As reformas do Papa Francisco na Missa Latina são necessárias para assegurar o legado do Vaticano II. Artigo de Blase Cupich

Foto: Vatican Media

11 Novembro 2021

 

“O Papa Francisco publicou 'Tradiotinis Custodes' porque sabia o que estava em jogo: a aceitação do Vaticano II como uma ação autêntica do Espírito Santo em conformidade com a tradição da Igreja, a defesa da autoridade papal, a natureza da Igreja e o significado da reforma. No entanto, além de valorizar este momento como um lembrete para preservar os valores essenciais da vida da Igreja, devemos também usar esta oportunidade para unir nossos esforços para realizar a reforma plena solicitada pelo Concílio”, escreve o cardeal Blase J. Cupich, arcebispo de Chicago, EUA, em artigo publicado por America, 10-11-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

Em 16 de julho, o Papa Francisco publicou o motu proprio “Traditionis Custodes”, chamando a todos os católicos romanos para aceitarem plenamente que os livros litúrgicos promulgados pelos Papas Paulo VI e João Paulo II são as únicas expressões do lex orandi (a lei da oração) do Rito Romano.

 

Por que o Papa Francisco publicou esse documento? E por que agora, 60 anos depois desses livros terem sido publicados?

 

No início dos anos 1970, um movimento liderado pelo arcebispo Marcel Lefebvre se levantou na Europa, rejeitando o ensino e as reformas do Concílio Vaticano II. O arcebispo Lefebvre depois foi excomungado pelo Papa João Paulo II. Com um sentido de promover unidade e convidando aqueles associados a esse movimento para retornar à Igreja Católica, João Paulo II aceitou bispos que provessem a celebração limitada do Missal pré-Vaticano II para aqueles que ainda estavam apegados à liturgia passada.

 

Seu sucessor, o Papa Bento XVI, expandiu sua concessão no motu proprio “Summorum Pontificum” para que qualquer padre pudesse usar as formas litúrgicas passadas sem a permissão do seu bispo. Os motivos de João Paulo II e de Bento XVI, como aponta Francisco em “Traditionis Custodes” era “facilitar a comunhão eclesial daqueles católicos que se sentem apegados a formas litúrgicas passadas e não a outras”.

 

O Papa Bento XVI indicou que, em tempo, seria importante avaliar sua decisão pela consulta com bispos de todo o mundo. Isso foi feito pelo Papa Francisco no último ano. A consulta revelou que, em vez de assistir aqueles que permaneceram apegados a formas anteriores, a concessão extraordinária estava sendo usada para promover a liturgia passada como uma opção paralela na celebração eucarística.

 

Como o arcebispo Augustine Di Noia, secretário adjunto da Congregação para a Doutrina da Fé, observou em uma entrevista, de junho de 2021, ao invés de conseguir reparação e unidade, como pretendiam João Paulo II e Bento XVI, “o que temos hoje é um movimento próprio dentro da Igreja, procurando endossar seus líderes, que querem dividir assolapando as reformas do Vaticano II pela rejeição da mais importantes delas: a reforma do Rito Romano”.

 

O Papa Francisco, portanto, emitiu novas diretrizes restaurando ao bispo diocesano, como moderador, promotor e guardião de toda a vida litúrgica em sua diocese, a responsabilidade de regular a concessão extraordinária para celebrar a liturgia de acordo com seu uso antes das reformas de Vaticano II. Ele deve fazer isso de uma maneira que sempre testifica a unidade do Rito Romano, refletida exclusivamente nos livros litúrgicos promulgados pelo Papa Paulo VI e pelo Papa João Paulo II.

 

O bispo deve oferecer apoio pastoral ao seu povo que pertenceu a comunidades que utilizaram a liturgia pré-conciliar, mas também deve ter presente sua responsabilidade mais fundamental de guardião da tradição para restabelecer uma oração única e idêntica, que expressa a unidade da Igreja no rito romano reformada pelos decretos do Vaticano II. No final, é esse serviço mais fundamental de tutela e unidade que melhor atende às necessidades pastorais de toda a igreja local, e também da igreja universal.

 

A carta do papa é um lembrete aos bispos que, como sucessores dos apóstolos, eles, com todos os bispos em união com e sob o papa (cum Petro et sub Petro), compartilham a responsabilidade por toda a Igreja. Esse lembrete coloca em perspectiva o que está em jogo e por que os bispos devem levar a sério a carta do Santo Padre, pois é um documento de ensino essencial que deve ser totalmente adotado por todos na Igreja.

