Crise sanitária e futuro do direito: estamos “navegando” no pot au noir

Foto: Agência Senado/Leopoldo Silva

30 Abril 2020

"Com efeito, a tensão liberdade versus segurança desponta como grande ponto de tensão relacionado ao tema das crises sanitárias, assim como quando pensado sob o signo do terror, a exigir respostas que, ao que tudo indica, não poderão ser dadas a partir das categorias jurídico-políticas tradicionais, as quais não conseguem responder a uma perspectiva dinâmica da globalização, na busca por processos que visem a humanizá-la, resistindo à desumanização, responsabilizando os atores e antecipando os riscos", escrevem Jose Luis Bolzan de Morais e Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth.

 

Jose Luis Bolzan de Morais é professor do PPGD/FDV, pesquisador Produtividade PQ/CNPQ e procurador do Estado do Rio Grande do Sul junto aos Tribunais Superiores –Brasília/DF.

Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth é professor da UNIJUÍ e da UNISINOS, coordenador do PPGD/UNIJUí e pesquisador Gaúcho - FAPERGS.

 

Eis o artigo.

 

Era carnaval no Brasil. Enquanto festejávamos, ouvíamos, como um eco distante, falar sobre uma cidade chinesa até então desconhecida da maioria dos brasileiros – Wuhan – na qual se desenvolvia um quadro de alarma social relacionado a uma doença desconhecida, causada por uma nova cepa do coronavírus que logo recebeu nome: COVID-19. Entre nós, as festas terminaram e, no clima da ressaca que caracteriza o retorno à “normalidade” pós-carnaval, fomos surpreendidos com o avanço dos casos de contaminação na Europa e, logo mais, aquele eco distante se tornou um retumbar dissonante – seria “histeria”? Não. Trata-se de uma pandemia, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março. A magnitude da proliferação da doença passou a justificar a utilização do termo, quando, hoje já se contam aos milhares as vítimas brasileiras e mais de centena de milhar no mundo, em números oficiais, altamente contraditórios.

 

Desde então, o mundo se depara com diferentes interpretações, possíveis explicações da pandemia e cenários de futuro. Fatalismos, teorias da conspiração, discursos de descrédito e de pânico circulam diariamente pelos principais meios de comunicação do Brasil e do mundo, sobretudo nas novas mídias sociais, escancarando, mais uma vez, a utilização de fake news como instrumento de desinformação. Leituras otimistas e pessimistas se digladiam.

 

Uma interpretação da situação envolvendo a epidemia no contexto italiano que gerou bastante repercussão foi a adotada por Giorgio Agamben [1], ao referir que a “invenção” de uma epidemia oferece um “pretexto ideal” para ampliar a utilização de medidas de exceção para além de todo limite, diante do esgotamento do discurso acerca dos riscos do “terrorismo”, questionando os motivos pelos quais a mídia e as autoridades públicas italianas estariam disseminando um discurso de pânico, responsável pelo estabelecimento de um “verdadeiro e próprio estado de exceção, com sérias limitações das movimentações e suspensão do funcionamento normal das condições de vida e de trabalho.” Agamben ainda destacou o fato de que forjar um “estado de medo” é uma prática recorrentemente utilizada pelos governos para, por meio da criação de situações de pânico coletivo, legitimar limitações de liberdade. Nesse sentido, uma “epidemia” ofereceria o “pretexto ideal” para essas limitações, configurando “um perverso círculo vicioso”, no qual “a limitação da liberdade imposta pelos governos é aceita em nome de um desejo de segurança que foi induzido pelos próprios governos que agora intervêm para satisfazê-lo.”

