Inteligências animais: dos pombos aos chimpanzés, a superioridade cognitiva dos humanos é uma quimera. Artigo de Roberto Marchesini

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18 Dezembro 2021

 

As inteligências são múltiplas: alguns pássaros nos superam em termos de capacidade mnemônica ou de observação, os chimpanzés são melhores do que nós para lembrar uma ordem dispersa de números vista apenas por um instante. Somos realmente superiores?

 

A reflexão é de Roberto Marchesini, etologista e filósofo italiano e fundador da zooantropologia, em artigo publicado em Rewriters, 16-12-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

O mundo animal se apresenta aos olhos dos estudiosos do século XXI de uma forma bastante diferente das primeiras descrições da etologia, quando ainda era forte a influência dos céticos sobre a mente animal e predominava a ideia de que o comportamento era uma questão de relação entre um estímulo e uma reação.

 

A ideia de continuidade entre o ser humano e as outras espécies promovida por Charles Darwin no livro “A expressão das emoções no homem e nos animais” (1872) sofrera um retrocesso em 1894 devido ao cânone da parcimônia de Lloyd Morgan, que recomendava explicações sobre o comportamento animal preferindo faculdades simples. É nesse clima que foi retomada a concepção de animal-máquina formulada por Descartes e se voltou a explicar o comportamento animal por meio do modelo dos automatismos.

 

No entanto, a revolução darwiniana não tardaria a dar os seus frutos, até porque um dos pais da etologia, Konrad Lorenz, na realidade considerava o animal como um pequeno cientista em florescimento, levado a formular hipóteses e a testá-las, ao invés de uma máquina simplesmente reativa.

 

Em 1976, Donald Griffin, com a publicação do ensaio “The Question of Animal Awareness”, rompe as barreiras impostas pelo pensamento reducionista e dá origem à revolução cognitiva, que já havia dado seus bons frutos também na psicologia humana.

 

Surge assim uma intensa pesquisa sobre a inteligência animal, que, nos 40 anos seguintes, rompeu uma grande quantidade de tabus baseados na unicidade do ser humano, aquela condição de especialidade reiterada pelo filósofo Martin Heidegger visando a colocar uma barreira intransponível entre nós e eles.

 

Nasceram as experiências surpreendentes da aprendizagem de linguagens gestuais nos primatas antropomorfos, que permitiram um vislumbre de diálogo entre o humano e o não humano, e, depois, chegaria Alex (veja vídeo abaixo), de Irene Pepperberg, para nos mostrar que não só os nossos primos são capazes de falar conosco, mas também um papagaio, capaz não de repetir, mas de raciocinar sobre cores, números, formas e de responder verbalmente aos pedidos.

 

 

O mundo animal: uma pluralidade de inteligências diferentes

 

Nesse ponto, porém, surge para muitos a questão sobre até que ponto os animais são capazes de se aproximar dos desempenhos cognitivos do ser humano, considerado – erroneamente – como ápice da inteligência.

 

Nos anos 1980, o psicólogo Howard Gardner havia formulado a teoria das inteligências múltiplas, mostrando a aleatoriedade de avaliar a capacidade cognitiva como uma performance única e homogênea, porque as qualidades lógico-matemáticas de Einstein eram diferentes das visuoespaciais de Picasso ou das narrativas de Dostoiévski.

 

Isso nos permitiu olhar para o mundo animal como para uma pluralidade de inteligências diferentes moldadas pelo tipo de vida, ou seja, pelos xeque-mates específicos que cada tipo de animal teve que enfrentar ao longo da sua história evolutiva.

 

Em outras palavras, não há um ápice na inteligência, mas sim uma grande variedade de desempenhos elaborados pela seleção natural, exatamente como para as outras funções do corpo.

 

Nessa perspectiva de pluralidade performativa, valia para a inteligência aquilo que já havia sido detectado para as outras funções, por exemplo os sentidos: ou seja, era admissível que, em algum desempenho cognitivo, certas espécies fossem ainda mais performáticas do que o ser humano. Bem, as confirmações não tardaram a chegar.

 

A partir dos estudos de Richard Herrnstein sobre a capacidade dos pombos de formular conceitos abstratos a partir de imagens, logo se chegou a observar que esses pássaros superam pontualmente os seres humanos no jogo da rotação mental dos objetos, ou seja, no reconhecimento do alvo correspondente a um modelo, mesmo que virado.

 

As incríveis performances de memorização do pássaro quebra-nozes de Clark, capaz de se lembrar, à distância de seis meses, de cerca de 10 mil locais onde armazenou as suas reservas de comida, constrangeram seriamente a pretensão humana de ser o apogeu das capacidades mnemônicas.

 

Em 2007, os pesquisadores japoneses Inoue e Matsuzawa mostraram que um chimpanzé era capaz de superar qualquer concorrente humano na capacidade de lembrar a ordem dispersa de números de 1 a 19 mostrados por um instante em uma tela. O desempenho visível no vídeo abaixo é inapelável: o chimpanzé é incomparavelmente superior a nós nessa tarefa.

 

 

Mas, em pouco tempo, multiplicaram-se as pesquisas sobre a inteligência animal, mostrando-nos como a nossa pretensão de superioridade cognitiva nada mais era do que uma quimera, pois até mesmo os peixes, os insetos, os cefalópodes demonstraram que nos superam em alguns desempenhos e estamos apenas no início dessa viagem de conhecimento sobre a mente animal.

 

O que eu aconselho é abordar as inteligências animais de modo plural, evitando a comparação obsessiva com o ser humano. Um bom texto a esse respeito é “L’intelligenza animale”, de Emmanuelle Pouydebat, publicado pela editora Corbaccio.

 

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