Um lampejo de sinais trinitários

Foto: Wikimedia Commons

04 Março 2021

Adriana Zarri (1919-2010), escritora, teóloga, eremita fora de qualquer monaquismo institucionalizado, atravessou o século XX com um testemunho de vida cristã em que se encontraram uma tensão espiritual incandescente e uma elaboração teológica profunda e inovadora que levou a antecipar e interpretar com originalidade os grandes temas da renovação conciliar. Para a Rocca, uma assinatura de prestígio e fiel. De seus eremitérios em recantos afastados do interior do Piemonte, ela nunca se esquivou do debate eclesial e cultural, bem como das lutas políticas pelos direitos civis: com artigos, ensaios, romances, livros de teologia e espiritualidade e com intensas intervenções em programas de rádio e de televisão.

 

Mulher de fé e poesia, teóloga, a primeira a integrar a Direção da Associação Teológica Italiana ... A presença de Adriana Zarri no número "rosa", não poderia deixar de ser contemplada.

 

Amiga e colunista destacada da própria Rocca por longos períodos, além de palestrante dos Cursos de Estudos Cristãos da Pro Civitate e autora para a C.E., as edições da Cittadella, Adriana continua a ser uma figura para a qual olhar, pensando e vivendo o presente e o futuro da fé cristã, mesmo dez anos depois de sua passagem para a outra vida. Nem poderia ser esquecida – pois se propõe por si mesma - esta distante entrevista de rádio, datada de 11 de fevereiro de 1986, conservada em arquivos caóticos pessoais e resultante da transmissão ao vivo da RadioDueRai nas ondas regionais de Noi na Lombardia.

 

A entrevista com Adriana Zarri é da RadioDueRai, publicada por Rocca, 01-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

Qual é - Adriana - a imagem de Deus que temos? Qual é a imagem de Deus presente na sociedade num momento em que - e é estranho - se fala de uma crise de fé e também do renascimento do sagrado e de novas experiências de fé pelas quais muitos (poucos?) estariam em busca? Qual é a imagem de Deus de que se continua a falar, e talvez até nas conversas mais informais, e que depois, porém, olhando em volta, temos a impressão de que acaba se reduzindo a quase nada, a um rosto, a uma máscara de qual não sabe o que dizer? Um deus desconhecido ...

 

Devemos realmente assumir que o nosso é um Deus desconhecido. O Deus de quem falamos, de quem nós, pessoas de fé, ouvimos falar desde a infância, que nos apresentaram, inculcado o tempo todo, é em grande parte desconhecido não só porque é misterioso e transcendente, mas porque tenho a impressão de que a imagem que nós fazemos dele seja muito distante da verdadeira face de Deus; sempre que desse rosto possamos ter alguma ideia. E temos alguma ideia inclusive porque existe - nós acreditamos que existe - uma Revelação.

 

 

Os mais idosos entre nós estudaram os rudimentos da fé, quando íamos à catequese, quando crianças, sobre o antigo Catecismo de Pio X: um catecismo que dava de Deus esta precisa definição: “Deus é o Ser perfeitíssimo, Criador e Senhor do céu e da terra”. Devemos dizer de imediato com franqueza que este não é o Deus cristão: esta é uma definição filosófica, teosófica de Deus. É uma definição que serve para qualquer hipótese de Deus: serve para Júpiter, para Alá, para Javé ... É o conceito filosófico da divindade. Ainda não é o Deus cristão no sentido de que ainda não "passou por ele" a Revelação.

 

Efetivamente, o que a Revelação nos diz? Fala de Deus em termos plurais: Cristo fala-nos de si mesmo, fala-nos do Pai, fala-nos do Espírito. Ele fala sobre certas relações que existem entre essas pessoas. Aqui usamos o termo "pessoa" que se reporta a uma certa teologização, mesmo que saibamos bem que, como termo, pode ser contestado: também podemos dizer aspectos, faces, lados de Deus. Cristo nos fala dessas faces que interagem: "O pai e eu somos um só", "O que o Pai me disse", "Eu enviarei o Espírito" ... E há relações entre eles, um diálogo: um "compor-se" do próprio Deus.

