A transparência é uma cura geral? A crise dos abusos e os riscos da revolução eclesial. Artigo de Massimo Faggioli

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10 Agosto 2018

“Este é um tempo de desolação para a Igreja, como reconheceu o Papa Francisco em janeiro passado, quando estava em Santiago do Chile", escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor de Teologia e Estudos Religiosos na Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado por Commonweal, 08-08-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Segundo ele, "a solução certamente não está em manter o status quo. O problema é que o “iconoclasmo eclesiológico” produzido pelo escândalo dos abusos sexuais, junto com outros abusos de poder e escândalos financeiros, poderia acabar fazendo a Igreja funcionar mais como uma corporação. Essa é uma tentação particularmente poderosa para a Igreja nos países desenvolvidos, onde as corporações se tornaram o modelo para todos os outros tipos de instituições, incluindo o Estado".

Eis o texto.

A história da Igreja é uma história de santos e pecadores. Ultimamente, a parte pecadora certamente está mais visível do que a santa. No período que antecedeu o grande ano jubilar de 2000, João Paulo II pediu desculpas oficialmente pelos pecados da Igreja, e isso parece ter tido um impacto sobre a opinião pública. Mas tudo isso parece ser algo de muito tempo atrás agora (o mesmo vale para a série de beatificações e canonizações sob João Paulo II).

Este é um tempo de desolação para a Igreja, como reconheceu o Papa Francisco em janeiro passado, quando estava em Santiago do Chile. E isso foi antes de saber que a sua viagem ao Chile seria o começo do ano mais difícil de seu pontificado.

Em sua longa história, a Igreja Católica suportou muitos períodos em que a sua pecaminosidade tornou-se muito mais evidente que a sua santidade. Pecados cometidos por homens em posições de poder na Igreja – especialmente simonia, nepotismo e várias formas de corrupção – levaram a escândalos e a reformas.

Agora está claro para muitos que o escândalo do abuso sexual clerical é a crise mais séria que a Igreja já enfrentou desde a Reforma. Entre os católicos, a reputação de Roma, dos bispos e do sistema eclesiástico de governança está em seu nível mais baixo em séculos. A magnitude dessa crise deve ser entendida em termos de como ela perturbou não apenas as operações da Igreja institucional, mas também o modo como os católicos comuns pensam a Igreja.

O livro mais importante do século passado sobre a reforma da Igreja, “Verdadeira e falsa reforma”, de Yves Congar, pode nos ajudar a dar alguma perspectiva, até porque o próprio Papa Francisco parece ter uma eclesiologia muito congariana.

Congar assumiu – assim como muitos teólogos católicos do século XX – que a falta de santidade pessoal por parte do alto clero já não era um problema tão sério quanto nos séculos anteriores. O verdadeiro problema que a reforma da Igreja tinha que resolver, de acordo com Congar, era o que ele chamou de área de “erros sócio-históricos” – ideias e atitudes remanescentes da Cristandade que a Igreja tinha que abandonar.

Em 1950, Congar escreveu: “Não se trata de reformar abusos – dificilmente há algum a ser reformado. Trata-se, antes, de uma questão de renovar estruturas”.

As revelações de abusos sexuais clericais revelaram uma situação diferente, que questiona tanto a santidade pessoal do clero quanto a inadequação das atuais estruturas da Igreja. Como resultado, a conversa sobre a reforma da Igreja não é mais apenas sobre inércia institucional. É também sobre corrupção moral.

Católicos suspeitos em relação ao Vaticano II acreditam que a corrupção moral foi causada pelo aggiornamento teológico das últimas décadas: a Igreja se abriu ao mundo apenas para ser infectada pelos seus males. Isso mostra que qualquer interpretação da crise atual e de qualquer proposta de reforma estará enraizada em um entendimento particular das reformas conciliares – isto é, se a pessoa acredita que elas foram longe demais ou não foram longe o suficiente.

