“Covid-19 chega para interromper a cadeia do capitalismo financeiro”. Entrevista especial com Franco Berardi

Imagem: Twitter/Reprodução

Por: João Vitor Santos | Tradução: Luisa Rabolini | 21 Mai 2020

"Para prolongar o crescimento do capital nos últimos cinquenta anos, foram destruídos os recursos do planeta e as energias nervosas da humanidade. Agora, o Covid chega para interromper a cadeia do capitalismo financeiro. A partir disso não se sairá com nenhuma reforma, com nenhuma reestruturação, não se sairá com o investimento de somas, ainda que vultuosas, de dinheiro. O dinheiro não tem mais nada a ver", afirma Franco Berardi, filósofo italiano, à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail. A tradução é de Luisa Rabolini.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como o senhor compreende a crise gerada pela pandemia global? Quais os desafios para a compreendermos para além de uma crise de saúde, social e financeira?

Franco Berardi - Eu acredito que a pandemia abre algo diferente de uma crise. A crise é uma interrupção temporária da ordem que leva a uma nova configuração da mesma ordem. A pandemia Covid-19 não é uma interrupção, uma desestruturação provisória da ordem capitalista. É algo muito mais radical, não só pela sua intrínseca gravidade sanitária, mas porque está chegando no final da era moderna, dominada pela perspectiva da expansão econômica, geográfica, demográfica. A expansão se esgotou há pelo menos cinquenta anos, desde que o Clube de Roma publicou o Relatório sobre os limites do crescimento, e quando o capitalismo entrou na fase destrutiva do neoliberalismo.

Para prolongar o crescimento do capital nos últimos cinquenta anos, foram destruídos os recursos do planeta e as energias nervosas da humanidade. Agora, o Covid chega para interromper a cadeia do capitalismo financeiro. A partir disso não se sairá com nenhuma reforma, com nenhuma reestruturação, não se sairá com o investimento de somas, ainda que vultuosas, de dinheiro. O dinheiro não tem mais nada a ver.

A história da expansão acabou e delineia-se a perspectiva da extinção. Só se soubermos sair do modelo de acumulação e reorganizar a sociedade em um princípio de frugalidade, de autonomia e de igualdade podemos superar o limiar apocalíptico da pandemia. Mas não me parece que a humanidade esteja culturalmente pronta para realizar essa passagem.

IHU On-Line - Por que a superação da crise causada pela covid-19 passa pelo não retorno à antiga normalidade, como o senhor tem argumentado em seus textos?

Franco Berardi - A normalidade é a extração dos recursos do planeta, como o petróleo, para transformá-los em venenos que devastam a atmosfera e sufocam os pulmões dos seres humanos, tornando-os vulneráveis ​​a agentes virais, como o coronavírus de hoje e o que virá amanhã. A normalidade é o aumento da população além dos limites da sustentabilidade, é a exploração da mente humana que se manifesta na forma de psicose generalizada. Essa normalidade, que podemos chamar de crescimento econômico, capitalismo financeiro ou aceleração do ritmo da circulação de informações e produção, produziu a catástrofe atual. Mas também produziu os incêndios nas florestas australiana, californiana, amazônica e siberiana, o derretimento das geleiras, a asfixia causada pela poluição das cidades indianas e chinesas. Também produziu guerra contra os migrantes e disseminou o nacionalismo e o racismo entre a população branca aterrorizada.

IHU On-Line - Na atual conjuntura global, estamos mais para “autoritarismo tecnocrático” ou para uma mudança global?

Franco Berardi - Acredito que a hipótese mais provável para o futuro seja a de formas tecno-totalitárias, como aquelas que estão em avançada experimentação na China, que se ligam à militarização sanitária em larga escala. Isso é provável, quase inevitável. Mas aprendemos que o inevitável geralmente não se realiza, porque o que acontece é o imprevisível. Existe uma possibilidade, embora remota, quase impensável, de transição para um equilíbrio pós-global, pós-monetário, radicalmente igualitário e libertário. A tecnologia possibilita essa transição para uma forma de comunismo high tech, um comunismo fundado no uso pleno de recursos intelectuais e técnico-científicos no interesse da comunidade. Essa possibilidade existe, e o presente apocalipse revela a urgência de tal possibilidade. Mas é uma possibilidade que requer uma subjetividade cultural e política que não consigo ver no momento.