 

 

Isso significa que Deus é um, evidentemente, mas Ele não está sozinho. A unidade de Deus é articulada: dentro dessa unidade existe uma pluralidade. E isso está obviamente repleto de consequências também para o nosso conceito de unidade: uma unidade monolítica, uma unidade nivelada não é a unidade de Deus. A unidade de Deus é articulada, é polimórfica, é pluralista.

 

Falamos muito de pluralismo e conferimos a esse termo justificativas, defesas de tipo psicológico, antropológico, lógico ...

 

 

Mas eu acredito que o fundamento mais profundo do pluralismo seja precisamente a pluralidade que é interna à unidade de Deus.

 

Aqui existe um problema - me parece - a ser colocado em relação à figura de Deus: um problema que se compõe em torno do nó da onipotência.

 

Aquele Deus que - você disse - não é o Deus cristão, talvez também seja difícil de amar, porque é um Deus que está além, como se estivesse fechado em seu poder. Como podemos medir a figura do Deus plural, cristão - o Deus trino, em suma - com a persiste concepção de onipotência que permeia a sua imagem atual? Creio que fomos nós que fizemos, construímos esta figura da onipotência, assim como exaltamos o tema da impassibilidade de Deus: o Deus impassível. E menciono a impassibilidade para chegar à onipotência porque os dois aspectos estão muito próximos. O Deus impassível é uma projeção histórica que lançamos sobre o conceito de Deus. Falamos da sua impassibilidade, mas dizemos que este Deus, em Cristo, sofreu a Paixão. Mas como pode um Deus impassível sofrer a Paixão? Ou talvez Cristo seja algo externo a Deus e, portanto, ele desceu à terra, fez o seu caminho e o Pai e o Espírito não estão envolvidos? Ou deveríamos ter aquela ideia - às vezes um tanto desagradável - do Pai que condena o Filho e fica "calmo e tranquilo", impassível olhando para ele? Podemos encontrar uma resposta a essas questões precisamente na teologia trinitária, que nos diz como as pessoas de Deus não apenas não são estranhas uma à outra e nem mesmo externas ou apenas próximas, mas internas uma à outra; portanto, a Paixão do Verbo, feito Cristo, é a Paixão do Pai e do Espírito.

 

 

Portanto, o nosso Deus não é impassível, mas sofre todos os nossos sofrimentos. O mesmo pode ser dito da onipotência. Deus - certamente - é onipotente, mas quis sofrer a impotência. Em Cristo, ele se revelou impotente.

 

Não porque não pudesse: o próprio Cristo disse que se quisesse poderia ter chamado os anjos para defendê-lo, mas porque não quis exercer a onipotência: deixou a onipotência naquele céu tão abstrato assim como deixou a sua divindade. É a kenosis na leitura de Paulo: o "esvaziamento". Cristo quase se esqueceu de sua divindade, de sua impassibilidade, de sua onipotência para se fazer homem "passível", "impotente". Evidentemente, isso nos dá um conceito diferente de Deus em comparação com aquele Deus tão impassível e perfeitíssimo e - como você dizia – não amável: não podemos nos apaixonar pela onipotência. Nós nos apaixonamos por um amor; talvez de um amor que sofre, que é impotente ...

 

 

No entanto, existem aqueles que, partindo dessa concepção de onipotência, portanto de uma forma de monoteísmo monolítico total, fundaram "coisas" muito mais terrenas, ou terrestres, sobre aquelas visões. Existem assim, consequências históricas, sociais e políticas daquela imagem de Deus. E são os absolutismos.

 

De fato. Já há algumas décadas Peterson escreveu um livro que muitas vezes lembramos hoje em dia: "O monoteísmo como problema político", referindo-se criticamente a Eusébio de Cesareia, um teólogo da corte, que teorizava como de um único Deus derivasse um único imperador, e que aquele Deus onipotente derivasse o poder, a quase onipotência, dos regimes absolutos. É evidente que um Deus tão monolítico sugere uma imagem de estado igualmente monolítica, rígida e autoritária, enquanto um Deus dialógico sugere uma imagem social mais dúctil, flexível ... mais livre. Em termos políticos atuais, poderíamos dizer mais democrática.