 

Considerações para a Igreja

 

Em primeiro lugar, dado que a reforma litúrgica ocorreu a pedido dos padres conciliares no Vaticano II e em conformidade com os ensinamentos conciliares, não promovendo o retorno a uma forma unitária de celebração, de acordo com as diretrizes de “Tradiotinis Custodes”, será ainda necessário questionar a autoridade e o valor do Concílio como parte integrante da tradição católica.

 

Por esta razão, o Papa Francisco exorta todos os católicos a reconhecerem que o Vaticano II e suas reformas não são apenas ações autênticas do Espírito Santo, mas também estão em continuidade com a tradição da Igreja. Infelizmente, há ampla evidência de que muitos daqueles que rejeitaram a liturgia reformada nos anos anteriores e posteriores também expressaram oposição ao concílio e seus ensinamentos, incluindo aqueles sobre a natureza da Igreja, o mundo moderno, liberdade religiosa, ecumenismo e diálogo inter-religioso; essas objeções não eram restritas às maneiras como esses ensinamentos estavam sendo interpretados.

 

Devemos estar vigilantes para que a concessão do uso da antiga liturgia não se torne uma plataforma para que esta divisão se aprofunde. O espectro e o perigo de uma “Igreja paralela” são reais. Por esta razão, qualquer permissão para usar as formas litúrgicas passadas deve incluir uma catequese regular sobre os ensinamentos do Vaticano II, tendo sempre em mente que, como disse o Papa Francisco em 2019, “a liturgia é a vida que forma, não uma ideia a ser apreendida”.

 

Em segundo lugar, devemos lembrar que os padres conciliares deixaram para o papa completar a reforma da liturgia, em reconhecimento ao papel único do sucessor de Pedro. Uma descrição de seu papel está claramente expressa no número 882 do Catecismo da Igreja Católica, que cita os documentos do Vaticano II: “o Pontífice Romano, em razão de seu ofício de Vigário de Cristo, e como pastor de toda a Igreja tem poder total, supremo e universal sobre toda a Igreja”. Qualquer falha direcionada à resistência à reforma litúrgica promulgada pelo Papa Paulo VI, e mais tarde pelo Papa João Paulo II, corre o risco de minar o ensino da Igreja sobre o primado papal e a comunhão com o bispo de Roma.

 

O Papa Paulo VI aludiu à conexão entre aceitar a reforma litúrgica e a autoridade papal quando observou o seguinte em uma audiência geral no Vaticano em 1965, quatro anos antes de promulgar o Missal Romano renovado pelo Vaticano II:

 

É bom que seja percebido como a própria autoridade da Igreja para desejar, promover, acender esta nova forma de oração, aumentando assim muito a sua missão espiritual [...]; e não devemos hesitar em primeiro nos tornarmos discípulos e depois partidários da escola de oração, que está para começar”.

 

É importante notar que o Papa Paulo VI apelou a um grande grupo internacional de bispos, conhecido como Consilium, para ajudá-lo, a fim de assegurar a supervisão episcopal do processo de reforma “com e sob o Papa”, garantindo assim que as diretrizes do Concílio fossem levadas adiante. Isso estava muito contrastado com o Missal de São Pio V, que deu o trabalho a um cardeal.

 

Terceiro, a própria natureza da Igreja e sua missão estão em jogo. Os padres conciliares descreveram a Igreja como um “povo peregrino”, um termo enraizado nas Escrituras, para desenvolver a imagem da Igreja anteriormente entendida como uma sociedade perfeita e uma potência mundial a ser contida. Como “povo peregrino”, a Igreja é semper reformanda, sempre aberta à reforma e à conversão, que lhe é necessária para cumprir a sua missão lendo os sinais dos tempos, como pedia o Papa João XXIII.

 

Neste Natal cumprem-se sessenta anos da convocação do Papa para o Vaticano II; com sua constituição apostólica “Humanae Salutis”, o Papa João XXIII apontava que as leituras dos sinais dos tempos são particularmente importantes para “tarefas imensamente sérias e amplas que aguardam a Igreja”. A principal entre elas é “trazer o mundo moderno para o contato com as energias perenes e vivificadoras do Evangelho”. Essa frase captura o objetivo do Vaticano II e a razão para suas reformas.

