Gustavo Gutiérrez: “O compromisso com o pobre não pode evitar a denúncia das causas da pobreza”

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10 Fevereiro 2017

Juan Carlos Scannone (Buenos Aires, 1931) e Gustavo Gutiérrez (Lima, 1928) são os dois grandes patriarcas dos mais de 50 teólogos reunidos no Primeiro Encontro Ibero-Americano de Teologia que está sendo realizado no Boston College. Scannone é o líder da Teologia do Povo, seguida, dizem, pelo Papa Francisco. Gutiérrez é o reconhecido “pai” da Teologia da Libertação. Os dois são os inspiradores teóricos das reformas de Bergoglio.

A reportagem é de José Manuel Vidal e publicada por Religión Digital, 08-02-2017. A tradução é de André Langer.

Pela manhã, interveio o teólogo peruano, e havia enorme expectativa em relação à sua fala. Por seu passado e por seu presente. Porque segue tendo ideias geniais, expostas de uma maneira direta e simples. E com muito senso de humor, que o leva a rir inclusive de si mesmo. “Gostaria de falar de pé, mas já sei que não há muita diferença entre que fique de pé ou sentado”, começou dizendo, em alusão à sua baixa estatura física.

Sua fala, intitulada “A interpretação do pobre em um mundo globalizado a 50 anos do Concílio”, começou abordando o tema da pobreza, que surge nos anos 60, com a irrupção do pobre na Teologia e o interesse da reflexão teológica por abordar não apenas a pobreza, mas também as suas causas.

Na sua opinião, com Pio X e Pio XII, “os pobres tinham que ser humildes para receber ajuda; e os ricos, generosos para ajudar os pobres”. Somente com João XXIII começou-se a falar “das causas da pobreza”.

Gutiérrez sentou, assim, as bases do seu pensamento: “A pobreza nunca é boa, nunca, porque sempre é morte precoce e injusta” e “o compromisso com o pobre não pode evitar a denúncia das causas da pobreza”. Porque o “pobre é uma ‘não pessoa’, um não considerado pessoa, um insignificante”. Ou, como disse Hannah Arendt, “o pobre é aquele que não tem direito a ter direitos”. Por isso, a pobreza é um “assunto teológico, que expressa a fratura da criação”.

O processo teológico da Teologia da Libertação baseou-se, de acordo com Gutiérrez, em dois grandes temas: a salvação universal e a relação natureza-sobrenatureza. Porque, “para fazer teologia é preciso estar em contato com a realidade”.

E para explicar isso, Gutiérrez recorreu à seguinte metáfora: “A mensagem cristã é como carne congelada. Ela está aí, mas não é possível comê-la. É preciso descongelá-la, isto é, situá-la na realidade atual”. Como o Papa, “que se situa neste nível básico, no viço do Evangelho”.

Uma teologia assentada na práxis. E citou, para corroborar o que está dizendo, Simone Weil: “se quer saber se uma pessoa acredita em Deus, não se fixe no que ela diz sobre Ele, mas no que ela diz sobre o mundo”.

E uma teologia profundamente espiritual. “A espiritualidade é fundamental no processo teológico, porque é um estilo de vida e uma maneira de ser”, explicou. Por isso, a Teologia da Libertação nunca vai morrer, embora os meios de comunicação “a mataram no ano em que ela nasceu e a continuam matando a cada pouco”. Daí que, quando perguntam a Gutiérrez pela morte da Teologia da Libertação, sempre diz: “Não me convidaram para o funeral e creio que eu teria o direito de estar”.

Neste processo, foi o Vaticano II que “abriu portas, para continuar descongelando”, assim como fez a Conferência de Medellín.

A Teologia da Libertação traz consigo, segundo Gutiérrez, o martírio. Algumas vezes, físico, como o de Enrique Pereira Neto; outras vezes, também físico, mas estendido no tempo, “tornando a vida dos teólogos da libertação impossível”. Por isso, “houve mártires por Deus, pela Igreja e por seu povo”.

Uma teologia – a da libertação – que leva à práxis e a se propor, a partir da realidade, “como dizer ao pobre que Deus o ama, quando sua própria vida é a negação do amor”. Talvez, o único caminho seja “ser solidário com os pobres” e, sobretudo, “ajudá-los a ser sujeitos do seu destino”.

Por isso, Gutiérrez não gosta daqueles que se proclamam ‘a voz dos sem voz’, porque “a nossa meta é fazer com que aqueles que não têm voz a tenham”. Daí o componente da “pastoral da amizade” que deve haver na reflexão teológica. “Não há autêntico compromisso com os pobres, se não somos seus amigos”. Como disse na última rodada de perguntas, “não basta estudar teologia, é preciso, sobretudo, vivê-la”.

Na sequência, interveio o economista peruano Umberto Ortiz, que demonstrou com dados, números e estatísticas que “29,2% da população da América Latina (175 milhões) está abaixo da linha da pobreza, aos quais é preciso somar os 70 milhões que vivem na indigência”.

Além disso, “a América Latina continuar a ser a região mais desigual do mundo” e “os pobres são os mais afetados pela mudança climática”, explicou o professor.

A teóloga colombiana Olga Consuelo Vélez sacudiu o auditório com sua colocação, intitulada “As periferias geográficas e existenciais, desafios para a Teologia”. Após denunciar “a perseguição aberta à Teologia da Libertação por alguns setores da instituição eclesial”, reconheceu que, a isso se uniu, nos últimos anos, “o desânimo e o cansaço de alguns teólogos e teólogas”.

Até que “veio um Papa do ‘fim do mundo’, cujos gestos e palavras nos fizeram voltar o nosso olhar novamente para os pobres”, porque Francisco “coloca a opção preferencial pelos pobres como categoria teológica, e não meramente cultural”.

