I have a dream. 28 de agosto de 1963. A utopia viva de Martin Luther King Jr

History UK

Por: Ricardo Machado | 28 Agosto 2020

Depois de ajustar o último botão da camisa branca e acochar o nó da gravata ao pescoço, vestiu o terno preto e embarcou em seu Mustang modelo 1968. Chegou à região do Lorraine Motel, em Memphis, Estados Unidos, no final do dia. Exatamente um minuto depois das 18 horas, prendeu a respiração, esmagou lentamente o gatilho e uma fração de segundo separou o estampido seco do seu rifle  e o destino final do projétil, distante cerca de 100 metros: a parte inferior direita do rosto de Martin Luther King Jr., destruindo seu maxilar e jogando-o contra a parede. O elegante homem branco de terno negro embarcou novamente no Mustang, deu partida e deixou discretamente a região.

 

Sacada do Hotel Lorraine logo após o atentado contra Luther King, deitado no chão

 

Há exatos 50 anos essa cena tornou-se o pesadelo real dos negros dos Estados Unidos, que sonhavam com uma sociedade mais igualitária. A morte de Martin Luther King Jr., que fora levado a um hospital local, foi confirmada cerca de meia hora depois do atentado. Encerrava ali a vida de um dos maiores ativistas de todos tempos, que em 13 anos — entre 1955 e 1968 — havia feito uma verdadeira revolução nos direitos civis dos negros norte-americanos. Em pouco mais de uma década, seu êxito foi maior que os 350 anos precedentes.

 

Assassino


James Earl Ray

James Earl Ray, que confessou o assassinato de King Jr. (embora tenha desfeito a confissão posteriormente), foi preso no aeroporto londrino de Heathrow e extraditado para os EUA, cerca de dois meses depois do crime, em junho do mesmo ano. Ray, que era fugitivo da Penitenciária Estadual do Missouri, já havia cometido outros atos racistas antes de ser preso. Pela morte do líder político, foi condenado a 99 anos de prisão em regime fechado no Tennessee, mas morreu aos 70 de idade, em 1998, vítima de insuficiência renal devido a hepatite C.

 

 

 

O célebre discurso (na íntegra no vídeo acima) proferido por Martin Luther King Jr., no dia 28 de agosto de 1963, alçou seu nome ao Prêmio Nobel da Paz no ano seguinte. Sua luta contra a desigualdade racial baseada em preceitos de não-violência o impulsionaram como uma das figuras públicas mais conhecidas ainda hoje.

 

Diante de 250 mil pessoas, no National Mall, em Washignton DC, Luther King abriu o peito para falar sobre o seu sonho de um país socialmente justo e racialmente igualitário. Entre os ouvidos surdos do gigante de pedra Abraham Lincoln, às costas; e as paredes neoclássicas do Capitólio, na outra extremidade; uma multidão de ouvidos e gentes testemunharam o discurso de King, esperançosa por um mundo utopicamente melhor. 

 

Alguns momentos históricos

 

* 1955 *

No primeiro dia de dezembro de 1955, Rosa Parks, que viria a ser uma das principais ativistas negras dos EUA, grávida à época, descumpriu a legislação em Montgomery, no Alabama, e manteve-se sentada no ônibus não dando lugar a um branco que havia embarcado. A partir de então, Luther King aderiu à pauta e também tornou-se um dos principais porta-vozes da campanha de desobediência e resistência civil. Foi preso na ocasião. Em 1956, uma decisão da Suprema Corte dos EUA determinou que a lei de segregação no transporte público era inconstitucional.

 

 

* 1957 *

Luther King, que era pastor da Igreja Batista, foi eleito presidente da Conferência Cristã do Sul (SCLC — na sigla em inglês). A organização buscava articular e ampliar a voz dos defensores dos direitos civis nos Estados Unidos. Seguiu à frente da organização até seu assassinato, onze anos mais tarde.

 

 

*1963*


Jovem negro é atacado por cachorros da polícia em Birmingham, no Alabama

Nos idos de 1963, Birmingham, no Alabama, foi considerada uma das cidades mais racistas e segregadoras dos Estados Unidos. As imagens de policiais lançando cachorros e jatos de água contra jovens negros ocuparam páginas de jornais e as transmissões televisivas da época. No dia 16 de abril do mesmo ano, Luther King escreveu a “Carta da prisão de Birmingham” (Letter from a Birminglham Jail, no original), texto que ainda hoje é leitura obrigatória em universidades do mundo todo.

   

 

*1964*

Quando eleito ao Nobel da Paz, Luther King, aos 35 anos, havia sido a mais jovem pessoa a receber tal honraria. O seu discurso, em Oslo, é um dos mais lembrados da história, sobretudo por conta da frase: “Eu acredito que a verdade desarmada e amor incondicional terão a palavra final na realidade”.

