Amar a Deus e ao próximo: um só amor!

Foto: Flickr CC/Lorrie Mcclanahan

29 Outubro 2021

 

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 31º Domingo do Tempo Comum, 31 de outubro de 2021 (Marcos 12,28b-34). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Um escriba que acabou de escutar a discussão de Jesus com os saduceus sobre a ressurreição dos mortos (cf. Mc 12,18-27) e apreciou a sua sabedoria aproxima-se dele para lhe perguntar: “Qual é o primeiro de todos os mandamentos?”. Uma pergunta que nasce de uma exigência muito difundida no ambiente religioso do tempo de Jesus: fazer uma síntese dos preceitos de Deus presentes na Torá (613, segundo o Talmude babilônico), de modo a se chegar ao essencial, àquilo que constitui a intenção profunda do coração de Deus, da sua oferta de vida e de sentido para toda a humanidade.

Jesus responde citando como primeiro mandamento o início do Shema’ Jisra’el (cf. Dt 6,4-9), ou seja, a grande profissão de fé no Senhor Deus repetida três vezes por dia pelo fiel judeu, central em toda a tradição rabínica: “Escuta, Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Portanto, amarás ao Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças” (Dt 6,4-5).

Essa oração revela que a escuta tem um primado absoluto, é a modalidade de relação decisiva do ser humano com Deus: a escuta obediente é o fundamento do amor. De fato, as palavras do Deuteronômio retomadas por Jesus parecem até traçar um movimento que, a partir da escuta (“Escuta, Israel”), leva à fé (“O Senhor é o nosso Deus”), da fé ao conhecimento (“O Senhor é um só”) e do conhecimento ao amor (“Amarás o Senhor”)...

Ao Deus que nos ama com um amor eterno (cf. Jr 31,3), que nos ama por primeiro gratuitamente (cf. 1Jo 4,19), responde-se com um amor livre e pleno de gratidão, que se enraíza na escuta obediente da sua Palavra, fonte da fé. Confiar em Deus significa confiar no seu amor, na sua capacidade de amar, no seu ser amor (cf. 1Jo 4,8.16). Isto significa crer em Deus e, portanto, também, inseparavelmente, amá-lo.

Aqui podemos e devemos aprofundar a nossa meditação, perguntando-nos o que significa amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças. Que amor é esse por um tu invisível, “três vezes santo” (cf. Is 6,3), isto é, outro, distinto de quem ama?

Na tradição cristã, encontramos pelo menos duas respostas diferentes para tal questão. Em Agostinho e em uma longa tradição espiritual por trás dele, o amor a Deus por parte do fiel é um amor de desejo, um sentimento, uma dinâmica pela qual o fiel vai em busca do amor e, portanto, ama o amor. A linguagem desse amor é muitas vezes aquela presente no Saltério:

“Eu te amo, Senhor, minha força, Senhor, minha rocha, minha defesa, meu libertador” (Sl 18,2-3).

“Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo” (Sl 42,3).

“A minha alma tem sede de ti, por ti, meu Deus, a minha carne anseia” (Sl 63,2).

Sim, Deus é objeto de amor por parte do ser humano, porque é o “tu” que, com o seu amor previdente, desperta o amor do fiel como resposta; o amor por Deus pode ser um amor mais forte do que o amor alimentado por si mesmo ou por outra pessoa.

Mas atenção: não se trata de um amor totalitário que exclui outros amores, mas é um amor apaixonado, um amor em que não há temor (cf. 1Jo 4,18). Em suma, um amor que supera e reorienta todos os outros amores.

Mas, na espiritualidade cristã, também está presente outra interpretação do amor por Deus. É aquela que lê no amor por Deus um amor obediente, no sentido de um amor que nasce da escuta (ob-audire), de um amor que ele responde “amém” à palavra do Senhor e ao próprio amor do Senhor sempre previdente. É um amor não de desejo, de busca, de nostalgia, mas de adesão; é um amor com o qual o fiel tenta realizar plenamente a vontade de Deus, tenta viver como o seu Senhor quer e, assim, mostra que o ama.

Há também palavras de Jesus a esse respeito: “Se vocês me amam, observarão os meus mandamentos” (Jo 14,15); “Se alguém me ama, observará a minha palavra” (Jo 14,23). E, ainda, na Primeira Carta de João: “Este é o amor de Deus, observar os seus mandamentos” (1Jo 5,3).

