Eu, prêmio Nobel, digo a vocês: as desigualdades são excessivas e não são um fenômeno inevitável

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07 Novembro 2017

O fosso crescente entre ricos e pobres não é um fenômeno inevitável, mas o resultado de escolhas políticas cujo objetivo foi exatamente este: uma análise do economista Joseph Stiglitz.

Transcrevemos abaixo trechos da palestra que o economista prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz realizou em Bolonha em 04 de novembro, durante a Conferência Internacional sobre Desigualdades (02-04/11/17), promovida pela Fundação de pesquisa do Instituto Cattaneo.

O texto é publicado na revista italiana Espresso, 01-11-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.

Segundo Stiglitz, “não é por acaso que temos o sistema que temos, com as regras que existem. Aos "interesses particulares" agrada que seja dessa maneira. Talvez eu tenha exagerado um pouco, no passado, quando disse que os Estados Unidos tinham um governo de um por cento, para o um por cento e feito pelo um por cento, ou quando sugeri que passamos de uma democracia de uma-pessoa-um-voto para outra de um-dólar-um-voto. Mas é claro que algumas das políticas que foram seguidas foram altamente desvantajosas para a economia como um todo e criaram, ao mesmo tempo, mais desigualdades: houve apenas poucos vencedores e muitos vencidos”.


Eis o texto.

O mundo está cada vez mais desigual e agora está mais evidente que não só existem elevados níveis de desigualdade na maioria dos países, mas que essas disparidades estão aumentando. Hoje, são muito mais pronunciadas do que eram 30 ou 40 anos atrás. É também claro que não existem oportunidades iguais para todos: as expectativas de vida dos filhos de pais ricos e instruídos são muito melhores do que daqueles que têm pais pobres e menos escolarizados. Nos EUA, por exemplo, as perspectivas de um jovem, mesmo filho de uma família desfavorecida, que tem bom desempenho na escola são menos promissoras do que as de um filho de família abastada que, no entanto, negligencia o estudo.

Até algum tempo atrás, os economistas e outros cientistas sociais tentavam justificar essas desigualdades com a teoria da "produtividade marginal", segundo a qual a renda dos indivíduos corresponde à sua contribuição para a sociedade. No entanto, mesmo se olharmos apenas superficialmente a evidência dos fatos, veremos que nenhum dos indivíduos que deram as maiores contribuições para a nossa sociedade - por exemplo, através das invenções do laser ou do transistor, ou da descoberta do DNA - está entre os mais ricos. Por outro lado, veremos que entre os mais ricos, estão muitos que obtiveram o seu dinheiro graças à exploração de seu poder de mercado e de suas conexões políticas.

A situação atual dos EUA é um bom exemplo para ilustrar as principais questões de que estamos tratando. O rendimento médio, ajustado pela inflação, dos 90 por cento menos ricos da população ficou basicamente estagnado nos últimos 42 anos. No mesmo período, a renda média do 1% mais rico da população teve um aumento de 4,3 vezes. Essa mesma tendência verificou-se na maioria dos outros países, embora em menor grau. França, Países Baixos e Suécia são três países em que o aumento da cota do 1% mais rico foi mais limitada, enquanto a Grã-Bretanha teve um aumento quase igual ao dos Estados Unidos. A Itália está no meio.

A renda média - o valor central da distribuição - nos Estados Unidos manteve-se praticamente inalterada no último quarto de século. Ainda mais impressionante (como foi visto por reflexo na política estadunidense) é que a renda média de um trabalhador do sexo masculino, com um emprego em turno integral, está no mesmo nível de mais de quatro décadas atrás. E é cada vez mais difícil para esses trabalhadores "no meio" obter postos de trabalho em tempo integral, bem remunerados. Isso vale também para a Europa, como, por exemplo, na Espanha e em outros países, onde a renda média hoje é inferior à anterior do início da recente crise econômica. Pior ainda é o que aconteceu nos EUA aos trabalhadores com rendas mais baixas, para os quais o salário real está ainda hoje no nível de sessenta anos atrás. Para esses trabalhadores, no entanto, deve ser dito, as coisas são um pouco melhores na Europa, onde o salário mínimo é um pouco maior do que no passado.

