres”. Não! Serão escravos sozinhos. Acompanhemo-los! É por isso que é importante que recebam a herança dos idosos, a sua bandeira devedora. A solidão dos jovens, dos idosos. A solidão das pessoas com problemas mentais em casas de saúde. A solidão das pessoas que passam por uma tragédia pessoal e familiar. A solidão de uma mulher que é espancada pelo marido, mas [que] se cala para salvar a sua família. Temos muitas solidões nossas. Também a senhora tem a sua. Eu tenho as minhas: a senhora terá as suas, com certeza. Pequenas solidões, mas é nisto, nessas pequenas solidões, que podemos compreender a solidão de Jesus, a solidão da cruz.

 

Alguma vez se sentiu sozinho no exercício do seu ministério?

 

Não, Deus tem sido bom para mim. Não sei. Sempre, quando há algo negativo, ele põe alguém para me ajudar! Faz-se presente. Tem sido muito generoso. Talvez porque Ele sabe que eu não consigo fazê-lo sozinho!

 

Sabe que a 27 de março – penso que estou realmente a falar em nome de todos – pegou-nos realmente no colo, deu-nos muita força naquele dia. A partir de então, cada um de nós tomou consciência e, de alguma forma, penso que recomeçámos. Outra pergunta porque, como já dissemos, Jesus foi flagelado, humilhado, coroado de espinhos, crucificado. E tudo isto, de alguma forma, lhe veio da sua família, porque foi traído por Judas, foi negado por Pedro. Em suma, os golpes mortais vieram precisamente dos seus próximos. Quais são então as feridas que a Igreja continua hoje a infligir ao Crucificado?

 

Falo claramente, porque estou convencido disto. A cruz mais dura que a Igreja hoje carrega sobre o Senhor é a mundanidade, o espírito da mundanidade. O espírito de mundanidade, que é um pouco como o espírito de poder, mas não apenas de poder, está a viver num estilo mundano que – curiosamente – é alimentado e cresce com dinheiro.

 

Há uma coisa interessante. Nas três tentações do diabo a Jesus, o diabo faz propostas mundanas. A primeira, a fome, compreende-se: é humana – mas depois o quê? Poder, vaidade: coisas mundanas. Porque o caminho é atraente e quando cai na mundanidade, no espírito mundano, a Igreja é derrotada.

 

 

O espírito de mundanidade é o que mais dói hoje, mas tem sido sempre assim. Quando Jesus nos diz: “por favor fazei uma opção clara, não podeis servir dois senhores”. Ou servis a Deus – e eu estava à espera que Ele dissesse “ou servis o diabo” – mas Ele não diz isso. “Ou servis a Deus ou servis o dinheiro”. Usar dinheiro para fazer o bem, para apoiar a família através do trabalho, é ótimo. Mas servir! E a mundanidade aprecia muito isto.

 

Leão XIII, li, tinha uma oração contra o diabo introduzida no final da missa porque, disse, havia o risco de o diabo poder entrar na Igreja também através das fendas das portas. Na sua opinião, então, será esta a fenda através da qual o diabo conseguiu entrar hoje na Igreja?

 

A mundanidade, mas isto acontece desde sempre. [Em] cada época a mundanidade muda de nome, mas é sempre mundanidade. Rezo esta prece, a São Miguel Arcanjo, todos os dias, pela manhã. Todos os dias! Para que me ajude a vencer o diabo. Quem me ouvir pode dizer: “Mas Santidade, estudou, é Papa e ainda acredita no diabo?”. Sim, acredito, caro, acredito. Tenho medo dele, é por isso que tenho de me defender tanto. O diabo que fez todas as manobras para que Jesus acabasse, como ele fez, na cruz. Poder das trevas sobre Jesus: “Esta é a vossa hora”, o poder das trevas.

