Patentes, a privatização do esforço comum

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Por: Caroline | 02 Abril 2014

“As patentes são um monopólio que beneficiam aquele que está mais bem posicionado no mercado, o que pode assumir o custo de patentear (algo que não é barato), aquele que tem a infraestrutura legal suficiente para desafiar, pagar e pressionar, aquele que pode se permitir a remunerar quantidades enormes de uma só vez para comprar suas patentes do verdadeiro inovador e pagar, inclusive, para  comprar companhias inteiras apenas por seu conjunto de patentes. E já tratamos disso em outras ocasiões, a patente não premia a inovação (não apenas não as recompensa, mas que a entorpece) e a inovação não necessita de patentes. (...) As patentes não premiam a inovação e a inovação é produzida sem necessidade de patentes”. O que escreve La Ciencia Hacker, em artigo publicado pelo Observatório Sul-americano de Patentes, 27-04-2014. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Há cerca de duas semanas era discutido o tremendo avanço dado pelos novos medicamentos contra a hepatite C, que já podem prever um breve prazo para seu controle. Estamos falando de medicamentos que determinam uma resposta tida por até 98% dos pacientes que os tomam, sem grandes efeitos secundários (ao menos, assim ocorre nos ensaios clínicos). Contudo isso não só em relação à hepatite C. Em outros momentos, como já ocorreu com o HIV e com a chegada das terapias específicas (anticorpos monoclonais, inibidores enzimáticos seletivos, proteínas recombinantes...), estes resultados intrigantes estendem-se além das enfermidades infecciosas. Todavia, está ocorrendo um paradoxo brutal. Quando se espera que os governos aprovassem, financiassem e administrassem aos seus pacientes estes tratamentos o mais rápido possível, ocorre exatamente o contrário.

Alguém pode pensar que estes medicamentos requerem avaliações minuciosas e detalhadas para evitar males maiores após sua comercialização, o que é correto. Contudo isso não explica que as enormes diferenças existentes entre países em relação ao tempo para a comercialização do medicamento. Não encontrei nenhum estudo a respeito, mas a experiência pessoal em minha especialidade e os comentários de outros companheiros sugerem-me que o atraso na comercialização de alguns medicamentos tem muito haver com a incapacidade dos governos em financia-los. Porque se sua eficácia pode ser realmente boa, seus preços ficam fora de qualquer proporção. Daremos alguns exemplos ilustrativos, pois, mesmo que as pessoas escutem falar em “altos preços”, ainda é válido colocá-los em número:

- A doença de Pompe, enfermidade mortal sem tratamento, é tratada atualmente com uma enzima (alfa-glucosidasa) recombinante. Custa em média €300.000 anuais (digo em média porque se pauta pelo peso do paciente).

- O tratamento da hemoglobinúria paroxística noturna, uma doença muito grave em crianças e cujo tratamento mudou dramaticamente seu prognóstico, custa €350.000 ao ano.

Alguém pode dizer que estes são exemplos anedóticos, contudo, na realidade trata-se da norma em todos os novos tratamentos. Alguém pode dizer que essas são doenças muito raras, e é válido. Contudo vejamos o que ocorrem com uma enfermidade em seus registros mais comuns:

- O tratamento com fingolimod ou natalizumab para a esclerose múltipla custa €25000 ao ano. Apenas em minha pequena unidade de saúde (em minha cidade há outras seis unidades de certa entidade, algumas delas cinco vezes maiores) já tivemos 300 pacientes com esta doença.

E agora vem o melhor... esses espetaculares medicamentos contra a hepatite C, que motivam a reflexão que levou a este artigo, custam ao redor dos €60.000 euros por período de tratamento (12 semanas) ou, como chamam nos EUA, as pastilha dos mil dólares (imagine se eles caírem no chão, embaixo da geladeira que dilema!)

A hepatite C afeta aproximadamente a 3% da população mundial...

Tiremos a calculadora e façamos os cálculos que os políticos já fazem a tempo. Isto quer dizer que o atraso na comercialização de novos medicamentos de todo o tipo não tem haver com suas vantagens ou inconvenientes. Ultimamente tem haver, quase exclusivamente, com seu preço. Se não acabam não chegando ao mercado não é porque estão sendo estudandos com carinho. É porque as entidades financiadoras estão ganhando tempo. Isso não apenas ali onde quem financia é o Estado, como na Europa. Também ocorre nos EUA, naqueles lugares onde é também o Estado o financiador, como nos sistemas prisionais. Convenhamos que chegará um dia em que o sistema de saúde em si será insustentável. Não pelos salários, nem pelos serviços ou pela infraestrutura... apenas e exclusivamente pelo preço dos medicamentos.

