O Evangelho e as fronteiras entre quem crê e quem não crê

Foto: Vatican News

25 Março 2022

 

"Se verdadeiramente nos deixarmos interpelar pelo Evangelho, é inevitável não voltar às perguntas fundamentais, a exemplo da que foi utilizada como título do livro que registra o debate entre Ratzinger e d'Arcais: 'Deus existe?'

 

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

 

O testemunho pessoal do cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura no Vaticano, manifesto na entrevista concedida a Vito Mancuso no final do ano passado, publicada no Corriere della Sera e reproduzida na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, me fez lembrar de alguns caminhos que percorri enquanto tentava compreender a fé cristã. Disse ele:

 

"Quando vou celebrar nas igrejas vejo que 80-90% dos presentes são idosos, no máximo de meia-idade. Quando participo de conferências sobre a Bíblia, é quase a mesma situação. Por outro lado, quando participo de diálogos sobre fé e ciência, ocorre o inverso: 80% são jovens."

  

Enquanto para alguns dos meus amigos cristãos a discussão sobre fé e razão era menos emocionante ou até mesmo desnecessária - porque sua fé em Cristo era genuína e sólida -, eu participava do coro dos jovens que acompanhava os debates entre fé e ciência com entusiasmo. Obviamente, os defensores da fé precisavam me convencer sobre seu ponto.

 

Entre os debates que acompanhei à época, destaca-se aquele entre o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger, e o filósofo ateu Paolo Flores d'Arcais, diretor da Revista MicroMega, sobre as fronteiras entre quem crê e quem não crê. O debate, realizado no Teatro Quirino de Roma e transmitido na rua para quase duas mil pessoas que não conseguiram entrar na sala, ocorreu em 2000, conduzido pelo jornalista italiano Gad Lerner.

 

O início do debate foi marcado por duas compreensões distintas sobre a necessidade de falar de Deus. Enquanto Ratzinger justificava a necessidade em comunicar a verdade porque "Deus não é uma questão privada" e, por isso, "o homem precisa conhecer Deus", d'Arcais destacava a "assimetria" do debate, uma vez que o "crente está interessado em converter o não crente", enquanto o "ateu não está interessado em absoluto em convencer o crente da inexistência de Deus".

 

 

 

 

Discussões à parte, o fato é que o filósofo reconheceu no Evangelho o "terreno comum" que pode ser compartilhado entre crentes e não crentes para encontrar uma orientação para os inúmeros problemas em que vivemos imersos. Ele se expressou assim:

 

"Eu penso que o terreno comum pode ser o Evangelho e os valores do Evangelho, principalmente dos que eu considero verdadeiramente fundamentais, ou seja, 'seja vossa linguagem: 'sim, sim'; 'não, não': o que vai além disso vem do Maligno', que, como vocês podem entender, não é só uma terrível acusação contra a hipocrisia, mas infinitamente mais: é a ideia de que toda diplomacia, tudo que se acrescenta a respeito de um radical aut aut é obra do demônio. Eu gostaria imensamente de que não só todos os laicos e os ateus, mas também todos os cristãos pensassem nesses termos. E, ainda, nas infinitas passagens do Evangelho em que, na prática, se considera que o pecado dos pecados é o privilégio, é diferente nas riquezas. Pois bem, acredito que a partir desses dois valores poderia ser muito fácil haver um acordo. Mas tenho a impressão de que esses dois valores, amiúde, são muito mais sentidos por muita gente que não é crente do que pela maioria dos crentes."