IHU On-Line - Qual sua avaliação sobre a forma como a vigilância vem sendo usada em países asiáticos como forma de frear os contágios?

Franco Berardi - A cultura confucionista, como sabemos, moldou uma percepção diferente da relação entre indivíduo e comunidade. Acredito que isso também esteja ligado às diferentes formas de aculturação, da escrita, da transmissão de saber que no mundo oriental tem caracteres não individualistas, como Bjung-Chul Han recentemente argumentou em seus artigos, nos quais explica por que os países orientais são favorecidos comparado aos países ocidentais onde o individualismo domina.

Discursos sobre violações de direitos humanos na China não apreendem o ponto central: a China não é mais repressiva do que os Estados Unidos da América; é cultural, cognitiva e antropologicamente menos sensibilizada à individualização. E isso torna o povo chinês mais disposto a sofrer formas de controle total, tecno-totalitário. Talvez isso determine (parece-me que esteja determinando) um declínio no poder norte-americano e um aumento no poder econômico e político do sistema tecno-totalitário chinês. Mas é mais provável que esse desequilíbrio leve ao confronto militar e à guerra em breve.

IHU On-Line - O capitalismo se transformará depois dessa crise? No que consiste e como compreender tais transformações?

Franco Berardi - O capitalismo sempre muda, mas no final nunca pode mudar. Baseia-se na exploração ilimitada do trabalho humano, do saber coletivo e dos recursos físicos do planeta. Desempenhou sua função nos últimos quinhentos anos, possibilitou o enorme progresso da modernidade e o horror do colonialismo e da desigualdade.

Agora acabou. Só pode continuar acelerando a extinção do gênero humano, ou pelo menos (na melhor das hipóteses) a extinção do que conhecemos como civilização humana.

IHU On-Line - Em meio a toda crise, pandemia e desespero a consciência de classe despareceu? E que categorias emergem nesse contexto e podem nos ajudar a compreender o atual momento?

Franco Berardi - A fragilidade é a lição que poderia ajudar a sociedade a se libertar do sentimento de onipotência que gera o culto do crescimento econômico e da expansão. Mas a consciência da fragilidade não é suficiente, se não houver também consciência da possibilidade madura de uma sociedade igualitária. A consciência de classe é a consciência do poder do trabalho e da necessidade de emancipar o trabalho, ou melhor, a nossa atividade. Sem consciência de classe, ligada à consciência da fragilidade psicofísica do organismo humano, a extinção é a próxima aventura que enfrentaremos, mesmo que eu espere morrer a tempo de não a ver.

IHU On-Line - No que essa crise se difere das anteriores, como a de 2008, e o que muda na percepção das pessoas sobre o estado de crise?

Franco Berardi - A crise de 2008 foi uma crise totalmente interna ao ciclo econômico-financeiro.

Para remediar um desequilíbrio nas relações entre grandes agências financeiras e bancárias, o poder tirou enormes recursos da sociedade, empobreceu brutalmente a sociedade, os trabalhadores, as escolas públicas e o sistema de saúde, para transferir recursos para bancos e grandes agências financeiras.

Isso poderia ser feito e o fizeram. Foi o pior crime financeiro da história, arruinou países como a Grécia, destruiu o sistema de saúde, tornando a sociedade mais frágil e exposta ao ataque do vírus. Mas aquela não passou de uma crise da relação entre finanças e sociedade.

Agora, as finanças têm muito pouco a ver, e seu poder não pode mais fazer muito.

De fato, o apocalipse atual nasceu da explosão do agente biológico viral no circuito da informação, da psique coletiva e da economia, quando a infosfera já estava sobrecarregada, a psique coletiva no limite do colapso nervoso e a economia em um estado de inevitável estagnação.

O dinheiro não pode fazer muito contra a infecção, não pode fazer nada contra o colapso nervoso. O capitalismo terminou de dominar o mundo, não domina mais nada e o mundo está agora em um estado de caos. Somente uma cultura igualitária e frugal, apenas uma desaceleração do ritmo psíquico pode curar o organismo humano.

 

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