Trata-se, segundo a teóloga da Universidade Javeriana de Bogotá, de “se desinstalar, para sair às periferias geográficas e existenciais”, o que exige uma “conversão pastoral”. E, para isso, os teólogos têm que rever o “‘a partir de onde’ respondemos às necessidades concretas que nos interpelam” e perguntar-se: “Estão os pobres do mundo no centro da nossa reflexão teológica?”

Para isso, Olga Consuelo Vélez aposta em “uma teologia perpassada pela misericórdia” e “uma teologia com sabor de atualidade”. Para concluir com a seguinte afirmação: “Talvez o mais importante desta reflexão seja perguntar-nos se neste movimento eclesial que estamos vivendo hoje com Francisco nos sentimos comprometidos e dispostos a mudar”.

Nesse sentido, destacou que, por exemplo, “a teologia de gênero ainda é um apêndice em muitos centros universitários, que seguem marcados por uma cultura patriarcal e clerical”.

O teólogo jesuíta também colombiano, Guillermo Sarasa, por sua vez, abordou o tema “Falar de Deus em tempos de globalização”, assegurando que a globalização oferece oportunidades, mas também riscos, ao mesmo tempo que defendia um anúncio explícito de Cristo nos centros universitários católicos.

O primeiro expositor a intervir na parte da tarde foi o jesuíta Juan Carlos Scannone, um dos ‘gurus’ da Teologia do Povo, que definiu “como uma corrente da Teologia da Libertação”, e que centrou sua intervenção em “A colaboração teológica com a pastoral do Papa Francisco”.

Na sua opinião, é evidente que o Papa não quer uma “teologia de gabinete”, mas uma teologia baseada na misericórdia, na opção pelos pobres e no discernimento. A partir da misericórdia, “Francisco dá importantes passos adiante com respeito aos seus dois predecessores, continuando a linha da Igreja e da teologia latino-americanas de Medellín a Aparecida”.

Segundo Scannone, que foi professor de Bergoglio na Argentina, Francisco quer “uma Igreja pobre, dos pobres e para os pobres”. Ou seja, como disse Pedro Trigo, que “os pobres não se sintam apenas na Igreja ‘como em sua casa’, mas que estejam no ‘coração da Igreja’”.

Por isso, Francisco quer que os pobres sejam “não apenas protagonistas, mas também ‘poetas sociais’, artesãos e construtores da história”. Especialmente através dos movimentos populares, aos quais o Papa “reconhece uma imprescindível função social”.

Quanto ao discernimento, segundo o Papa, deve passar pelo “discernimento dos sinais dos tempos”. Com quatro princípios básicos: a realidade sempre prevalece sobre a ideia; trata-se mais de gerar processos que de ocupar espaços de poder; a unidade é superior ao conflito, e o todo é superior às partes e à sua mera soma.

É “o modelo do poliedro ou da orquestra”. E Scannone conclui: “Hoje, a teologia é chamada a acompanhar – com o Papa Francisco – os povos, os pobres dos povos e seus movimentos populares, no discernimento eficaz de sua paixão e ação históricas. Assim, estaria praticando a opção evangélica por uma Igreja pobre, com, de e para os pobres, com atitude de misericórdia, enquanto a teologia é e deve ser ‘intellectus amoris et misericordiae’”.

Nas comunicações da tarde, intervieram a teóloga argentina Emilce Cuda, o chileno Carlos Schikendantz e o venezuelano Rafael Luciani. A professora Cuda abordou o tema da “teologia política na América Latina hoje” e assinalou que “há modalidades políticas que são sacralizadas, em relação às quais a função do teólogo consiste em destronar os falsos deuses”.

O Pe. Schikendantz falou sobre “A reforma da Igreja no atual pontificado à luz do Vaticano II”, que, na sua opinião, passa pela “recuperação do Concílio” e pela colocação em prática de “uma agenda complexa e articulada”.

Neste sentido, o teólogo chileno assegurou que “a reforma chave da reforma da Igreja é a reforma do papado, tendo em conta que só o papa pode reformar-se a si mesmo”. Devemos ter em conta que “a reforma da Igreja passa pela diminuição do papado para que cresçam as outras instituições eclesiais”. Uma reforma que, na sua opinião, encontra-se com uma oportunidade de ouro e um momento favorável, porque “coincidem as reformas de baixo para cima e de cima para baixo”.

Por último, interveio Rafael Luciani, para falar sobre a “Geopolítica pastoral”, que consiste na “parresía apostólica a serviço dos povos pobres e suas culturas”, porque a Igreja “quer ser mediadora e facilitadora de processos de paz no meio dos dramas que outros descartam”.

Ele repassa as “fraturas locais com repercussões globais” que mostram que “o que não funciona não é um simples modelo de gestão, mas o sistema ou o ordenamento mundial atual”. Entre outras coisas, “porque é um modelo que, mesmo quando conseguiu produzir maior riqueza em nível global, gerou os níveis mais altos de desigualdade econômica e exclusão social na história da Humanidade. O pobre não é apenas aquele que não tem, mas aquele que não tem como ter”.

Precisamente por isso, o modelo geopolítico de Francisco busca apoiar-se na “interculturalidade, como caminho para a habilitação humana como sujeitos”. Ou, dito de outra maneira, “a visão de Francisco entranha uma mudança na maneira como interagimos e nos posicionamos socioculturalmente. É um modelo alternativo que se baseia na práxis do encontro, da cooperação e da interdependência”. Porque “a fraternidade global é o caminho para se chegar a ser sujeito nesta época globalizada, para que todos possam gozar da possibilidade de ter possibilidades”.

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