Na maioria dos países avançados, nas últimas décadas aconteceram várias mudanças importantes na distribuição da renda: mais renda canalizada aos mais ricos, mais pessoas estão em situação de pobreza; a classe média vem se empobrecendo, vendo reduzir a sua importância relativa; a renda média manteve-se estagnada e a proporção de indivíduos com renda em torno àquele valor foi diminuindo. A classe média está desaparecendo, e um número cada vez maior de pessoas acaba no "final da fila" da distribuição.

A distribuição de renda é geralmente resumida com uma medida conhecida como coeficiente de Gini: este, na maioria dos países, vem se mantendo em aumento nos últimos anos, indicando um aumento na desigualdade. É verdade que existem alguns países que resistiram a essa tendência, como a França e a Noruega, enquanto outros, especialmente na América Latina, viram uma diminuição na desigualdade.

Portanto, há uma importante lição a ser tirada disso: as forças econômicas em jogo em todos os países avançados são similares, mas os resultados são significativamente diferentes. A explicação para essas diferenças é que países diferentes têm perseguido políticas diferentes. Podemos, portanto, dizer que a desigualdade foi uma escolha. Se os países tivessem buscado outras políticas, os resultados teriam sido diferentes. Aqueles que seguiram o modelo anglo-americano acabaram com maior disparidade.

Existem também outras dimensões da desigualdade, além da renda. No entanto, eu quero enfatizar que os países que escolheram ter maior desigualdade não tiveram melhores desempenhos econômicos no geral. Como assinalei no meu livro O preço da desigualdade, uma sociedade paga um preço elevado pela desigualdade, incluindo um desempenho econômico pior.

A renda é apenas uma dimensão da desigualdade. As outras dimensões são muito importantes, tais como o acesso à justiça ou a participação nas decisões políticas, que não são iguais para todos. Tais dimensões, no entanto, são difíceis de quantificar. Há, contudo, pelo menos duas outras dimensões que são fáceis de mensurar. Uma delas é a desigualdade na saúde, como resulta das diferenças na expectativa de vida. A própria natureza leva alguns indivíduos a viver mais tempo do que outros. Mas, se alguns indivíduos não têm acesso à assistência de saúde ou não conseguem obter uma alimentação adequada, então haverá ainda maiores disparidades na saúde. É motivo de grande preocupação, por exemplo, que entre as principais fontes de morbidade estejam as "doenças sociais", tais como o alcoolismo, as drogas e o suicídio.

Uma dimensão muito importante é a igualdade de oportunidades e aqui, é preciso dizer, os países avançados diferenciam-se radicalmente uns dos outros. A relação entre a igualdade de oportunidades e igualdade mostra que os países com maior disparidade de renda (medida pelo coeficiente de Gini) têm menor mobilidade entre as gerações - o que implica que os filhos têm menor oportunidade do que os pais. Os países com menor oportunidade incluem os Estados Unidos, o Reino Unido e a Itália; enquanto aqueles com as melhores oportunidades são os países escandinavos e o Canadá.

(Fonte: Revista Espresso)

As dinâmicas da desigualdade podem ser explicadas e não é verdade que as desigualdades não tenham explicação e que seja um resultado inevitável da operação das forças de mercado. As mudanças nessas dinâmicas podem ser descritas de forma simples em termos das forças que determinam a distribuição da renda e da riqueza.