É irônico que os teólogos do Vaticano II sejam frequentemente acusados de serem otimistas demais quanto às possibilidades de reforma da Igreja; os verdadeiros otimistas, na verdade, eram aqueles que marginalizavam esses teólogos em favor de um status quo eclesiástico que protegia os abusadores.

Uma segunda lacuna entre Congar e as discussões de hoje sobre a reforma da Igreja tem a ver com o que poderíamos chamar de funcionalismo ou tecnocracia – a ideia de que há um conjunto “tamanho único” de “melhores práticas” que se aplica a todas as organizações, incluindo a Igreja. No século XX, a eclesiologia católica recuperou a dimensão mística, sacramental e invisível da Igreja que havia sido diminuída após o Concílio de Trento. Mas o Vaticano II também importou da cultura secular alguns elementos da tecnocracia, no que dizia respeito à governança da Igreja (por exemplo, o limite de idade para os bispos). Essa não foi uma questão liberais versus conservadores no Vaticano II, nem é hoje.

Mas Francisco é muito mais cético quanto ao funcionalismo eclesiológico do que muitos leigos, sejam liberais ou conservadores. É por isso que a sua eclesiologia congariana – e a eclesiologia episcopal do Vaticano II, mais em geral – são submetidas a um teste muito difícil pelo escândalo dos abusos sexuais. Sua concepção de reforma não é primordialmente processual, mas são precisamente novos procedimentos que muitos reformistas leigos estão exigindo atualmente.

Reformas radicais certamente são urgentes e necessárias. Podemos estar caminhando rumo a uma revolução na eclesiologia católica: um novo período pós-Vaticano II. É impressionante que a crise dos abusos parece estar levando os católicos conservadores estadunidenses a advogarem pela “descontinuidade e ruptura” em vez da “continuidade e reforma”. Apesar da própria disposição de Francisco, essa onda de escândalos pode trazer mais reformas tecnocráticas para tornar a governança da Igreja mais transparente e responsável. Existem alguns riscos que vale a pena mencionar aqui.

Se a crise deslegitima o episcopado, será que qualquer que seja o poder que os bispos perderam será ganho por poderes menos responsáveis do que eles – por exemplo, aqueles que deram muito dinheiro à Igreja? Realmente queremos que uma classe de doadores faça à Igreja o que fez com a política estadunidense? Mesmo que se assuma que a crise dos abusos sexuais demonstra a necessidade de mais democracia na Igreja, não se pode assumir que o que quer que torne os bispos menos poderosos tornará a Igreja mais democrática.

A solução certamente não está em manter o status quo. O problema é que o “iconoclasmo eclesiológico” produzido pelo escândalo dos abusos sexuais, junto com outros abusos de poder e escândalos financeiros, poderia acabar fazendo a Igreja funcionar mais como uma corporação. Essa é uma tentação particularmente poderosa para a Igreja nos países desenvolvidos, onde as corporações se tornaram o modelo para todos os outros tipos de instituições, incluindo o Estado.

É um dos riscos da “sociedade da transparência” sobre a qual escreveu o filósofo alemão nascido na Coreia Byung-Chul Han. Tal sociedade, escreve ele, “abole todos os rituais e cerimônias porque não admite a operacionalização”. Mais fundamentalmente, nesse esforço urgente de reforma, os católicos devem desenvolver um novo senso de confiança para seguir em frente com novos sistemas de controle. Na ausência de confiança, o controle se torna opressivo, até mesmo totalitário. Além disso, a lógica da transparência total está em desacordo com o mistério e a interioridade da autêntica experiência religiosa.

A maioria dos católicos, incluindo aqueles que escrevem sobre a Igreja, estão agora experimentando algo como um esgotamento espiritual após as revelações sobre o cardeal Theodore McCarrick. A sujeira é desmoralizante. Obviamente, a Igreja ainda precisa ser reformada, e o poder administrativo precisa ser verificado.

Mesmo assim, eu temo que as demandas mais iconoclastas por transparência e responsabilização possam levar a um novo “desnudamento dos altares”. Como o Papa Francisco frequentemente nos lembra, a Igreja não é apenas uma ONG.

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