Sinodalidade e o Espírito

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17 Novembro 2015

"A sinodalidade exige uma abordagem intelectual e espiritual diferente, uma maturidade de pensamento e espiritualidade certamente, mas também uma humildade profunda. Se perseguida e abraçada, a sinodalidade pode ajudar a banir das fileiras da hierarquia a ambição e a sua prima, a vaidade", destaca Michael Sean Winters, jornalista e escritor, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 12-11-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa

Eis o artigo.

Três discursos recentes, um do Santo Padre e dois de seus colaboradores próximos, focaram-se na questão da sinodalidade. A cobertura do Sínodo, inclusive a que apresentamos aqui em nossos artigos, tendiam a centrar-se nas questões debatidas no Sínodo recentemente encerrado. Mas talvez a história principal encontrava-se no próprio Sínodo e no tipo de liderança que uma abordagem sinodal requer. Em um discurso proferido na Faculdade Jesuíta de St. Georgen, em Frankfurt, o Cardeal Reinhard Marx, arcebispo de Freising-Munique, falou sobre as maneiras como a sinodalidade altera a tomada de decisão. Assim ele se expressou:

“’A subsidiariedade, a personalidade e a solidariedade devem ser incorporadas à Igreja […]’, disse o cardeal. ‘A Igreja universal só pode existir em cooperação com as Igrejas locais – sub Petro et cum Petro –, conforme o papa formulou enfaticamente’”.

Estas três primeiras palavras dizem muito: subsidiariedade, personalidade e solidariedade, e é a segunda delas que, normalmente, é ignorada. A sinodalidade não é simplesmente uma mudança nas estruturas, saindo de uma forma monárquica de governo para uma forma aristocrática, como na política britânica do século XVIII. Mas a subsidiariedade tem a ver com a forma como níveis diferentes de tomada de decisão ajudam-se e se respeitam, enquanto que a solidariedade sugere a partilha dos fardos dos outros, e a ênfase sobre a personalidade pode ser a maior mudança, e a mais necessária, implicando um afastamento para com as regras abstratas indo em direção às realidades pastorais. Conforme disse o Papa Francisco, a realidade é mais importante do que as ideias. Todas as três ideias demandam mais do que a mera obediência; elas exigem participação e trabalho: qualquer um que já tentou forjar um consenso durante uma reunião escolar ou num encontro na prefeitura sabe que construí-lo é um trabalho árduo.

O arcebispo de Chicago, Dom Blase Cupich, falou dias atrás sobre o Sínodo num congresso na DePaul University e, depois, na Catholic Theological Union.

Ele disse que o convite do Santo Padre a uma abordagem mais sinodal deveria ser visto como parte de uma transformação em nossa vida eclesial. A primeira transformação “está em confiar que Cristo é o verdadeiro ressuscitado”, disse ele, e não simplesmente há 2000 anos, mas ainda hoje. A segunda transformação é “confiar com um maior fervor que o Cristo Ressuscitado está atuante precisamente no ministério da Igreja, em nosso ministério como bispos. Significa confiar em nosso ministério como o lugar onde Cristo está sempre fazendo algo novo, e não ficar com medo quando ele nos chama à novidade”.

E, em terceiro lugar, disse Cupich, a transformação de que fala o Santo Padre é em “confiar, com mais humildade, em que Cristo Ressuscitado está trabalhando e revelando a sua presença nas vidas daqueles a quem servimos. Consequentemente, significa confiar que o povo a quem servimos tem algo de grande valor a nos dizer sobre a vontade de Cristo”.

Resumindo o discurso do Papa Francisco durante o Sínodo, na ocasião do 50º aniversário de instituição do Sínodo dos Bispos por Paulo VI, Cupich formulou aquilo que penso ser o central em captar a forma como a sinodalidade requer uma abordagem diferente, não apenas um organograma organizacional mudado. Assim ele disse:

“A nossa responsabilidade em ensinar está ligada com a nossa responsabilidade de escutar e aprender, de forma que assim possamos nos beneficiar com a sabedoria daqueles a quem servimos. De forma clara: esta escuta recíproca é mais importante do que simplesmente estar atento aos pensamentos, às convicções e opiniões das demais pessoas. Em vez disso, escutamos uns aos outros para discernir aonde Deus está conduzindo a Igreja. Por causa da nossa fé de que o Espírito Santo está trabalhando na Igreja, na escuta uns dos outros, nós estamos também escutando ao Senhor que atua neles e através deles. Consequentemente, além de sermos uma ‘ecclesia docens’ (uma Igreja docente) e uma ‘ecclesia discens’ (uma Igreja discente), conforme nos diz o Papa Francisco, somos também uma ‘ecclesia discernens’ (Igreja discernente)”.