Nos EUA, por exemplo, o sistema de ensino vê uma crescente segregação econômica geográfica que gera desigualdade nas oportunidades educacionais. Os estudos também mostram a elevada correlação entre oportunidades de educação e renda. A redução da progressividade do sistema de impostos sobre a renda (aliás, agora é regressivo) também aumenta a desigualdade da renda e da riqueza. Uma redução na taxa de poupança reduz a desigualdade; uma redução da dimensão familiar (média) aumenta a desigualdade. Um aumento da dispersão em uma das variáveis relevantes, incluindo os rendimentos em favor do trabalho ou do capital, aumenta o nível de desigualdade.

Alguns estudiosos também argumentaram que a mudança tecnológica premia mais o trabalho qualificado, aumentando o rendimento da instrução (mais se estuda, mais se ganha) e, consequentemente, a dispersão dos salários.

Cada vez mais importante são as rendas, inclusive as rendas monopolistas decorrentes da crescente concentração em muitas indústrias. O enfraquecimento das regras antitruste e as mudanças na tecnologia, bem como as mudanças na estrutura da economia para setores que são naturalmente menos competitivos – basta pensar nos gigantes de alta tecnologia - certamente têm contribuído para um aumento do "poder de mercado" médio na economia e, portanto, das rendas monopolistas.

Outras forças, também, levaram a um aumento das rendas mais altas: as mudanças nas práticas da corporate governance de muitas empresas permitiram aos executivos manter para si cotas crescentes da renda das empresas. O aumento da financeirização da economia, combinada com uma governance corporativa mais fraca e uma verdadeira generalização de turpitude moral, levaram a uma situação em que muitos, no setor financeiro, exploram o resto da economia.

Da mesma forma, o enfraquecimento do poder de barganha dos trabalhadores - resultado tanto de sindicatos mais fracos, como de mudanças no quadro jurídico e da globalização - levaram a uma redução da renda dos trabalhadores.

De modo mais geral, as regras do jogo foram alteradas para o benefício dos que estão no topo e em detrimento daqueles que estão embaixo, aumentando a desigualdade. Os mercados não existem em um vazio abstrato. Devem ser estruturados, regulados. Nos últimos 30-40 anos, as regras do jogo foram reescritas de forma a aumentar a desigualdade e, simultaneamente, enfraquecer a economia.

O efeito de tudo isso, é que se abriu um grande fosso entre o crescimento da produtividade e crescimento das remunerações do trabalho (levando a uma diminuição acentuada na participação dos rendimentos do trabalho na renda nacional). Antes de meados dos anos 1970, produtividade e remuneração moviam-se juntos, e isso aconteceu de fato em muitos países e setores por longos períodos de tempo, até ser considerado quase uma "lei" na economia. Depois, de repente, as coisas mudaram e não por causa de mudanças na tecnologia ou na qualidade da força de trabalho.

Aconteceram rápidas mudanças nas regras do jogo. Isso é o que aconteceu, nada mais: as regras do jogo mudaram em favor de alguns e em detrimento de muitos.

Que remédios podemos invocar? Precisamos reescrever as regras da economia de mercado, uma vez mais, fazer melhor para reduzir o poder de mercado monopolista, a exclusão e a discriminação; garantindo uma menor transmissão intergeracional dos benefícios adquiridos, incluindo uma menor transmissão intergeracional do capital humano e financeiro, em parte melhorando a educação pública, aumentando o imposto sobre herança e reintroduzindo uma maior progressividade dos impostos sobre a renda.

Não é por acaso que temos o sistema que temos, com as regras que existem. Aos "interesses particulares" agrada que seja dessa maneira. Talvez eu tenha exagerado um pouco, no passado, quando disse que os Estados Unidos tinham um governo de um por cento, para o um por cento e feito pelo um por cento, ou quando sugeri que passamos de uma democracia de uma-pessoa-um-voto para outra de um-dólar-um-voto. Mas é claro que algumas das políticas que foram seguidas foram altamente desvantajosas para a economia como um todo e criaram, ao mesmo tempo, mais desigualdades: houve apenas poucos vencedores e muitos vencidos.

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