 

 

As feministas frequentemente nos acusam de adorar um Deus masculino porque adoramos um Deus Pai: eu sempre respondo que não é verdade que adoramos um Deus Pai: nós adoramos um Deus Pai, Filho e Espírito. E o Espírito, de acordo com a abordagem dos antigos Padres, podemos aproximá-lo da feminilidade. No entanto, essa crítica se prende e tem uma ampla gama de coincidências com a nossa religiosidade atual, porque de fato, no nível da religião de massa, a nossa é a religião do Pai Eterno: nós difundimos esse conceito muito monolítico, massivo e masculino de Deus (...) Na vida cotidiana, além disso, esse Pai Todo-poderoso e impassível torna-se o pai/senhor. E, dessa forma, aqueles que nos criticam por isso têm parcialmente razão em nível de análise sociológica.

 

Mas mesmo nesse nível, da religiosidade tradicional, cotidiana, há alguns outros elementos interessantes a serem observados.

 

 

O culto a Maria, tão difundido em nível popular, é uma espécie de transgressão, de rebeldia, de contestação à figura paterna e paternalista do Deus monólito. Nesse sentido, Maria seria o elemento feminino de Deus: é como se diante desse Deus masculino, o povo, inconscientemente, tivesse colocado ao lado dele uma quase/divindade feminina, sem saber que a dimensão feminina já existe em Deus, de forma não há necessidade de criar uma deusa que esteja ao lado dele porque Deus já tem dentro dele essa dimensão. Mas nós nos havíamos esquecido disso.

 

E, neste ponto, gostaria também de recuperar o discurso sobre os santos, que de outra forma corre o risco de ficar de lado. Podemos, com razão, tirar do culto aos santos a ênfase que assumiu no catolicismo (onde às vezes parece que há santos que são mais importantes do que Deus). Mas dentro deste culto podemos identificar a tentativa, sempre em nível inconsciente, de recuperar aquela variedade de faces de Deus que um monoteísmo monolítico mortificou. Na realidade, vemos essa face única de Deus, mesmo quase obliterada por uma onipotência que a mantém à distância de nós, mas já não vemos a infinita variedade das manifestações, dos atributos, as ações, das ajudas, das presenças de Deus. Tudo isso é recuperado de forma - claro - teologicamente não correta, mas popularmente compreensível no culto dos santos. E nesta recuperação, justamente com Maria, está presente também o rosto feminino de Deus.

 

 

Sempre defendi que a sexualidade tem bases ontológicas profundas; que os grandes valores do ser, do devir, da unidade, da multiplicidade, do dar e receber, sobre os quais o ser humano sempre se concentrou, passam pela sexualidade.

 

Não podemos dizer, como em certas formas de religiosidade pagãs, que existem divindades masculinas e femininas, mas podemos dizer que em Deus estão os valores fundamentais da sexualidade. Certamente Deus não é sexuado da maneira humana: isso é óbvio. Mas tem sua própria sexualidade metafísica - se assim quisermos - que depois se traduz em termos antropológicos na nossa sexualidade.

 

Este não é um discurso simples: difícil até de formular, mas fundamental. Além disso, neste eixo trinitário, há algo que possamos observar partindo de eventos mais simples que nos rodeiam?

 

Existem dois fatos importantes. Em primeiro lugar, há uma recuperação da dimensão trinitária justamente na teologia: citamos Peterson, podemos citar Moltmann e poderíamos citar o tema de um recente congresso da Associação Teológica ... Há um despertar da teologia trinitária. E isso é positivo, porque nós havíamos realmente esquecido disso! Mas um aspecto ainda mais interessante, por ser extra moenia, fora do redil, é a recuperação de certas dimensões trinitárias na cultura mais geral, que definimos como laica: há, nessa nova cultura que está se elaborando, aspectos que nós consideramos fundados no aspecto trinitário.

 

Podemos citar o pluralismo, o dinamismo social, a importância do relacionamento, da relação como fundamento da identificação; podemos lembrar a pericorese, uma bela palavra grega, mas um pouco especializada: significa que tudo é interno ao todo e não há partes separadas. Quando nós falamos de uma realidade falamos de toda a realidade que a compreende, assim como em Deus uma pessoa é toda interna à outra. Portanto, todos esses "presságios" - e deveríamos falar mais sobre eles porque o discurso exigiria maiores aprofundamentos - dizem que na cultura leiga, talvez sem seu conhecimento, existe um lampejo de sinais trinitários que devem ser trazidos à consciência.

 

Leia mais