Nesta segunda perspectiva, a ênfase, portanto, recai sobre o amor ao próximo ordenado por Deus: realizar esse mandamento, síntese de toda a Lei e os Profetas (cf. Rm 13,10; Gl 5,14), significa amar a Deus. Portanto, amar a Deus é sobretudo amar o outro como Deus o ama, porque – como o discípulo amado esclareceu de uma vez por todas – “quem não ama o próprio irmão que vê não pode amar a Deus que não vê” (1Jo 4,20).

É nesse sentido que podemos compreender a decisiva inovação realizada por Jesus, que aproxima o mandamento do amor a Deus ao do amor ao próximo: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19,18). A inovação consiste precisamente na combinação dessas duas passagens da Torá, algo sem paralelo na literatura judaica antiga, frequentemente retomado, por sua vez, pelos sucessivos escritos cristãos.

Basta pensar no trecho de um antiquíssimo escrito cristão das origens, a Didaquê: “Este é o caminho da vida: primeiro, ame a Deus que o criou; segundo, ame a seu próximo como a si mesmo. Não faça ao outro aquilo que você não quer que façam a você” (1,2).

É importante refletir sobre a novidade no nível dos conteúdos da fé que essa aproximação de passagens bíblicas traz consigo. Não há dúvida de que Jesus estabelece uma hierarquia específica entre os dois preceitos, colocando o amor a Deus acima de tudo. Ao mesmo tempo, porém, voltando à vontade do Legislador, ele discerne que o amor a Deus e ao próximo estão em estreita conexão entre si: a Lei e os Profetas se resumem e dependem do amor a Deus e ao próximo, não um sem o outro.

Não é por acaso que, na versão de Mateus, o segundo mandamento é definido de forma semelhante ao primeiro (cf. Mt 22,39), enquanto o evangelista Lucas os une até em um único grande mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus (...) e o teu próximo” (Lc 10,27).

Em outras palavras, se é verdade que todo o ser humano é criado por Deus à sua imagem (cf. Gn 1,26-27), não é possível pretender amar a Deus e, ao mesmo tempo, desprezar a sua imagem na terra: eis a profunda unificação do pensar, falar e agir à qual Jesus convida. Uma compreensão sumária das santas Escrituras, portanto, leva Jesus – cujo parecer é compartilhado pelo seu interlocutor – a afirmar que o ser humano completo, o ser humano “não distante do reino de Deus” é aquele que, amando a Deus com todo o coração, com toda a mente e com todas as forças, sabe amar o próximo como a si mesmo. E o próximo é aquele de quem nos fazemos próximos, vizinhos, como Jesus afirmou ao comentar a parábola do samaritano (cf. Lc 10,36-37).

No quarto Evangelho, quando ele dá o último e definitivo mandamento, que por isso se chama “mandamento novo”, Jesus dá mais um passo: “Amem-se uns aos outros como eu lhes amei” (Jo 13,34; 15,12), ou seja, sem medida, “até ao fim” (Jo 13,1).

Nessa ousada síntese, Jesus sequer explicitou o pedido de amar a Deus, porque sabia muito bem que, quando os seres humanos se amam na verdade, quando se amam como ele os amou, ao fazer isso, eles já vivem o amor de Deus. É por isso que o apóstolo João, que no prólogo do evangelho escreveu: “Ninguém jamais viu a Deus, mas o Filho unigênito o narrou” (Jo 1,18), é o mesmo que afirma na sua primeira carta: “Ninguém jamais viu Deus, mas, se nos amamos uns aos outros, Deus habita em nós, e o seu amor se realiza plenamente entre nós” (1Jo 4,12).

Amando os outros, nós também amamos a Deus e temos um conhecimento autêntico dele, enquanto quem diz que crê em Deus sem amar os irmãos é um iludido e um mentiroso (cf. 1Jo 4,20-21)!

Jesus viveu a sua existência inteira como uma obra-prima de amor e nisso cumpriu plenamente a vontade de Deus, foi “o homem segundo o coração de Deus”. Ao fazer isso, traçou um caminho bem específico para quem quer segui-lo, simplificando ao extremo o caminho para ir a Deus: o mandamento que deve orientar a vida do cristão é o do amor por todos, até pelos inimigos (Mt 5,44).

Sim, o amor concreto e cotidiano pelos irmãos e irmãs é o sinal a partir do qual se reconhecem os discípulos de Jesus Cristo, os cristãos, como o próprio Jesus indicou de uma vez por todas: “A partir disto todos saberão que vocês são meus discípulos: se vocês se amarem uns aos outros” (Jo 13,35).

 

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