Sonhos soberanistas? Pergunte ao dr. Freud

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04 Janeiro 2019

"O aparato psíquico, continua a nos advertir hoje a voz incômoda de Freud, é tendencialmente conservador, a sua pulsão primária é de segurança: rejeita a mudança, rejeita o mundo por ser estrangeiro e portador de estímulos ingovernáveis. Sua tendência não é para a abertura, mas para o fechamento", escreve Massimo Recalcati, professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 30-12-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

A neurociência gostaria de colocar o descobridor do inconsciente no porão. Mas o mundo de hoje, entre muros que são erguidos e sociedades que se fecham, nos mostram que as intuições do médico vienense são mais do que válidas: na cara de todos os lapsos.

Filho herético do positivismo vienense de Brucke e Meynert, Sigmund Freud, o pai da psicanálise, cometeu o imperdoável pecado de querer subverter os paradigmas da psicologia quantitativa, baseada em rígidas premissas neurofisiológicas cujo princípio parece ter sido restaurado hoje com todo o vigor pelas neurociências: o inconsciente é estruturado como um cérebro. No campo da cura do sofrimento psíquico, o triunfo contemporâneo do cientificismo em que se inspira a psicologia cognitivo-comportamental, assumiu um papel hegemônico confinando a crença no inconsciente freudiano (que não é estruturado como um cérebro, mas como um desejo) no catálogo das superstições irracionais destinadas a serem dissolvidas pelo avanço inexorável das descobertas neurofisiológicos relativas ao funcionamento da mente. Uma espécie de robótica pós-humana parece substituir as velhas e bizarras elucubrações freudianas. O sonho? O fantasma? O lapsus? Nada de relevante: simples efeitos de distúrbios do sono, da cognição ou da fala. O inconsciente? Uma ideia romântica desprovida de fundamentos científicos, um gargarejo bárbaro do século XX. Mas o cadáver de Freud já não esfriou há bastante tempo? Uma obra como a do filósofo francês Michel Onfray de alguns anos atrás, significativamente intitulada O crepúsculo de um ídolo. A fábula freudiana foi saudada pela cultura antipsicanalítica como o funeral (o enésimo) do pai da psicanálise. E mesmo assim, nunca como agora, o pensamento de Freud revela sua presença espectral em nosso destino.

Atualmente, o avanço incontrolável do cientificismo, de um pensamento da mente que gostaria de excluir o mal-entendido, a desidentidade, o fator perturbador do desejo do qual, ao contrário, o inconsciente freudiano testemunha a existência, mistura-se em um coquetel mortal com o avanço, igualmente inexorável, de um pensamento do homem e da comunidade que reavalia o solo, o muro, o sangue, a segregação, as raízes étnicas e a hipertrofia identitária. Mas é justamente esse duplo movimento que mostra a vitalidade crítica de algumas teses freudianas. Contra o cientificismo que reduz o rosto dos homens ao caráter anônimo do número, ao culto fetichista do dígito, ao domínio de curas protocolares, a lição de Freud lembra que o sujeito é uma singularidade absoluta e que a sua cura é irredutível a qualquer padrão. Em uma época em que a instrumentação técnico-científica parece ter ocupado todo espaço da cura, nos ensina a nunca esquecer a importância da palavra do sujeito, a centralidade de sua escuta. Por essa razão Lacan, nisso fiel discípulo de Freud, lembrava que a clínica psicanalítica é do "um para um" que exclui toda forma de padronização.

Sua segunda tese decisiva ressoa hoje com a força de uma advertência política. O ser humano não é uma criatura mansa, predisposta ao altruísmo. Especialmente quando acontece, como nos lembra a Psicologia das massas, que ele se encontre perdido e tateando no escuro, sem orientação. O medo, o pânico e a vulnerabilidade do corpo individual, como daquele social, favorecem a identificação vertical “de massa", a busca de um mestre com a vara que prometa um futuro brilhante. O aparato psíquico, continua a nos advertir hoje a voz incômoda de Freud, é tendencialmente conservador, a sua pulsão primária é de segurança: rejeita a mudança, rejeita o mundo por ser estrangeiro e portador de estímulos ingovernáveis. Sua tendência não é para a abertura, mas para o fechamento.

É por isso que o ódio, como Freud lembra, sempre precede o amor, assim como a rejeição sempre precede o acolhimento. No entanto, é justamente nessa difícil conjuntura que ele pensa a obra da Civilização: não ceder à sedução do ódio, não deixar prevalecer a orientação primitiva frente à conservação e à rejeição do estrangeiro, não favorecer a xenofobia da pulsão securitária.

A obra da Civilização é um trabalho onde a inclusão prevalece sobre a exclusão e a integração sobre a evacuação. É obra, individual e coletiva, que sabe conter através da força de Eros o impulso destrutivo que anima a pulsão securitária. É o caráter testamentário do iluminismo trágico de Freud: a razão crítica está do lado de Eros, é o único remédio humano para a força cega e aparentemente irresistível de Thanatos?

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