 

 

*1965*

Somente em 1965 as restrições aos votos das pessoas negras em algumas regiões dos Estados Unidos foram revogadas no Congresso. Essa conquista foi resultado da pressão exercida pelo movimento negro que realizou (ou tentou realizar) três marchas da cidade de Selma à capital do Alabama, Montgomery. As manifestações foram duramente reprimidas pela polícia local. Luther King participou dos protestos, mas foi decisivo na segunda marcha, no dia 9 de março, quando a polícia e os manifestantes ficaram frente a frente e, depois das tropas militares se deslocarem para “deixar” as pessoas passar, o líder político retornou com o grupo para a Igreja. Após duas tentativas frustradas, em 24 de março de 1965 os insurgentes alcançaram a cidade de Montgomery.

 

Utopia viva

Um dos grandes legados de Martin Luther King Jr. foi acreditar na utopia. Rememorar a vida de uma das figuras humanas mais importantes da história ocidental é manter acesa a chama utópica. Luther King resistiu não somente às segregações, resistiu à morte. O líder político foi acossado pelas autoridades dos EUA, teve telefonemas grampeados, foi acusado de relações extraconjugais e recebeu uma carta sugerindo que ele se suicidasse. Ele resistiu.

 

 

Embora Luther King tenha se tornado um pacifista internacionalmente conhecido e atualmente lembrado, apostou na desobediência civil como forma de romper os grilhões do racismo norte-americano. O disparo que calou a voz de um dos maiores líderes negros dos Estados Unidos (e do mundo), não foi capaz de matá-lo, senão de eternizá-lo. Fazer memória é trazer vida à vida. Passados 50 anos do último passo dado na sacada do Hotel Lorraine, Martin Luther King Jr. continua mais vivo do que nunca. O sonho e a utopia sobrevivem, apesar das distopias desérticas.

 

 Funeral de Martin Luther King

Duas das mais impressionantes vozes de mulheres negras dos Estados Unidos, cantaram no funeral de Luther King. Mahalia Jackson e Aretha Franklin cantaram Precious Lord, take my hand.

 

 

 

 

* * *

 

A memória viva de Luther King Jr

Mesmo após cinquenta anos do assassinato de Luther King Jr., sua memória permanece viva e reluzente nos jovens que acreditam em um mundo mais justo. Cansados de verem seus amigos e colegas serem brutalmente assassinados nas escolas, milhares e milhares de pessoas saíram às ruas em mais de 800 cidades dos Estados Unidos, no sábado 24 de março, na March for our lives (Marcha para nossas vidas). O ato foi um grito de basta à violência, ainda mais considerando que a “saída” proposta pelo presidente Donald Trump foi armar os professores para se "defenderem" de atiradores. Emma Gonzalez, uma jovem de 18 anos, tornou-se um dos principais símbolos da luta a favor do desarmamento nos Estados Unidos. Durante seu discurso, realizado em frente ao Capitólio, Emma citou o nome de seus 17 colegas assassinados na Stoneman Douglas High School, na Florida, e manteve-se impassível, calada, com lágrimas nos olhos durante seis minutos e vinte segundos, o tempo que durou o ataque ocorrido em sua escola, no dia 14 de feveriro de 2018.

 

 

Um dia após as marchas estadunidenses, o Papa Francisco, em sua homilia no Dia Mundial da Juventude, celebrado anualmente no Domingo de Ramos, que marca o início das celebrações da Semana Santa, que antecede a Páscoa, ressaltou a importância do protagonismo juvenil contra a cultura da violência, baseada no ódio e na vingança. “Queridos jovens, cabe a vocês a decisão de gritar, cabe a vocês decidirem-se pelo Hosana do domingo para não cair no «crucifica-O» de sexta-feira... E cabe a vocês não ficarem calados. Se os outros calam, se nós, idosos e responsáveis, tantas vezes corrompidos, silenciamos, se o mundo se cala e perde a alegria, lhes pergunto: vocês gritarão? Por favor, decidam-se antes que gritem as pedras”, ponderou o pontífice ao finalizar sua fala.

 

 

O movimento pacificista é, também, efeito de um expressivo aumento no número de ataques armados a escolas dos Estados Unidos. Entre 2008 e 2018 os Estados Unidos registraram 95 ataques armados em instituições de ensino vitimando centenas de estudantes, a maioria crianças e adolescentes. O aumento na curva da violência se deu após a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, em 2008, que de forma absolutamente dividida considerou que segunda emenda constitucional estabelece amplo e irrestrito direito à titularidade de armas de fogo, de modo que exigências rigorosas ao acesso contrariariam tal preceito.

Outra personagem que roubou a cena durante o evento do dia 24 de março foi Yolanda Renee King, neta de Martin Luther King Jr. A pequenina menina de nove anos, não se intimidou diante da multidão e lembrou o sonho do avô – I have a dream – de que nós seremos a grande geração capaz de superar o racismo e a discriminação. Com um sorriso no rosto e a alegria despretensiosa de quem faz uma revolução pacífica, Yolanda King gritava suas palavras de ordem que eram repetidas por todos: “ – We, are going to be a great generation!” [– Nós seremos a grande geranação!].

 

 

Martin Luther King Jr vive!

 

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