“Cristo Rei” desvela a verdade de quem somos

Foto: Cathopic

19 Novembro 2021

 

A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho da Solenidade de Jesus Cristo, Rei do Universo, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto de João 18,33-37.

 

Eis o texto.

 

“Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz”.

 

A Igreja Católica celebra, no último domingo do Ano Litúrgico, a festa de Cristo Rei. Uma imagem provocativa, pois quebra toda concepção que temos de “rei” e “reinado”. Esta é a ousadia de Jesus: proclamar-se “rei” sem tomar a Capital, sem conquista militar como os imperadores romanos, nem por eleições, nem por herança de família, nem por estratégia de partido...

 

Certamente, Jesus utilizou a imagem de rei e de reino, mas não quis ser rei na linha do domínio econômico, social ou militar, mas de serviço mútuo, revelando aos homens o testemunho da verdade de Deus e do sentido da vida. Por isso, não veio para anunciar uma guerra apocalíptica, nem a destruição dos perversos, mas semear humanidade, a partir da Galileia, oferecendo a Palavra aos enfermos, marginalizados e pobres, pois outros haviam se apropriado dela, deixando-os sem nada. Quis assim que todos fossem reis, em um Reinado fundado na verdade de Deus e na fraternidade entre os homens.

 

O Evangelho deste domingo nos apresenta uma cena inusitada: o poder terreno se depara com alguém que diz: “sou rei”, sendo um condenado à morte, sozinho, frágil, pobre, despojado de todo poder, que passou a noite submetido a terríveis torturas, coroado de espinhos, sangrando e com as mãos atadas. Esse Rei é Jesus, um profeta que desafiou os dogmas do poder terreno representado por Pilatos.

 

Aqui, nesta cena, se enfrentam o opressor e o oprimido. Jesus tem autoridade sem governar, exige sem dominar nem oprimir; propaga sua verdade sem conquistar nem impor. Seu reinado não cria instituições de poder terreno, senão que cria fraternidade.

 

Onde se apoia a autoridade de Jesus e a precariedade da autoridade do governador Pilatos? No testemunho da Verdade. Pilatos não dizia a verdade, não caminhava na verdade, nem estava a serviço da verdade. E Jesus era a Verdade. Em sua vida, Jesus sempre se revelou verdadeiro e transparente; ensinou e realizou a verdade: “para isto nasci, para dar testemunho da verdade”.

 

Jesus, sendo autêntico, sendo verdade, era o verdadeiro Rei. Mas o que lhe pedia seu verdadeiro ser era colocar-se a serviço de todo aquele que lhe necessitava, sem impor nada aos demais. Nesse sentido, Jesus é Rei, porque vem dar testemunho da verdade, mas não de uma verdade racional ou teológica, separada da Vida, mas da mesma vida como transparência de amor, em comunhão com todos.

 

Jesus é Rei e todos podemos ser “reis” n’Ele e com Ele; “ser rei” é viver descentrado, sensível à realidade de quem sofre, criativo no espírito de serviço; “ser rei” é viver na verdade do que somos, em gesto de transparência, que é amor mútuo, conhecimento compartilhado, sem armas, sem negociatas políticas, sem manipulação da religião para enriquecimento ilícito.

 

 

 

Esta é a festa da Igreja, a festa da Verdade. Não se trata de dizer que Jesus é a Verdade e viver depois na mentira estruturada. Trata-se, simplesmente, de viver na verdade: verdade que é transparência afetiva, pessoal e relacional; só a verdade nos cura e nos liberta do apego ao poder, da ganância do dinheiro, da imposição sobre os outros...

 

É da essência do ser humano existir sempre na verdade. É preciso desvelá-la e não escondê-la. A verdade é indobrável. Mesmo ensanguentada, não capitula. Verdade exige honestidade, pois, sem honestidade, a verdade passa a ser produto de barganha. Verdade violentada por interesses mesquinhos, verdade esvaziada de compaixão e de sentimentos. Percebemos no contexto atual que o importante não é a verdade do ser, mas a do aparentar; o importante não é a coerência de vida, mas a mentira camuflada de verdade.