 

E assim, Santidade, volto à guerra na Ucrânia. Porque Kyiv – como vemos, as imagens continuam a chegar – está completamente destruída. Cinzas. Talvez essa mesma paisagem de que o diabo tanto gosta. Por isso pergunto-lhe: Kyiv já não é apenas um lugar geográfico, mas aos olhos do mundo representa muito mais. No seu coração, o que é?

 

Uma dor. A dor é uma certeza, é um sentimento que tira tudo. Quando alguém, após uma cirurgia, sente dor física, a ferida que foi feita, pede uma anestesia, algo para ajudar a tolerá-la. Mas [para] dor humana, dor moral, não há anestesia. Apenas oração e pranto. Estou convencido de que hoje não choramos bem. Esquecemo-nos de chorar. Se posso dar um conselho, para mim e para as pessoas, é pedir o dom das lágrimas. E chorar, como Pedro chorou, depois de ter traído Jesus. Ele chorou, quando fugiu, quando o negou. Ele chorou. Um grito que não é um desabafo, não. É uma vergonha feita fisicamente e creio que nos falta vergonha.

 

 

Estamos tantas vezes sem vergonha – é um insulto que se usa na minha terra natal: “[aquele] é sem vergonha” – mas a graça de chorar. Há uma bela oração, há uma missa para pedir o dom das lágrimas. Uma bela prece naquela missa é assim: “Senhor, tu que da rocha fizeste sair água, faz sair lágrimas da rocha do meu coração”. O coração duro, o coração que não se comove, não sabe chorar. Pergunto-me: quantas pessoas, diante das imagens de guerras, quaisquer guerras, foram capazes de chorar? Alguns sim, tenho a certeza, mas muitos não. Começam a justificar ou a atacar.

 

Não, isto (ndr o Santo Padre aponta para o coração): é preciso curar isto. E Jesus toca aqui. Hoje, Sexta-feira Santa, em frente de Jesus Crucificado, deixa que ele toque o teu coração, deixa que Ele te fale com o seu silêncio e com a sua dor. Que Ele te fale através daquelas pessoas que sofrem no mundo: sofrem de fome, sofrem de guerra, sofrem de tanta exploração e de todas estas coisas. Deixa que Jesus te fale e por favor não fales tu. Silêncio. Deixa que seja Ele e pede a graça de chorar.

 

Quanto podem as religiões fazer para remover essa desertificação dos corações? Quanto e que palavras pretende dirigir também aos bispos ortodoxos?

 

Sim, eles também estão a preparar a Páscoa connosco com uma semana de diferença, porque – também os católicos orientais – seguem o Calendário Juliano, não o gregoriano. Aproveito esta oportunidade para enviar uma mensagem de fraternidade a todos os meus irmãos bispos ortodoxos, que estão a viver esta Páscoa com a mesma dor com que nós, eu e muitos católicos a estamos a viver. Não é fácil ser bispo... e graças a Deus que não é fácil! É por isso que não compreendo aqueles que querem tornar-se bispos! Eles não sabem o que os espera! Mas gostaria de aproveitar esta oportunidade para saudar todos os bispos ortodoxos como irmãos na fé.

 

Há outra frase que Jesus pronuncia na cruz: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. Perdão. O senhor disse que oferecer a outra face não significa sofrer em silêncio, ceder à injustiça. Recordou-nos que Jesus também denuncia a injustiça, e especificou que ele o faz sem raiva nem violência, mas com ternura. Santidade, como podemos ser amáveis ou perdoar todas as pessoas que nos ferem, aquelas pessoas que matam inocentes, que agridem não só física, mas também psicologicamente?

 

Dou-lhe a minha receita. Se eu não fiz esse mal, é porque Ele me impediu com a Sua mão, com a Sua misericórdia. Disto estou certo, porque de outra forma teria feito tantas [coisas] como eles, tanto mal. Nisto posso dizer que sou uma testemunha da misericórdia de Deus. É por isso que não posso condenar alguém que vem pedir perdão.