 

 

Quase que contemporaneamente, as análises de Slavoj Žižek [2] acerca das críticas liberais e da esquerda àquilo que denomina de “sonho erótico” do totalitarismo – representado pelo bloqueio total da Itália – questionam a suposta criação deliberada de um clima de pânico e alarma social por parte das instituições governamentais e do mercado, uma vez que essa difusão do medo coloca em xeque a própria capacidade dessas instituições de efetivamente contornarem o contexto de crise. Diante disso, o filósofo esloveno questiona se seria, realmente, do interesse do capital, bem como do poder estatal, o desencadeamento de uma crise econômica global com a finalidade – redentora – de revigorar seu reinado. O fato, segundo Žižek, é que essa interpretação dos fatos não possui o condão de fazer desaparecer a realidade da ameaça posta em cena no contexto global pelo novo coronavírus. O que se evidencia, ao fim e ao cabo, é um paradoxo: “não apertar as mãos e ficar isolado quando necessário é a forma atual de solidariedade”, a qual pode implicar, inclusive, “um novo impulso à vida do comunismo [3]”.

 

Para Žižek, a abordagem abrangente proposta pela OMS “deve ir muito além da maquinaria de governos isolados”, a fim de que possa “abranger a mobilização local de pessoas fora do controle estatal, bem como coordenação e colaboração internacionais fortes e eficientes”, apresentando-se como conteúdo semântico do que denomina “comunismo necessário”, ao constatar que “a presente crise demonstra claramente como a solidariedade e a cooperação globais são do interesse da sobrevivência de cada um de nós, que é a única coisa racionalmente egoísta a se fazer [4].” Além disso, os países precisam de confiança recíproca.

 

Já no campo do pensamento jurídico ressurgem perspectivas como aquela de Luigi Ferrajoli [5], para quem a pandemia do novo coronavírus confirma a necessidade e a urgência de consolidação de um “constitucionalismo planetário”. Essa ideia parte do pressuposto de que crises globais exigem respostas globais que tenham a mesma dimensão e eficácia. A “Constituição da Terra”, na ótica de Ferrajoli [6] deve prever “garantias e instituições à altura dos desafios globais e da proteção da vida de todos.” Com isso, se evitariam medidas esparsas como aquelas que têm sido adotadas pelos diferentes países europeus – colocando sob interrogação sua própria fórmula comunitária – em face da pandemia, que passam por diferentes graus de rigor. Na medida em que a pandemia de Covid-19 afeta a todos, abre-se uma oportunidade para que a OMS efetivamente seja uma instituição de garantia global da saúde, “dotada dos poderes e dos meios econômicos necessários para enfrentar a crise com medidas racionais e adequadas”, as quais não podem ser “condicionadas por interesses políticos ou econômicos contingentes, mas voltadas a garantir a vida de todos os seres humanos simplesmente por serem quem são.”

 

 

A partir desse cenário, para Ferrajoli a alternativa às crises globais radica no desenvolvimento de um constitucionalismo supranacional – planetário – com idoneidade para o enfrentamento e a solução de problemas globais, como uma “nova dimensão do constitucionalismo e do garantismo”. Como alerta, trata-se de “um constitucionalismo e um garantismo a longo prazo, além de global, para além da lógica individualista dos direitos e da miopia e do estreito localismo da política das democracias nacionais [7].” 

 

Ao abordar o tema da soberania no mundo moderno, Ferrajoli [8] já destacava a hipótese de um “totus orbis”, alertando para o fato de que não está pensando, em absoluto, em um improvável e não desejável governo mundial, mas sim em algo muito mais simples: “una efectiva limitación de la soberanía de los Estados mediante el establecimiento de garantías jurisdiccionales contra las violaciones de la paz en el exterior y de los derechos humanos en el interior” [9].

 

Essa proposta, ainda carente de solidificação teórica, parece não prescindir da ideia de compatibilização de liberdade e segurança, como tem tentado demonstrar Mireille Delmas-Marty [10] propondo-se a responder, particularmente em termos de direito internacional, como retomar o fôlego da sociedade, desencantada com a vida e vinculada ao medo (?).

 

Com efeito, a tensão liberdade versus segurança desponta como grande ponto de tensão relacionado ao tema das crises sanitárias, assim como quando pensado sob o signo do terror, a exigir respostas que, ao que tudo indica, não poderão ser dadas a partir das categorias jurídico-políticas tradicionais, as quais não conseguem responder a uma perspectiva dinâmica da globalização, na busca por processos que visem a humanizá-la, resistindo à desumanização, responsabilizando os atores e antecipando os riscos.

