Torá, "luz de todos os mundos". Artigo de Pietro Citati

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20 Setembro 2016

"Neste tempo de decadência, não podemos deixar de observar e de colocar em prática a Torá – com infinita precisão e atenção, que são hoje a nossa salvação. A Torá é a luz de todos os mundos, é o seu impulso vital. Se o universo ficasse sem ela, mundos inteiros voltariam ao caos inicial."

A análise é do ensaísta e crítico literário italiano Pietro Citati, considerado um dos mais respeitados literatos contemporâneos, em artigo para o jornal Corriere della Sera, 16-09-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Hajjim nasceu em Volozhin, na Lituânia, em 1759: até a sua morte, em 1821, foi o rabino do vilarejo. Fundou uma casa de estudos, que se tornaria o modelo de todas as academias talmúdicas do século XIX. Escreveu apenas um livro, L’anima della vita (Ed. Qiqajon, Bose, editado por Alberto Mello), que foi publicado postumamente em 1824. Combateu os excessos da mística chassídica, desenvolvendo a leitura do Zohar e dos escritos de Izchak Luria.

Ao contrário do Deus do Gênesis, no momento da criação, o Deus de Luria se contraiu, se retirou, se limitou, se fechou na própria profundeza escura, renunciando a uma parte da sua própria extensão. No espaço abandonado, deixou um resíduo da luz divina, o reshimu semelhante às gotas de óleo ou de vinho que ficam em uma garrafa esvaziada.

Com a violenta concentração em si mesmo, Ele quis se conhecer na própria profundeza inatingível. Esse gesto soberano de contração deu origem ao universo. Se Deus não tivesse se concentrado, o universo nunca teria nascido: Ele quis que nós fôssemos formados pela mesma substância divina. Portanto, o mundo é duplo: totalmente cheio de Deus e vazio d’Ele; decorrente diretamente d’Ele e abandonado por Ele; lugar de alegria e de exílio.

Depois de ter se concentrado em si mesmo, Deus se expandiu e se manifestou, inspirado pela força do amor, e lançou no espaço a luz das suas emanações, as dez Sefirot. Essa luz era muito cegante para que o espaço pudesse suportá-la; e foi contida e enfaixada em dez vasos. Nem todos os vasos eram idênticos. Os três primeiros eram puros e perfeitos: os outros, de espécies inferiores.

A força da pura luz divina não suportada qualquer ofuscamento. Os vasos das sete Sefirot inferiores se quebraram; e as centelhas divinas se espalharam por todos os cantos da criação – nos homens, nos animais, nos lagos, nos rios, nas pedras, nas plantas venenosas. As centelhas estavam por toda parte, mas exiladas, muitas vezes prisioneiras das potências demoníacas.

Tudo foi manchado, despedaçado, quebrado. A árvore da vida se separou da árvore do conhecimento: o elemento masculino, do feminino, a Torá foi dilacerada em 600 mil papéis. Por um lado, a ruptura dos vasos fazia parte do providencial processo de emanação e de revelação de Deus: por outro, as centelhas se misturaram e se contaminaram.

Assim, o judeu foi atormentado por sentimentos opostos. Se Deus tinha sido humilhado, como não estar cheio de angústia? Mas, se as centelhas divinas eram onipresentes, como não ser possuído por lágrimas muito profundas de alegria? O fiel judeu tinha que buscar libertar as centelhas que caíram prisioneiras, restaurando a unidade da luz perdida. Todos os seus gestos cotidianos mais humildes eram gestos de redenção. Quando trabalhava com amor escrupuloso nas pedras, ele libertava as centelhas das pedras: quando, sentado na sua mesa de sapateiro, lidava com o couro com precisão, ele libertava as centelhas prisioneiras do couro.

Em "A alma da vida", Deus é corpóreo: se o filósofo Maimônides tinha negado qualquer antropomorfismo de Deus, a mística talmúdica e chassídica exaltam a sua corporeidade: Ele tem olhos, ouvidos, boca, braços, mãos – sem medida e sem limites. Como dizia o Zohar, todos os mundos, superiores e inferiores, estão englobados uns nos outros, uns dentro dos outros. Todas as luzes estão incluídas umas nas outras e se iluminam reciprocamente; todos os lugares estão ligados uns aos outros, "como os anéis de uma corrente".

Hajjm enfatiza a influência do mundo superior sobre o inferior: o baixo é iluminado pelo alto, mas, ao mesmo tempo, ele descreve alegremente a influência do baixo sobre o alto: o homem é uma criatura inferior, mas a sua palavra influencie e decide os mundos superiores. O homem é a última e a suprema obra de Deus: "uma criatura maravilhosa", que recapitula todas as hierarquias, os preceitos, os esplendores da luz mais pura, os mundos e os palácios superiores.

Na tradição judaica de Luria, o homem é uma figura grandiosa: muito mais do que na tradição cristã, onde o pecado de Adão é constantemente recordado. Os comentaristas da Torá discutem se os anjos ou os homens são maiores. De acordo com alguns deles, o homem, sendo de natureza corporal, é inferior aos anjos, que são espíritos puros e percebem admiravelmente as coisas divinas.

Segundo outros, os anjos são defeituosos: justamente por serem desprovidos de um corpo, não pode colocar em prática toda a Torá – que precisa do corpo. Se a percepção do divino é mais pura nos anjos, os homens podem se unir e elevar as potências e as luzes, resumindo em si mesmos todos os mundos, como os anjos não podem fazer. O homem é mais compreensivo, total e móvel do que os anjos. Como dizia o Zohar, "nenhuma palavra do homem, nem mesmo um som, é em vão. Cada palavra que sai da boca do homem sobe aos mundos superiores, despertando forças superiores".

Como recomenda a tradição de Israel, Hajjm repete que devemos estudar a Torá e os seus 613 preceitos com uma espécie de inteligência suplementar e superior, revelando os seus segredos – isto é, toda a Torá, porque a Torá é um imenso segredo. Hoje, em Israel e nos países da Europa, a profecia desapareceu: a profecia que nos permitia inovar e até mesmo suspender os preceitos de Deus.

Neste tempo de decadência, não podemos deixar de observar e de colocar em prática a Torá – com infinita precisão e atenção, que são hoje a nossa salvação. A Torá é a luz de todos os mundos, é o seu impulso vital. Se o universo ficasse sem ela, mundos inteiros voltariam ao caos inicial.

Deus, a Torá e Israel estão indissoluvelmente ligados e dependem uns dos outros.

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