 

Então, nós não deveríamos temer a reforma, porque ela é um valor central da Igreja e da sua natureza. Reforma é uma expressão de fidelidade. Reforma, propriamente entendida, significa abraçar uma nova forma enquanto manter o que é imutável na sua forma passada e em continuidade com a tradição.

 

É claro, houve outras reformas pós-conciliares que não eram litúrgicas, como a do Código Canônico em 1983 e a do Catecismo em 1992. Em tais reformas, a Igreja manteve o que era essencial e deixou para trás o que não era. Em ambos casos, a reforma significou algo, adotando uma nova forma e colocando de lado uma passada, e assim deve ser em relação à reforma litúrgica.

 

O Papa Francisco ecoou as aspirações do Papa João XXIII em falar sobre o significado das reformas do Concílio em mensagem para os participantes da 68º Semana Litúrgica Nacional, na Itália, em agosto de 2017:

 

O Concílio Vaticano II fez maturar depois, como bom fruto da árvore da Igreja, a Constituição sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium (SC), cujas linhas de reforma geral respondiam às necessidades reais e à esperança concreta de uma renovação: desejava-se uma liturgia viva para uma Igreja toda vivificada pelos mistérios celebrados. Tratava-se de expressar de maneira renovada a vitalidade perene da Igreja em oração, tendo o cuidado de que ‘os cristãos não entrem neste mistério de fé como estranhos ou espectadores mudos, mas participem na ação sagrada, consciente, ativa e piedosamente, por meio duma boa compreensão dos ritos e orações’ (SC, 48)”.

 

O Santo Padre quis apontar que é importante não andar em um caminho paralelo com a tentativas de repensar a reforma ou pela promoção da então chamada reforma da reforma. Mais que isso, nós dependemos profundamente do nosso entendimento do critério destacado da reforma litúrgica:

 

redescobrir os motivos das decisões tomadas com a reforma litúrgica, superando leituras infundadas e superficiais, resseções parciais e práticas que a desfiguram. Não se trata de reconsiderar a reforma revendo as suas escolhas, mas de conhecer melhor as razões subjacentes, inclusive através da documentação histórica, assim como de interiorizar os seus princípios inspiradores e de observar a disciplina que a regula [...]

 

O rumo traçado pelo Concílio encontrou forma, segundo o princípio do respeito da tradição sadia e do progresso legítimo (cf. SC, 23), nos livros litúrgicos promulgados pelo Beato Paulo VI, bem recebidos pelos próprios Bispos que participaram no Concílio, e já há quase 50 anos universalmente em uso no Rito Romano”.

 

Um chamado à reforma plena

 

O Papa Francisco publicou “Tradiotinis Custodes” porque sabia o que estava em jogo: a aceitação do Vaticano II como uma ação autêntica do Espírito Santo em conformidade com a tradição da Igreja, a defesa da autoridade papal, a natureza da Igreja e a significado da reforma. No entanto, além de valorizar este momento como um lembrete para preservar os valores essenciais da vida da Igreja, devemos também usar esta oportunidade para unir nossos esforços para realizar a reforma plena solicitada pelo Concílio.

 

De fato, “Traditionis Custodes” é um apelo a todos os católicos, e a nós bispos que os servimos, a levar a sério a nossa responsabilidade de implementar as reformas com autenticidade para ajudar a Igreja na sua missão de “colocar o mundo moderno em contato com as energias perenes e vivificadoras do Evangelho”.

 

Em seu discurso de 2020, marcando o 50º aniversário do Missal Romano, que me ajudou na preparação deste artigo, o arcebispo Arthur Roche, agora prefeito da Congregação para o Culto Divino, destacou:

 

Cinquenta anos não é muito tempo na história da Igreja. A reforma aconteceu; continua a ser nosso dever eclesial implementar essa reforma com grande cuidado e profundo respeito. O 50º aniversário é um tempo para renovar essa comissão eclesial em todos os níveis da Igreja.

 

Ele então encerrou com o sábio conselho do Papa Bento XVI em sua carta aos bispos da Igreja Católica sobre a publicação do “Summorum Pontificum”, e eu também:

 

A garantia mais segura que há de o Missal de Paulo VI poder unir as comunidades paroquiais e ser amado por elas é celebrar com grande reverência em conformidade com as rubricas; isto torna visível a riqueza espiritual e a profundidade teológica deste Missal."

 

Traditionis Custodes” agora aumenta essa garantia.

 

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