As raízes de uma ética da responsabilidade. Artigo de Giannino Piana

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29 Outubro 2020

"A verdadeira atenção ao outro não pode se conformar em um vago sentimento interior, deve se traduzir na assunção de uma responsabilidade efetiva, que se traduz em atos destinados a mudar as condições daqueles que vivem em estado de marginalização. A ética da responsabilidade que se baseia no reconhecimento do outro como alguém que nos pertence e de quem devemos cuidar e nos preocupar prioritariamente, torna-se assim o verdadeiro antídoto à atitude de indiferença hoje difundida, porque não apenas nos confronta com o incontornável dever de assumir o outro, mas também nos obriga a buscar as modalidades através das quais alcançar o resultado desejado de forma concreta", escreve Giannino Piana, em artigo publicado por Esodo, de julho-setembro de 2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

A indiferença para com os outros, especialmente aqueles que precisam de atenção e solidariedade, denunciada com insistência pelo Papa Francisco como um dos piores males do nosso tempo, tem raízes remotas e profundas na consciência do ser humano e, no entanto, apresenta diferentes conotações e facetas, de acordo com os distintos contextos históricos e sociais. Ela, ao contrário da hostilidade que surge da rejeição ao outro considerado "inimigo" em virtude de ser agressor do próprio espaço vital, é antes constituída por um distanciamento do outro, por um desinteresse radical, até o desconhecimento da sua própria existência e do total desprezo por sua condição. As dinâmicas subjacentes à assunção dessa atitude podem ser rastreadas, como última fonte, na pulsão egocêntrica, que é uma das instâncias constitutivas do eu, que afunda suas raízes no instinto de autopreservação que marca a identidade profunda da pessoa. A dialética egoísmo-altruísmo é a estrutura de suporte que preside os desenvolvimentos da ação humana: os dois componentes coexistem, e o aparecimento da ética ocorre - como Durkheim observou - onde ocorre a passagem (aliás, nunca definitiva, mas sempre a ser renovada) do agir para si ao agir para o outro, isto é, o agir social.

 

 

A cultura individualista e seus desdobramentos. Essa estrutura originária, que constitui um dado antropológico incontornável, e na qual se reflete a ambivalência própria da condição humana, no entanto, vem de fato se modelando em formas distintas nos vários contextos históricos, graças à influência determinante da cultura e da organização social. Na origem da configuração atual, que apresenta aspectos qualitativos específicos e uma relevância quantitativa sem precedentes, existe portanto um conjunto de fatores que devem ser levados em consideração se quisermos apreender as dimensões que a indiferença assumiu hoje, e desmascarar suas motivações latentes, que muitas vezes são propostos como razão justificativa. Se olharmos para o mundo ocidental - aquele ao qual pertencemos - um fato que merece particular consideração é o processo de privatização, que se desenvolveu como um dos traços característicos da modernidade. O abandono da ideia de "natureza" e, mais radicalmente, a destituição da capacidade do "conceito" de interpretar a realidade - os conceitos assumem, com o advento do Nominalismo, o caráter de flatus vocis, de rótulos aplicados a partir de fora à realidade por razões meramente funcionais - introduzem uma concepção monádica do humano, a transformação do ser humano em um indivíduo separado de qualquer vínculo relacional e social originário. Essa perspectiva individualista não se limitou a afetar a vida econômica e política - nasceu dela o capitalismo - mas envolvia (e não poderia deixar de envolver) a consciência, despertando atitudes e comportamentos marcados pela necessidade de autoafirmação, e pela consideração do outro como um "estranho", como sujeito que nada tem a ver com a própria realização, mas com o qual é necessário negociar para evitar situações conflitantes que, de outra forma, resultariam mutuamente destrutivas. Concorreu para acentuar essa orientação o pessimismo antropológico no qual convergiam, ainda que com motivações diferentes, a cultura secular da época e a teologia protestante: basta pensar no homo homini lupus típico do estado de natureza de Hobbes, por um lado, e à corruptio humanae naturae de Lutero, pelo outro; em ambos os casos, a possibilidade de redenção só pode vir de fora, ou através do recurso a uma autoridade absoluta, ou através da intervenção sobrenatural da graça. Uma retomada (e ulterior acentuação) dessa tendência ocorreu, a partir do final dos anos 1970, graças ao avanço de uma sociedade de bem-estar e consumismo, que reduziu significativamente a tensão social, recolocando no centro a subjetividade em sua dimensão estritamente individual e abrindo caminho para a lógica do desejo ilimitado. A reação, em parte justificada, à falta de atenção à realização pessoal por parte de uma cultura que, ao privilegiar o interesse coletivo, projetava o sujeito para além de si mesmo, sacrificando - basta lembrar aqui o ideal perseguido pelo militante católico e por aquele comunista - o desejo legítimo de autoafirmação, determinou o início de uma forma de radical (e preocupante) privatização da vida em todas as suas articulações.

