Trump, o Islã e o cristianismo. Artigo de Alberto Melloni

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05 Fevereiro 2017

“A ordem de Trump viola ‘valores americanos’: mas também é um pedaço da ‘perversão do cristianismo’, sobre o qual escreveu Ivan Illich, com o qual se curva a espera messiânica da justiça à espera inerme em uma teologia distorcida, feita de tele-evangelismo, de ideologia da prosperidade, de sacralização da violência contra toda diversidade.”

A opinião é do historiador italiano Alberto Melloni, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII de Bolonha.

O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 02-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A ordem presidencial de Trump que impõe um filtro étnico-religioso às fronteiras propõe-se a discriminar o Islã e a violentar o cristianismo. A proibição étnico-religiosa, que se traduz politicamente a ideologia de Steve Bannon, restaura medos antigos: aqueles que limitavam a migração “da horda papista” (isto é, católica) no Texas do século XIX; ou aqueles que, nos tempos de Albert Einstein, impunham que se declarasse a própria raça (ele escreveu “humana”) na entrada nos Estados Unidos.

Superadas pelas leis sobre os direitos civis dos anos 1960, essas fobias retornam atualizadas, depois de terem estado longamente deste lado do Atlântico [na Europa] e não só em ambientes de extrema direita. No ano 2000, por exemplo, havia sido um cardeal, Giacomo Biffi, que teorizou que, entre os migrantes, se devia “preferir” as populações “católicas ou, ao menos, cristãs”: em era berlusconiana – quando uma Igreja já muito misericordiosa perdoava tudo, absolutamente tudo à direita – a surtida do purpurado dava uma contribuição para a desertificação política que, hoje, a Conferência Episcopal Italiana justamente deplora; mas não ia além de uma piscadela à xenofobia.

As discriminações agitadas pela Casa Branca, que incendeiam a oposição interna, ao contrário, vão além: fertilizam todos os terrorismos, incluindo aqueles que veem na Europa alvos fáceis. E desafiam a Igreja: precisamente porque propõem um flagrante abuso do nome “cristão”. A ordem presidencial não o enuncia assim, mas Reince Priebus explicou que as normas de Trump servem para privilegiar os imigrantes “cristãos”. Um gesto de cinismo impressionante, que expõe justamente as Igrejas do mundo árabe, que já pagaram um preço muito alto à guerra, a ainda mais retaliações.

Um gesto que ajuda a propaganda jihadista a apontar os cristãos do Oriente Médio como “cruzados” de uma guerra da qual foram vítimas, junto com muitos muçulmanos, uns e outros mártires in mysterio.

E, por fim, um gesto que testa a capacidade das Igrejas e do papa de reagir à técnica do “Shock Jock” descrita há dois dias por Vittorio Zucconi (aquela que faz com que se esqueça uma monstruosidade aplicando uma nova).

Além do grito de dor do patriarca dos caldeus, é evidente que as Igrejas peregrinas em Lampedusa e em Lesbos não podem aceitar que o nome “cristão” seja usado como instrumento de discriminação nem dentro da família dos filhos de Deus, nem dentro da família dos filhos de Abraão. Não podem se calar as Igrejas que já viram o que acontece quando se hesita diante do “Novo Verbo” (Primo Levi) da discriminação.

“Somos todos espiritualmente semitas”, disse Pio XI, reagindo à pregação racista em setembro de 1938. Os filhos de Abraão de hoje estão ligados “espiritualmente”, e em uma situação não menos grave. Não são todos “monoteístas” do mesmo modo; não tiram as mesmas conclusões políticas das próprias Escrituras; não são ingênuos diante das guerras santas que infligiram e sofreram. Mas têm na fé de Abraão um vínculo misterioso, que não pode ser dado como alimento nem aos terroristas jihadistas que adoram o sangue, nem ao cristianismo “pentecostaloide” que adora o medo.

A ordem de Trump viola “valores americanos”: mas também é um pedaço da “perversão do cristianismo”, sobre o qual escreveu Ivan Illich, com o qual se curva a espera messiânica da justiça à espera inerme em uma teologia distorcida, feita de tele-evangelismo, de ideologia da prosperidade, de sacralização da violência contra toda diversidade.

Isso pede que os “cristãos” se digam todos espiritualmente filhos de Abraão. Especialmente os cristãos desta Europa à qual a história atribui, no ponto mais baixo do seu espírito unitário, a defesa dos valores que ela aprendeu com dificuldade.

Há um conselho que reúne os episcopados católicos do continente, agora presidido pelo cardeal Angelo Bagnasco, de Gênova. Há um órgão ecumênico, a KEK [Conferência das Igrejas Europeias], que representa todas as Igrejas cristãs da Europa. Há um C9 ao lado do papa, que deve lhe dar um “auxílio” permanente ad gubernandam ecclesiam universalem. Há os patriarcas do Oriente e do Ocidente. Todos capazes de propor palavras e gestos de penitência, em comunhão com aqueles que são discriminados, de romper um silêncio que cheira a covardias antigas. Antes que o sangue escorra, ou que escorra ainda mais.

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