Poderíamos pensar que se uma companhia coloca um preço tão elevado seria por merecimento, visto que fez alguma inovação de tal modo que possa, então, desfrutar de uma merecida patente. E, agora sim, vamos entrar no tema que este artigo realmente queria tocar: Isso é FALSO. As patentes não protegem o mais inovador. As patentes são um monopólio que beneficiam aquele que está mais bem posicionado no mercado, o que pode assumir o custo de patentear (algo que não é barato), aquele que tem a infraestrutura legal suficiente para desafiar, pagar e pressionar, aquele que pode se permitir a remunerar quantidades enormes de uma só vez para comprar suas patentes do verdadeiro inovador e pagar, inclusive, para comprar companhias inteiras apenas por seu conjunto de patentes. E já tratamos disso em outras ocasiões, a patente não premia a inovação (não apenas não as recompensa, mas que a entorpece) e a inovação não necessita de patentes. Repitam comigo: As patentes não premiam a inovação e a inovação é produzida sem necessidade de patentes.

As patentes são um artifício legal que garante seu nível de rendimento que nada tem haver com a inovação. A extrema riqueza das companhias farmacêuticas (contudo isso pode ser estendido para as tecnológicas, as agro-alimentares, as energéticas, etc.) deve-se exclusivamente ao fato de que estão acrescentando uma quantidade marginal, pequena, de conhecimento a uma quantidade brutalmente maior de conhecimento livremente disponível, e que conseguem apropriar-se economicamente não apenas do conhecimento por eles acrescentado, mas por aquele somado por todos os que vieram antes. Como já dissemos em outros artigos, o capitalismo das farmacêuticas sustenta-se no “comunismo dos cientistas”. Voltemos a dois dos exemplos:

-São as farmacêuticas as que descreveram os sintomas, sinais, resultados de análises e anatomopatológicos ou o prognóstico da Doença de Pompe ou que descrevem em seus ensaios clínicos? NÃO. São elas que desenvolveram as escalas para avaliar sua gravidade usada em seus estudos clínicos? NÃO. São elas as que descobriram o que é uma gluccogenosis? NÃO. São elas as que descreveram os motivos das mutações na alfa-glucosidasa? NÃO. São elas as que fizeram a proteína recombinante pela primeira vez? NÃO. O que elas fizeram? Coletaram toda essa informação, poliram um pouco a molécula, engarrafaram-na e usaram sua posição no mercado para distribuí-la.

- As farmacêuticas descreveram a hepatite? NÃO. Os vírus? NÃO. Foram elas as que, quando a hepatite se chamava não-A e não-B, descobriram o novo vírus que, mais tarde, chamou-se de “C”? NÃO. Foram elas que descreveram os marcadores sorológicos para detectar no sangue? NÃO. Foram elas que descobriram os diversos genótipos? NÃO. São elas que descobriram as polimerasas? NÃO. Elas fizeram a sequência do genoma do vírus da hepatite C?  NÃO. Elas descobriram o papel chave da proteína NS5A para sua sobrevivência? NÃO. Foram elas que descobriram os inibidores desse NS5A? NÃO... O que elas fizeram? Coletaram toda essa informação, poliram um pouco a molécula, engarrafaram-na e usaram sua posição no mercado para distribuí-la.

E assim o é para quantos exemplos vocês queiram. Toda, absolutamente toda a “inovação” oferecida pelas companhias farmacêuticas é, simplesmente, a adição muito pequena de conhecimentos sobre o total de conhecimentos necessários para chegar a essa descoberta. E isso, assim o é para as farmacêuticas, contudo, como dizia antes, o é para todas as empresas “inovadoras” de outro tipo. Inclusive as que mais ofereceram inovações com menor custo, as de software, em grande parte estão construindo sobre um solo que era comum, livre, acessível para todo o mundo.