 

Devo perdoar sempre. Cada um de nós pode dizer isto sobre si mesmo no seu esquema pessoal (n.d.r., exame de consciência). É verdade que talvez não seja capaz de dizer afetivamente: “Vem caro, dá-me um beijo”. Não, talvez eu fique zangado! Mas digo: “Senhor, livra-me da raiva, eu perdoo, mas não tenho o sentimento de perdão. Eu perdoo. Tu arranja-te levar este perdão...".

 

O perdão tem uma raiz apenas divina.

 

Sim, o perdão no final é algo assim.

 

Também estou a pensar na solidão, voltando a Jesus na cruz, penso em todas aquelas pessoas que, também como resultado da Covid, perderam os seus empregos. Há muitas pessoas, Santidade, que vivem com este tipo de dificuldade. Que palavras de esperança lhes quer transmitir?

 

A palavra-chave que acabou de dizer é esperança. A esperança não é acariciar e dizer: “Ah, tudo vai passar, não te preocupes”. A esperança é uma tensão para o futuro, para o céu também. É por isso que a figura da esperança é a âncora: a âncora atirada ali e eu aqui com a corda, para chegar lá, para resolver situações, mas sempre com essa corda. A esperança nunca desilude, mas faz-nos esperar. A esperança é a doméstica da vida católica, da vida cristã. É realmente a mais humilde das virtudes. Está escondida, mas se não a tiveres [à mão], não encontrarás o caminho certo.

 

A esperança é o que te faz encontrar o caminho certo. Ter esperança é não ter a ilusão: “Vou… [ter com] alguém para ler a mão... isto vai dar certo”. Não, isto não é esperança. A esperança é a certeza de que tenho na minha mão a corda daquela âncora lançada. Gostamos de falar de fé, tanto, da caridade: olha para ela! A esperança é um pouco a virtude oculta, a pequenina, a pequenina de casa. Mas é a mais forte para nós.

 

Então esta é também a mensagem para os jovens, porque penso naqueles que veem o futuro a ser arrancado das suas mãos: disse isto muito claramente há pouco. É por isso que não planeiam muito, nem sempre acreditam em relações duradouras, não formam famílias. Em suma, digamos que mesmo a nível institucional e cultural não são muito ajudados. Portanto, que palavras gostaria de lhes dizer?

 

Não confundir esperança com otimismo. Podemos comprar o otimismo no quiosque. Sabe, o otimismo é vendido! Mas a esperança é outra coisa. A esperança é ter a certeza de que estamos a caminhar para a vida. Há um poeta argentino que – bom, um grande poeta – [há] uma frase, um poema, que sempre me impressionou, uma definição de vida: “A vida é uma morte que chega”. Não, a vida não é uma morte que chega: a vida é, talvez, da morte chegar à vida! A esperança é forte nisto: é aquela corda da âncora. Nunca desilude! Mas é humilde, é verdadeiramente a doméstica da vida cristã. Mas muitas vezes são as domésticas que levam em frente a vida de uma família.

 

 

Santidade, para concluir. Hoje é Sexta-feira Santa, mas a história da salvação não termina aqui. Graças a Deus, o Evangelho tem um final feliz porque há a ressurreição de Jesus: esse é o centro da história da salvação. Quais são os seus votos para esta Páscoa?

 

Uma alegria interna. Há um salmo que diz: “Quando o Senhor nos libertou da Babilônia, parecia-nos [estar] a sonhar”. O pranto de alegria. É alegria. Os meus votos são por que não se perca a esperança, a verdadeira esperança – que não desilude – é pedir a graça de chorar, mas o choro de alegria, o choro de consolação, o choro de esperança. Tenho a certeza, repito, temos de chorar mais. Esquecemo-nos de chorar. Vamos pedir a Pedro que nos ensine a chorar como ele chorou. E depois o silêncio da Sexta-feira Santa.

 

Santidade, são quase três horas. Como devemos viver este momento hoje?

 

(ndr não responde, permanece em silêncio).

 

 Posso abraçá-lo em nome de todos? Obrigada, Santidade! Obrigada.

 

Sou eu que agradeço. O Senhor a abençoe!

 

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