Inferno é a única palavra capaz de descrever os abismos do humano

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01 Março 2022

 

Matteo al Kalak, professor de História moderna e História do Cristianismo na Universidade de Modena e Reggio Emilia. O seu último livro, publicado em 2021, pela Editora Einaudi é "Mangiare Dio. Una storia dell'eucaristia", em artigo publicado por Domani, 27-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 


O que está acontecendo nestes dias? Estamos testemunhando a um inferno. A Ucrânia está em chamas, os mísseis russos caem sobre a população indefesa e o avanço das tropas russas, mais ou menos declarado, está colocando de joelhos um país esmagado pela inconsistência da diplomacia.

 

Mas é realmente um inferno? O que nos leva a identificar essas cenas e essas cores, feitas de ingredientes terríveis, com o inferno? Por que usar essa palavra, essa imagem e o que ela evoca?

 

É a partir daqui que pode começar a reflexão sobre o vocabulário religioso que, de uma maneira ou de outra, continua a povoar os nossos discursos e, sobretudo, um imaginário de tem raízes antiquíssimas.


A Divina Comédia


O que Dante entregou à humanidade certamente ficou indelevelmente impresso no sentimento coletivo, desde os "suspiros, choros e grandes angústias" até o "ar sem estrelas", a área nebulosa em que não se veem as luzes no céu.


Mas certamente há muito mais. O inferno é tudo menos um conceito dado como certo e definido e, aliás, tem sido objeto de inúmeras reformulações. A ideia de um lugar onde a justiça de Deus é exercida para balançar e reequilibrar a injustiça terrena está presente em muitas religiões e certamente revela como os infernos sobrenaturais - de qualquer natureza sejam - falam na raiz com os “infernos” terrenos.


Este é talvez o primeiro elemento a ter em conta: a ideia de um lugar (ou de um mecanismo) de punição eterna, em muitas culturas, serve sobretudo para "reparar" as injustiças que ocorrem na terra e, portanto, não se pode entender o inferno do outro mundo se não observando o que acontece na esfera terrena do dia-a-dia.

 

 

Além disso, não é difícil entender como, diante da injustiça, as civilizações tenham se esforçado a formular uma resposta que, de alguma forma, permitisse estabelecer ou reestabelecer uma ordem, governar e recompor um equilíbrio.


No cristianismo, a formação do conceito de inferno foi progressiva: a cultura judaica dos tempos de Jesus não possuía a ideia bem formada de um lugar sobrenatural de punição em oposição ao lugar da recompensa eterna: a cultura cristã logo cria a imagem de um lugar no "submundo", literalmente "abaixo", destinado ao sofrimento dos ímpios.


Suas cores, odores, sons e características buscam ajuda no Novo e no Antigo Testamento: fogo eterno, choro e gritos, dor sem fim, muitas vezes proporcional aos pecados cometidos na vida. As escrituras oferecem um repertório extraordinário, desde o lago de fogo até o monte de brotos secos, empilhados e queimados por serem infrutíferos.


A pastoral do medo


Como muitos historiadores mostraram, este inferno, precisamente porque brota da sociedade e age sobre a sociedade, pode ser um poderoso instrumento para governar: é na Idade Média que nasce, para se fortalecer do século XVI em diante, a chamada "pastoral do medo”.


Hostes de pregadores, escritores sagrados, inquisidores e expoentes de ordens religiosas lembram insistentemente, em tons vívidos, que para quem não observar os preceitos da Igreja haverá uma punição terrível e eterna.


A única maneira de escapar é seguir as indicações do clero que assim se vê falando de um reino sobrenatural que é, ao mesmo tempo, uma realidade terrena: precisamente por estar situado após a vida mortal, o inferno opera e afeta com eficácia sobre a vida de todo dia, no modo como é vivida, mudada, dirigida.


Os juízos universais


Um testemunho retumbante e imaginativo deste lugar, para o qual olhar com frequência, são os milhares de juízos universais que ganham forma e cor nas paredes das igrejas: pensar no fim e no juízo de Deus torna-se uma necessidade ineludível, uma prática cotidiana que determina os valores e os comportamentos.

 

 

Para ser crível e, acima de tudo, para atingir os sentidos interiores, o inferno deve ser verdadeiro, tangível, ameaçador. Hostes de teólogos e, não raro, astrônomos e cientistas explicam que está no centro da Terra; que tem bocas e entradas – aliás, como dizia também Dante -; alguns pensam que os vulcões são os lugares que levam direto ao reino do mal, onde vive um anjo caído na noite dos tempos, com seus ajudantes malignos e torturadores.

 

Este inferno está morto? Será que realmente o enterramos e realmente decretamos o seu fim?

 

Muitos pensadores argumentaram que cada vez mais temos assistido a uma, ou seja, que ele penetrou em nós, nos buracos escuros da consciência individual, e se manifesta nas tragédias da humanidade ou nas manifestações mais ou menos evidentes da psicanálise.

 

Certamente continua a emergir em nosso vocabulário e nos universos paralelos das narrativas, dos filmes ou das séries de televisão. Mas o que - hoje como no passado - questiona todo inferno, interior, sobrenatural ou terreno, é uma pergunta ainda mais radical: a pergunta sobre o mal e, mais profundamente, sobre a natureza de Deus e a sua existência.


A natureza do mal


A bondade de Deus não parece se conciliar, na ideia de alguns, com a possibilidade de que exista um inferno; por outro lado, a justiça de Deus dita, na mente de outros, que deve haver um lugar onde corrigir erros que não receberam punição.

 

 

Não será coincidência que a teologia tenha tentado até mesmo construir pontes entre margens opostas: e se o inferno existisse - porque Deus é justo - mas estivesse vazio - porque Deus é misericordioso?


Nesse estranho jogo de polaridades opostas, no entanto, o inferno continua operando: em nossa linguagem, em nossa experiência e, sobretudo, nos eventos a que damos esse nome.


Hoje a igreja de Roma que, durante séculos, construiu e explicou as características do inferno, afirma que este lugar não é mais algo físico, mas um estado: um estado de separação de Deus e, portanto, um estado de desolação angustiante.


E, no entanto, sua natureza anfíbia, entre castigo obrigatório e lugar inaceitável porque contrário à bondade divina, continua a ser parte do discurso público, até mesmo de um papa como Francisco. "Mafiosos, arrependam-se para não acabar no inferno!", lembrou, por exemplo, em 2014.


É a prova de que a alavanca profunda do medo e da angústia que nasce do abandono solitário é uma linguagem ainda forte. Talvez porque raciocinar nos infernos seja, afinal, mergulhar nos abismos do espírito humano.

 

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