 

Os ventos contrários fazem parte da mundialização e são desafios para retomar o fôlego. Como uma “rosa dos ventos”, Delmas-Marty [11] associa a sua proposta a quatro “ventos dominantes”, que são a liberdade, a segurança, a competição e a cooperação. Ela observa, em relação a estes “ventos”, tensões do tipo: a) liberdade contra segurança; b) competição contra cooperação; c) inovação contra preservação e; d) exclusão contra integração. Essas tensões colocam, então, a seguinte questão: como reencontrar o equilíbrio, retomando o fôlego?

 

O fôlego, bem como o equilíbrio para que os ventos fluam em direção à compatibilidade é um desafio – talvez muito bem personificado pela pandemia do novo coronavírus. Isso porque os ventos contrários atuam em nível estatal e em nível das organizações e instituições internacionais. A metáfora da “rosa dos ventos”, então, serve para orientar e tentar entender a dinâmica da direção dos ventos – muitas vezes expressos em termos da tensão entre saúde e economia –, em busca de uma maior estabilidade na difícil tarefa da governança mundial.

 

Em relação ao tema do novo coronavírus, poderíamos pensar, a partir da metáfora da jurista francesa, em um verdadeiro “torvelinho” entre esses quatro ventos, cujo caráter devastador ainda é cedo para mensurar, mesmo que sinais apontem para um cenário catastrófico em vários níveis, e, pelo menos momentaneamente, a tensão entre liberdade e segurança estejam dominando o debate.

 

A respeito do “sopro dos ventos”, a hipótese de Delmas-Marty [12] é de que a globalização não deve ser suavizada com o triunfo de um só vento dominante: a segurança sem liberdade pode desencadear regimes totalitários; a liberdade sem segurança pode criar o caos; a competição sem cooperação pode conduzir a conflitos; e a cooperação sem competição é um fôlego frequentemente ineficaz. A inovação sem conservação pode levar a rupturas indesejadas, mas a conservação sem a inovação pode paralisar; exclusão sem integração gera conflito, mas a integração sem exclusão dificilmente logra êxito.

 

A conexão com outra obra de Delmas-Marty (2004), permitiria pensar em quatro princípios que, dentro da proposta do presente artigo, podem ser pensados como condição de possibilidade para dar concretude à proposta de Ferrajoli de uma “Constituição planetária”. Isso porque esses quatro princípios contribuem, na teoria de Delmas-Marty, para promover o esperado “equilíbrio entre os ventos”. São eles: 1) a segurança e a liberdade sendo guiadas pelo princípio de igual dignidade a todos os seres humanos; 2) a competição e cooperação sobre o princípio da solidariedade planetária; 3) a inovação e a conservação sobre o princípio da precaução-antecipação e; 4) a exclusão e integração sobre o princípio do pluralismo ordenado.

 

A começar pelo princípio da dignidade humana, pode-se encontrar uma condição de possibilidade para que estados de emergência não destruam ou coloquem em risco a liberdade dos cidadãos em nome da segurança. O princípio da solidariedade planetária é violado como reflexo da incoerência da globalização em não saber lidar com as mudanças dos ventos, deixando de reconhecer, por exemplo, a existência de bens comuns – como aqueles que a proposta de Ferrajoli acerca de uma “Constituição planetária” toma como ponto de partida. O princípio da precaução/antecipação propõe-se enquanto um equilíbrio entre a inovação e a conservação e pode ser associado ao desenvolvimento sustentável quando diz respeito às gerações futuras, dilatando o efeito das ações que tomamos como espécie humana do presente em relação às gerações futuras. Por fim, o princípio do pluralismo ordenado se posiciona para melhor guiar o espírito de exclusão e de integração, seja em escala nacional, regional ou global por uma perspectiva pluralista e universal que admita diversidades mas que permaneçam em compatibilidade aos objetivos comuns. Em se tratando das diversidades culturais, o princípio do pluralismo ordenado busca a aproximação cultural [13].