Um dos objetos mais belos e inovadores, de acordo com o mainstream, o iPhone,  é na realidade um compêndio de coisas criadas por outros, polidas, bem embaladas e distribuídas. Poderiam nos responder que essas coisas estavam ali antes, mas apenas a Apple soube dar-lhes esse “plus” que o torna inovador. Isso, primeiramente, não é certo, já que muitos outros faziam coisas muito parecidas com o iPhone, que é apenas uma evolução (tecno)lógica a mais. Entretanto, em segundo lugar, para termos uma magnitude correta do engano: Por acaso a Apple inventou a internet? O Wi-Fi? O Bluetooth? Os aceleradores? ... Por acaso a Apple colocou em órbita o sistema de satélites GPS? Foi a Apple a que inventou o HTML ou os navegadores web? Foi ela que inventou as câmeras de fotos, o teclado qwerty ou as mãos livres? NÃO. Vamos voltar... Apple soube fazer essa coisa tão bela mas... para que serve essa coisa tão bela sem a internet, sem GPS, sem bluetooth, sem navegadores? E mais, são da Apple as aplicações pelas quais são cobrados os dízimos? Para que serve o iPhone sem aplicativos? Por que digo dízimos? Porque isso é o que a Apple faz, uma companhia bem posicionada que pode permitir-se a limitar a concorrência mediante patentes e outras rendas artificiais (de posição), da mesma maneira que, em seu contexto, fazia ao senhor feudal, ao cobrar o que queira por algo que não tenha inovado. Há quem compare Jobs com Leonardo da Vinci, com uma minúscula diferença: Da Vinci não patenteou nada. E não foi por isso que deixou de inovar e não é por isso deixa de ser reconhecido como o grande inventor que foi.

Mas o cerne da questão é, se as empresas privadas, ainda que inovem, o fazem sobre uma grande quantidade de conhecimento prévio acumulado, quem gera esse conhecimento massivo necessário para conseguirmos avançar? Em sua maioria, o Estado. Não tomemos o Estado como o aparato burocrático que organiza a vida dos cidadãos. Não, mas o Estado como empresa comum dos cidadãos. Como o fundo obrigatório de investimento para o qual todos contribuem com nossos impostos. O Estado é o que assume o negócio nada rentável da ciência básica, da exploração espacial, da exploração dos oceanos, de colocar satélites em órbita... o Estado assume a maior parta dos investimentos epidemiológicos, da saúde pública, da pesquisa clínica não farmacológica... o Estado assume o investimento em renováveis, na pesquisa climática e meteorológica... para não falar do básico, as infraestruturas, a educação (que é o capital humano das empresas), a segurança... Quer dizer, o Estado assume as pesquisas a longo prazo, a inovação mais intrigante, a mais custosa e a que tem mais riscos. Contudo, uma vez feito todo esse investimento, os retornos que a pesquisa mais sensível iria gerar, a mais aplicada, mais direta, a que constrói-se principalmente com o conhecimento acumulado, a que culmina da pesquisa básica, vai parar em mãos privadas que, em muitas ocasiões, nem sequer pagam os impostos ao Estado que lhe proporcionou tudo isso. Levamos tempo dizendo, mas para os que dizem que as TED Talks não valem para nada, aqui o explico muito melhor.

Quero com isso dizer que é o Estado o que deve pesquisar o básico e o aplicado, e ser o encarregado de desenvolver produtos, levá-los ao mercado e torná-los conhecido? Nada mais distante. O que quero dizer é algo que, certamente, Mariana Mazzucato não diz em seu vídeo (ainda que o pense, está no TED Global, não poderia cometer um “sincericídio”), é que são as empresas as que devem fazer muitas dessas coisas, mas não, de maneira algum, às custas de nos cobrar cifras exorbitantes por nossos medicamentos e por nossos avanços tecnológicos. Não às custas de ficar com nossos investimentos na empresa comum de capital de risco chamada Estado. Que faça tudo isso,  mas que passem a competir em um mundo que a único lucro venha determinado pela própria inovação. Em um mundo onde a única vantagem competitiva não venha de leis que protegem os feudos (ou melhor, os piratas) mas sim da vantagem de ser o primeiro a fazer algo bem. Em um mundo em que não existam as patentes. Nenhuma. A abolição das patentes não fará que entremos em uma época tenebrosa e sem ideias. O machado Magdalenense, a roda, o moinho, Leonardo da Vinci, Internet e o Estado demonstram que, repitam comigo, A INOVAÇÃO É PRODUZIDA SEM A NECESSIDADE DE PATENTES (E AS PATENTES NÃO PREMIAM A INOVAÇÃO).

Apenas quando tivermos isso muito bem em nossas cabeças, divulgando-o o exigindo-o a todos os legisladores globais, poderemos, finalmente,  ter acesso a tratamentos que curam a hepatite C  ou que melhoram, drasticamente, o prognóstico da Doença de Pompe ou a Esclerose Múltipla.

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