 

 

As migrações e renascimento do etnocentrismo. O retorno do sujeito, portanto, ocorreu (e acontece) em um clima de refluxo que, ao invés de favorecer o equilíbrio entre o pessoal e o social e entre o privado e o público, acelerou o processo de fechamento autorreferencial; processo, que além disso encontrou apoio importante no boom do fenômeno das migrações, devido ao desenvolvimento acelerado da globalização. A irrupção de pessoas provenientes de diferentes culturas e tradições religiosas, em particular do mundo islâmico - uma irrupção ampliada pela mídia que deu uma percepção distorcida como se fosse uma invasão imparável - alimentou uma sensação de desconforto e medo com efeitos profundos no terreno das relações interpessoais e sociais A dificuldade que, desde sempre ,se experimentou ao se confrontar com todas as formas de diversidade - da sexual à geracional e social - encontrou nesse contexto uma nova linfa e uma mais forte acentuação. A alteridade étnico-cultural fazia com que a pulsão etnocêntrica ressurgisse com força, um resquício do passado enraizado nas profundezas da consciência do ser humano ocidental. Nessa perspectiva, o outro não é considerado portador de outra tradição, mas sim representante de uma subcultura, que irrompe no nosso mundo de forma perturbadora, provocando situações conflituosas que ameaçam os equilíbrios da vida social e atentam contra o patrimônio de valores e costumes, que estão na base de nossa civilização.

 

O darwinismo social irrompe com prepotência, e a dialética “nós e os outros” faz-se sentir de forma explosiva. O critério de avaliação dos vários níveis de civilização é constituído pelo avanço tecnológico e o modelo de referência é aqueles estadunidense, com uma evidente desvalorização das culturas que não alcançaram tal meta, as quais são concebidas como totalmente inferiores e, consequentemente, discriminadas. Ou seja, ganha espaço a convicção (nem sempre explícita) de que se esteja na presença de sub-homens, de sujeitos a quem não deva reconhecer igual dignidade. A confirmação da afirmação dessa atitude parece evidente se considerarmos a escassa atenção dispensada pelos meios de informação pública a situações dramáticas provocadas por focos de guerra ou desastres naturais como os que afetam as populações do Terceiro Mundo ou a falta de reação de indignação diante ao número significativo de imigrantes que ensanguentaram o Mediterrâneo nas últimas duas décadas. A indiferença se entrelaça aqui com o renascimento de atitudes xenófobas e racistas que a tornam ainda mais grave, descambando na hostilidade e na inimizade e acentuando o fechamento sobre si mesmos e a desconfiança contra qualquer forma de relação. Estamos diante de uma espécie de habituação ao negativo, de entorpecimento das consciências com a assimilação daquela que Hannah Arendt definiu agudamente como a "banalidade do mal", um desinteresse pelo outro que tem, em última análise, suas raízes em uma concepção niilista da realidade.

 

 

Alteridade como elemento constitutivo da subjetividade. A possibilidade de sair dessa situação está ligada à recuperação de uma antropologia em que a alteridade represente um elemento constitutivo da subjetividade; à superação, em outras palavras, de uma visão do outro como externo (e, portanto, estranho) para concebê-lo como parte de nós, como alguém que nos pertence e de quem devemos, portanto, cuidar. Para favorecer essa passagem, uma contribuição decisiva foi dada por algumas correntes filosóficas do século XX - da fenomenologia ao existencialismo, do personalismo ao pensamento judaico - que, partindo da centralidade assumida pelo sujeito na modernidade - ao primado da categoria do ser, foi se substituindo aquela do sujeito - e não renegando-a, rejeitavam, no entanto, a sua identificação total com o indivíduo.

 

 