 

 

Assim, a crise sanitária, aqui sintetizada, a partir das ilustrações de Agamben e de Žižek, põem para o campo do Direito a necessidade de colocar em prática um pensamento crítico-reflexivo que nos permita buscar respostas novas para aquilo que agora nos une – a pandemia como expressão deste globalismo que muitos fantasiavam como fenômeno de sentido único e inexorável.

 

O reconhecimento da interdependência de todos os atores mundiais em prol de objetivos comuns – tal como o Diretor-Geral da OMS nos convoca a pensar alternativas à pandemia do novo coronavírus – é, indubitavelmente – diante da emergência sanitária atual, inexoravelmente –, um destino comum, mesmo que não tenhamos respostas prontas.

Nota dos autores

 

Pot au noir - Este texto retoma, parcialmente, nosso “Da exceção agambeniana à Constituição Planetária de Ferrajoli: desafios impostos pela pandemia do novo coronavírus às categorias jurídico-políticas tradicionais”. In: Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM. V. 15. N. 1. 2020.

 

Notas de referência

[1] AGAMBEN, Giorgio. O estado de exceção provocado por uma emergência imotivada. Tradução de Luisa Rabolini. Instituto Humanitas UNISINOS, 26 fev. 2020a. Disponível aqui. Acesso em: 18 mar. 2020.

[2] ŽIŽEK, Slavoj. Monitorar e punir? Sim, por favor! Tradução de Leonardo Mendonça. Tradutores proletários, 16 mar. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 18 mar. 2020.

[3] Para justificar o referido “novo impulso comunista”, Žižek recorre ao apelo do Diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, no sentido de que o combate exitoso à propagação do vírus passa pelo compromisso político, uma vez que uma pandemia somente pode ser enfrentada a partir de uma abordagem coletiva. Reportagem sobre o apelo do Diretor-geral da OMS mencionado por Žižek pode ser consultada aqui. Acesso em: 18 mar. 2020.

[4] A perspectiva de Slavoj Žižek acima analisada encontra eco em texto publicado na Revista Time por Yuval Noah Harari que advoga a ideia de que uma epidemia, para ser efetivamente arrostada, requer que a cidadania confie nos especialistas, nos cientistas, nas autoridades públicas e em uma atua;áo de confiança recíproca entre os países. HARARI, Yuval Noah. In the Battle Against Coronavirus, Humanity Lacks Leadership. Time, 15 mar. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 20 mar. 2020.

[5] FERRAJOLI, Luigi. O vírus põe a globalização de joelhos. Tradução de Moisés Sbardelotto. Instituto Humanitas UNISINOS, 18 mar. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 19 mar. 2020.

[6] FERRAJOLI, Luigi. O vírus põe a globalização de joelhos. Tradução de Moisés Sbardelotto. Instituto Humanitas UNISINOS, 18 mar. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 19 mar. 2020.

[7] FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2011 (Coleção Estado e Constituição. BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis (Dir.). n. 11.), p. 70.

[8] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías: la ley del más débil. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez e Andrea Greppi. Madri: Trotta, 2010, p. 152.

[9] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías: la ley del más débil. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez e Andrea Greppi. Madri: Trotta, 2010, p. 153.

[10] DELMAS-MARTY, Mireille. Aux quatre vents du monde: petit guide de navigation sur l’océan de la mondialisation. Paris: Éditions du Seuil, 2016.

[11] DELMAS-MARTY, Mireille. Aux quatre vents du monde: petit guide de navigation sur l’océan de la mondialisation. Paris: Éditions du Seuil, 2016.

[12] DELMAS-MARTY, Mireille. Aux quatre vents du monde: petit guide de navigation sur l’océan de la mondialisation. Paris: Éditions du Seuil, 2016, p. 81.

[13] DELMAS-MARTY, Mireille. Le Relatif et l'Universel: Les Forces Imaginantes du Droit, vol. I, Seuil, Paris, 2004.

 

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