 

A ocultação da verdade é um dos sintomas mais fortes do processo de desumanização que estamos vivendo; a “cultura da mentira”, a destruição da reputação dos outros através das “fake news”, os negócios escusos, os orçamentos secretos, o negacionismo como hábito de morte... constituem a chamada “crise da mentira”. Quanta incoerência! Dizemos que somos seguidores d’Aquele que “veio testemunhar a verdade” e, no entanto, procedemos como canais por onde flui a mentira deslavada.

 

Desvelar a verdade de si mesmo e acolher a verdade no outro é sinal de maturidade. A verdade é limpa. É inocente. A verdade retira o mundo das trevas da ignorância, do negacionismo, do “terraplanismo”. Os “pilatos” da atualidade estão a postos violentando a verdade em nome de uma ideologia que alimenta ódios, preconceitos, intolerâncias... Também nós, em nosso interior, alimentamos um Pilatos para quem vale a mentira, o engano, a falsa promessa, a falsa imagem... Acaso somos o que dizemos ser? Acaso vivemos o que falamos?

 

Desse modo, quem se fecha numa crença ou numa ideologia, sente-se automaticamente dono da verdade. Daqui brotam a exclusão de quem pensa e sente diferente, o fanatismo, o proselitismo... Tudo isso a partir de uma atitude arrogante, que pretende autojustificar-se, apelando à posse da verdade.

 

Diante dos donos do poder e das autoridades religiosas que se julgam em posse da verdade e que tem um “deus” feito à medida de seus interesses, Jesus afirma que “veio para dar testemunho da verdade”.

 

A Verdade é uma das grandes carências existenciais; ela aponta para o sentido da existência, expressa a grande e permanente busca do ser humano. Não se trata de uma necessidade periférica, mas uma dimensão que nos humaniza. Jesus, diante de Pilatos, se apresenta como resposta a esta busca.

 

“Conhecer a verdade” é aspiração humana inata. O ser humano tem sede de verdade. Vai buscá-la nas dimensões mais profundas de seu espírito. Antes que “ter” a verdade, ele quer “ser verdade”, ele deseja existir na verdade. Descobrir a verdade é desejo mobilizador. Compensa atravessar vigílias e trilhar veredas para chegar à verdade. Uma das angústias humanas é não alcançar o manancial da verdade. Enquanto existir verdade encoberta, o ser humano vive inquieto.

 

A verdade clareia a vida. Sem a verdade, a existência é sombria. A verdade gera autenticidade. Onde falta a verdade, instala-se lacuna na existência. Quem não vive a verdade, está “carunchado” por dentro. Impregnar-se da verdade é humanizar-se.

 

Ser “testemunha da verdade” requer “viver na verdade”; e viver na verdade inclui o reconhecimento e a aceitação da própria verdade (com suas luzes e sombras) e da verdade dos outros. Quando alguém transita por este caminho, começa a viver na humildade e isso é já “caminhar na verdade” (S. Teresa).

 

Ser seguidor de Jesus é fixar o olhar n’Ele, pois Ele é o centro do nosso caminho; ao caminhar com Ele, vamos nos revelando e a partir d’Ele vamos descobrindo nosso ser verdadeiro (que nos abre para acolher a verdade presente em cada ser humano – verdade que vai além das verdades religiosas, políticas, ideológicas...). É significativo que os antigos gregos entenderam a verdade como “a-létheia” (“sem véu”), ou seja, quando emerge a verdade de nós mesmos.

 

Quem se descobre verdadeiro e sem máscara, vive profundamente, alarga sua vida a serviço dos sem-vida. E esse reconhecimento da verdade – isso é a humildade – se transforma em luz, descanso e liberdade. Esta é a via da humanização; e quanto mais nos humanizamos, mais nos divinizamos.

 

 

 

Para meditar na oração:

 

Jesus Cristo é a única Verdade; é na Verdade d’Ele que todos “somos, vivemos e existimos”.

 

- Devemos fazer um exame do consciente coletivo diante d’Aquele que é “Testemunha da Verdade”.

 

- É preciso atrever-nos a discernir com humildade o que há de verdade e o que há de mentira em nosso seguimento de Jesus.

 

- Onde há verdade libertadora e onde há mentira que nos escraviza?

 

- Precisamos dar passos em direção a maiores níveis de verdade humana e evangélica em nossas vidas, em nossas comunidades, em nossas instituições.

 

 

 

 

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