O conceito de "pessoa" que surge em tais correntes de pensamento, e que desde o início ocupou um lugar proeminente na tradição cristã, permite conjugar a singularidade e irrepetibilidade do sujeito com a sua dimensão relacional constitutiva - o sujeito é considerado sujeito de e em relação -, e, portanto, para destacar que o outro não é apenas aquele com quem somos obrigados a nos relacionar por motivos de proximidade física - talvez pela simples razão de evitar aquele conflito permanente a que Hobbes aludia - mas é aquele cuja relação nos enriquece, proporcionando-nos elementos essenciais de crescimento. Ele não é mais o "inimigo" de quem devemos nos defender, ou o estranho de quem podemos (devemos) nos interessar apenas por razões utilitárias; é, para todos os efeitos, parte de nós, fator integrante da nossa compreensão e da nossa realização; em suma, da constituição da nossa identidade. A ética sempre se baseou, explícita ou implicitamente, nesse pressuposto. A centralidade atribuída à virtude da justiça, tanto pela filosofia grega quanto pela tradição judaico-cristã, confirma a veracidade desse pressuposto. Na raiz dela está, de fato, a relação com o outro, como bem destacou Aristóteles, para quem a justiça tem a ver com a alteridade (iustitia est ad alterum), ou como defendem a “regra de ouro” e os mandamentos imperativo-negativos da segunda tábua do Decálogo. O "não fazer ao outro o que não gostaria que lhe fizessem" encontra expressão concreta nas várias indicações de valores contidas no Decálogo, onde, embora em termos negativos, são delineadas algumas instâncias éticas essenciais sobre as quais assentam as relações interpessoais e sociais: do respeito à vida e da dignidade de cada ser humano, ao direito à propriedade e à verdade.

 

 

O rosto do outro que nos questiona. Partindo dessas premissas (mas indo além), Emmanuel Levinas critica tanto a filosofia do ser, típica do classicismo, tanto quanto a filosofia do sujeito que tem caracterizado a modernidade, e alternativamente coloca o outro como último referente de sua filosofia, atribuindo à ética as conotações de "filosofia primeira". Para ele, adquire pleno sentido a partir da resposta incondicional que deve ser dada ao outro toda vez que seu rosto nos questiona, nos manifestando sua própria indigência. Portanto, a imperatividade moral não pode ser atribuída exclusivamente a uma forma de responsividade paritética, que tem na reciprocidade a modalidade concreta de seu exercício; comporta, como fator constitutivo e qualificante, a superação de tal patamar, em virtude da necessária irrupção da gratuidade e do dom. A responsabilidade, que não é apenas uma categoria da ética, mas se identifica, de alguma forma, com a própria ética, aqui recebe seu fundamento último. Não se vai do eu ao outro, com o perigo (não puramente hipotético) que o outro seja engolido pelo próprio horizonte de interpretação da realidade, até reduzi-lo a uma mera projeção de si; vai-se do outro ao eu, em pleno reconhecimento e em absoluto respeito pela sua diversidade, com a disponibilidade incondicional para satisfazer as suas necessidades. O direito do outro, que se torna um dever para nós, obriga-nos a realizar intervenções humanizadoras nas quais a justiça, que continua a constituir o critério fundamental de orientação da conduta humana, encontra o seu pleno cumprimento na caridade. Mas quem é o outro ao qual tal conduta deve se referir? A responsabilidade, que tem sua raiz no verbo latino respondere (dar resposta), implica, antes de mais nada, “responder a alguém”. Em um tempo de globalização como o atual, em que a interdependência entre os povos já se estende a todos os setores de convivência e em que as escolhas de cada um se refletem na vida de todos, não é mais possível identificar esse "alguém" com o próximo, entendido como o "vizinho", como aquele com quem podemos manter uma relação imediata, mas deve ser incluído também - como nos lembra Paul Ricoeur - o "terceiro", aquele com quem nunca entraremos em uma relação, mas que tem um rosto e um nome precisos e que só podemos alcançar com empenho “político”, ou seja, contribuindo para a salvaguarda e à promoção dos seus direitos, através da criação de estruturas justas. Ou ainda, e em sentido diacrônico, são também - como defende Hans Jonas - as gerações futuras, às quais deve ser entregue um mundo habitável.

 

 

O exercício da responsabilidade exige, por outro lado – e esta é a segunda figura da ética da responsabilidade, ligada ao pensamento clássico de Max Weber, que comporta o “responder por algo” - a adoção de medidas concretas, que intervenham de maneira eficaz sobre a realidade, transformando-a em nome da libertação humana. O que é necessário, portanto, é a capacidade de se medir com as consequências ou os efeitos das ações, saindo da abstração da mera convicção ideal, e verificando, a cada oportunidade, o peso das ações em vista da concretização do "bem possível" aqui e agora. A verdadeira atenção ao outro não pode se conformar em um vago sentimento interior, deve se traduzir na assunção de uma responsabilidade efetiva, que se traduz em atos destinados a mudar as condições daqueles que vivem em estado de marginalização. A ética da responsabilidade que se baseia no reconhecimento do outro como alguém que nos pertence e de quem devemos cuidar e nos preocupar prioritariamente, torna-se assim o verdadeiro antídoto à atitude de indiferença hoje difundida, porque não apenas nos confronta com o incontornável dever de assumir o outro, mas também nos obriga a buscar as modalidades através das quais alcançar o resultado desejado de forma concreta.

 

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