Eles não podiam comer (Mc 3,20-21). “O pior é a fome!”

Foto: Christine Olson (Flickr CC)

20 Janeiro 2022

 

"A oposição entre poderes estabelecidos e a proposta de Jesus continuam a nos desafiar na luta contra as desigualdades sociais, a fome e a religião que matam em nome de Deus e de suas leis. Lutemos para que todos tenhamos casa e comida, para que todos possamos comer as mais variadas formas de alimento nas casas do mundo. Fora os que não estão nesse projeto! Fora os fariseus da política e da religião que mataram Jesus e continuam mantando os empobrecidos!", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM, ao comentar o Evangelho de Marcos (Mc 3,20-21).

 

Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, professor de exegese bíblica, membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB) e padre Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze, cujo último é O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).

 

Eis o comentário.

 

O evangelho sobre o qual vamos refletir hoje é de Mc 3,20-21. Dois versículos apenas. Gostaria de destacar nele três pontos essenciais: a casa, o comer e os parentes de Jesus. Primeiramente, devemos situar essa passagem na estrutura do evangelho de Marcos. Ela faz parte do bloco de textos que vai do capítulo 3,7 ao capítulo 6,6a.

 

No primeiro bloco, Mc1,14—3,6, Jesus está em conflito com o sistema opressor político-religioso, representado pelos fariseus e seus escribas, na sinagoga. Nela, ele entra pela primeira vez, num sábado, prega com autoridade e expulsa um demônio (Mc 1,21-28). No fim do bloco, ele entra novamente e cura um homem que tinha uma mão seca (Mc 3,1-6). Essa disposição dos relatos chama-se inclusão, isto é, a mesma coisa é colocada no início e no fim do bloco narrativo. Recorde-se que o autor bíblico não escreveu seguindo a divisão de capítulos e versículos da Bíblia que temos. Isso só começou a ser feito pelo arcebispo de Cantuária, Stephen Langton, primeiramente por capítulos, em 1227, e finalizado, em 1551, pelo francês Robert Estiénne. Os autores bíblicos escreviam por temática, com essas inclusões e outras figuras de linguagem.

 

Bom, agora podemos voltar ao texto de nossa reflexão, no bloco que vai de Mc 3,7 ao capítulo 6,6a. Nessa parte, a sinagoga dá ao lugar ao mar, que aparece 12 vezes (3,7.8.10.20.32; 4,1.35; 5,21.24.27.30.31) e à casa, que aparece 7 vezes (3,20.25.27; 5,19.35.38; 6,4). O mar passa a ser o lugar da multidão que encontra Jesus, mas, sobretudo, o lugar do chamado dos discípulos.

 

Jesus está na sua casa, de portas abertas para a multidão. Por isso, seus parentes chegam e querem controlar a situação. Eles tinham feito aliança com os escribas fariseus, os quais foram enviados para julgar Jesus. Daí a atitude furiosa deles de quererem agarrar Jesus. Outro detalhe importante, os escribas tinham dito que Jesus estava possuído do espírito de Beelzebul, que significa “Senhor da morada”. Que contraste, Jesus está na sua casa, mas o dono dela é Beelzebul. E o que é pior, os parentes fazem a mesma acusação dos fariseus: “ele enlouqueceu”, isto é, tem possessão diabólica.

 

Os parentes de Jesus, sua mãe e seus irmãos ainda não tinham compreendido o que significava entrar na casa de Jesus, isto é, encontrar a salvação, o Messias. Eles também tiveram que fazer um processo de conversão e abandonar o sistema opressor político-religioso. Por isso, na continuidade dessa passagem, Jesus afirma que quem o segue é que é a sua mãe e seus irmãos. Não se trata de rejeição da sua família.

 

Outro detalhe importante no texto é o fato de que a multidão não podia comer. As casas não tinham portas. Todos podiam entrar, comer e participar de um banquete. Comer juntos é sinal de união. Por isso, Jesus, antes de sua morte e condenação pela multidão, lideranças religiosas judaicas e políticos romanos, fez a sua última refeição na casa de um amigo e discípulo, mas de forma reservada.

 

Comer é um gesto sublime que todos nós precisamos exercitar a cada dia de nossas vidas, para que o sopro de vida seja perpetuado em nossos corpos. Comer é prazeroso. Prazer na saciedade, no descanso do corpo que se nutre de vitaminas. A gula não é saudável. A Teologia Moral da Igreja Católica, já no século VI e, depois, com Santo Tomás de Aquino, no século 13, definiu a gula como “busca incessante aos prazeres da comida e da bebida” e a colocou no rol dos sete pecados capitais.

 

Saber comer é uma arte! Saber combinar os alimentos e comê-los como convém exige esforço e moderação. Por outro lado, existe um abismo entre o saber comer e o não ter o que comer. No mundo, milhões sofrem de fome. No Brasil, mais da metade da população vive de insegurança alimentar. Vinte milhões passam fome diariamente. Uma triste realidade que está diretamente ligada às desigualdades de raça, nesse gigante Brasil de terras férteis, que alimenta o mundo com o melhor das iguarias aqui produzidas e deixa seus filhos morrerem de fome. Têm culpa os governos que insistem em não fazer valer o sagrado direito à alimentação. Tem culpa, em menor escala, a pandemia da Covid-19 que simplesmente agravou essa situação.

 

Iniciamos a nossa reflexão com três pontos, gostaria de terminá-la com outros três. Primeiro, a multidão que estava na casa de Jesus não podia comer porque estava sendo saciada pelas palavras e presença de Jesus. Segundo, o alimento espiritual é importante, mas ele deve vir junto com o ter o que comer para sobreviver. “O pior é a fome”, ouvi, no fim da década de 1980, de uma prostituta, seu nome era Débora, em uma entrevista concedida a uma jornalista, num encontro de mulheres marginalizadas, em Ipatinga (MG), quando perguntou sobre o que é o pior no meretrício. Triste realidade que se agravou entre os marginalizados e empobrecidos. Terceiro, saber comer e jejuar é também uma arte necessária para uma vida saudável. Caso contrário, a comida nos adoece e nos leva à morte. E é isso que propõe o nosso retiro holístico Bíblico Corporal de Purificação, que acontece todos os anos, no mês de janeiro, em Divinópolis (MG), numa semana de reflexão, oração, jejum e purificação.

 

A oposição entre poderes estabelecidos e a proposta de Jesus continuam a nos desafiar na luta contra as desigualdades sociais, a fome e a religião que matam em nome de Deus e de suas leis. Lutemos para que todos tenhamos casa e comida, para que todos possamos comer as mais variadas formas de alimento nas casas do mundo. Fora os que não estão nesse projeto! Fora os fariseus da política e da religião que mataram Jesus e continuam mantando os empobrecidos!

 

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