 

As respostas de Ratzinger tentaram jogar luz à denúncia de d'Arcais de que os próprios cristãos não vivem o Evangelho como deveriam e que muitas vezes estão mais dispostos a servirem ao dinheiro do que a Deus. Elas dizem algo sobre o que o Evangelho nos ensina. De um lado, o que nós somos e, de outro, o que Deus nos convida a nos tornarmos a partir do encontro pessoal com Cristo. Não é à toa que Ratzinger cita Mateus, o cobrador de impostos, aquele que servia essencialmente ao dinheiro, mas não recusou o chamado:

 

"O Evangelho já fala sempre da Igreja como de uma Igreja de pecadores, e que esse é justamente o traço específico dessa criatura. Porque Cristo veio para chamar também os pecadores, veio com esta palavra: 'Tolerai também o joio para não destruir o trigo'. E, portanto, o conceito de Igreja, querido pelo Senhor - hoje celebramos a festividade de São Mateus, na qual, sendo ele um pecador, o Senhor diz explicitamente: 'Vim chamar os pecadores...'. Aqui, parece-me que restam muitas coisas a esclarecer, e, de qualquer maneira, a pureza da Igreja não provém das... de seus próprios méritos, isso é totalmente evidente. Se examinarmos a história da Igreja, nela se manifesta, de forma permanente, a fraqueza humana, e o paradoxo da Igreja é que, apesar de todas essas carências, o Evangelho vive e continua presente."

 

Enquanto Ratzinger se esforçava para esclarecer como a fé é a culminância da razão, ou seja, seu ponto mais alto, d'Arcais contra-argumentava no sentido oposto: a fé tem que se limitar a ser somente fé e de forma alguma representa o ápice do entendimento humano, que é circunscrito à razão ela própria.

 

Se, de um lado, os argumentos de Ratzinger me forçavam a dar um passo além da minha vontade, isto é, ir além da confiança cega na própria razão, os de d'Arcais apenas confirmavam o que eu relutava em aceitar: os limites da razão humana e sua capacidade de permitir ao ser humano qualquer tipo de justificação para suas ações. Sem falar na defesa da tese filosófica completamente aceitável do ponto de vista estritamente argumentativo e racional: o absurdo existencial.

 

A frase do teólogo José Comblin, citada pelo historiador Eduardo Hoornaert no artigo intitulado "Evangelho não é religião", publicado na página eletrônica do IHU no ano passado, expressa de modo simples o que Ratzinger quer nos comunicar através da sua fé e erudição: "Evangelho não é religião. A evolução política e religiosa pode nos deixar tristes, o evangelho nunca!"

 

 

Na sequência, Hoornaert apresentou o que considera a imagem mais impactante do Evangelho, expressa na tradição cristã pelas inúmeras manifestações da vinda de Deus ao encontro de seus filhos:

 

"A melhor imagem, impactante, forte, da tradição evangélica se encontra no Apocalipse de João. Deus bate na porta: Já estou chegando e batendo à porta. Quem ouvir minha voz e abrir a porta, eu entro em sua casa (Apocalipse, 3, 20). Deus quer entrar em contato com o homem, mas aguarda na porta, pois respeita a liberdade de sua criatura. Enxerga, inclusive, a possibilidade de não ser atendido, como adverte o teólogo uruguaio Juan Luís Segundo: se ninguém abrir, Deus aceita a derrota sabendo que sua criação fracassou. Deus criou um mundo que podia fracassar."

 

O Evangelho é rico e, através de suas parábolas, Jesus nos ensina a viver, a abandonar o modo de vida que nos parece mais natural, para sermos guiados pelo seu próprio Espírito em outra direção. Mas, se desejamos ser orientados pelo Evangelho, é impossível lê-lo como um amontoado de parábolas das quais extraímos valores para a boa convivência em sociedade, a ponto de formularmos nós próprios uma ética. Se verdadeiramente nos deixarmos interpelar pelo Evangelho, é inevitável não voltar às perguntas fundamentais, a exemplo da que foi utilizada como título do livro que registra o debate entre Ratzinger e d'Arcais: "Deus existe?" E àquela que orientou a vida de Dietrich Bonhoeffer, pastor da Igreja Confessante e mártir durante a Segunda Guerra Mundial, que morreu professando sua fé em Cristo contra o nazismo: “O que é o cristianismo, ou ainda, quem é de fato Cristo para nós hoje?” Depois de responder a essas perguntas, a questão é: O que eu faço com isso?

 

 

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