A docência e a discência combinam-se para constituir aquilo que conhecemos como discernimento. Se a Igreja apenas ensinar, ela torna-se morta e estéril. Se ela apenas aprender, ela desapega-se de suas origens. A docência e a discência não são eventos separados, mas vêm juntos de forma que a Igreja faça um discernimento de sua missão através dos séculos e neste século. O processo não é – repito: não é – um processo hegeliano. Ele não é, estritamente falando, dialético. É a “nossa fé em que o Santo Espírito está trabalhando na Igreja” o que faz com que não acabemos tendo uma simples brincadeira teológica. O movimento não é de ir e vir, mas de seguir em frente, e seguir em frente precisamente como aquele que está enraizado no “kerygma” de que Jesus ressuscitou.

Dias atrás escrevi sobre uma fala inovadora do Santo Padre proferida em Florença. Houve uma frase sobre a qual eu não me foquei o suficiente. Disse o papa: “O fascínio do gnosticismo jaz numa fé que se fecha no subjetivismo”. No Sínodo, teve bastante conversa sobre “normas morais objetivas” como o antídoto para o subjetivismo e uma espécie de gnosticismo. Mas, aqui, se eu o interpreto corretamente, o papa está dizendo haver uma verdade objetiva nas vidas das pessoas, e que são os estudiosos do Direito quem se colocaram numa espécie de prisão gnóstica, na qual somente eles possuem as chaves, somente eles compreendem o uso que pode ser dado a elas, e que “normas morais objetivas” servem a uma função nitidamente subjetiva de mantê-los no comando. Chamo a atenção para a qualificação no meio deste parágrafo: “se eu o interpreto corretamente”. Não quero pôr a carroça na frente dos bois, e estas questões exigem uma mente teológica melhor do que a minha. Acho que outras ideias precisam ser exploradas aqui. Mas esta que destaquei acima, que me escapou em minha primeira leitura, pode ser, à luz dos discursos dos cardeais Marx e Cupich, muito importante para a compreensão daquilo a que o papa está nos convidando quando nos diz de uma Igreja sinodal.

Os nossos irmãos e irmãs ortodoxos, muitos dos quais ficaram profundamente sentidos ao ouvir que a abordagem deles à questão da Comunhão aos divorciados e recasados fora descrita como “herege” e uma “traição ao Evangelho”, possuem uma longa experiência de sinodalidade como sendo o método de comando na Igreja. Eu não acredito que seja coincidência que eles tenham uma pneumatologia – a teologia do espírito – mais viva e vigorosa do que nós temos nos países ocidentais. A sinodalidade não tem a ver simplesmente com a descentralização administrativa das tomadas de decisão. Ela tem a ver com algo mais profundo: significa devolver a autoridade das tomadas de decisão a uma Igreja que está mais ciente de estar sendo conduzida pelo Espírito, mais atenta ao Espírito.

A sinodalidade exige uma abordagem intelectual e espiritual diferente, uma maturidade de pensamento e espiritualidade certamente, mas também uma humildade profunda. Se perseguida e abraçada, a sinodalidade pode ajudar a banir das fileiras da hierarquia a ambição e a sua prima, a vaidade. Ao ler estes discursos, lembrei-me de uma passagem da “Carta a um membro da Assembleia Nacional”, escrita em janeiro de 1791 por Edmund Burke:

“A humildade, base do sistema cristão, é o baixo, porém profundo e firme fundamento de toda a virtude verdadeira. Mas isso, muito doloroso na prática e pouco imponente na aparência, foi totalmente deixado de lado [pelos revolucionários]. O objetivo deles é fundir todo o sentimento natural e social em uma vaidade desmedida. Em um grau pequeno, e versado nas pequenas coisas, a vaidade dura pouco. Quando adulta, é o pior dos vícios, e é a representação mímica de todos eles. Ela faz ser falso a pessoa inteira. Nela, não fica nada de sincero ou que valha a pena. As suas melhores qualidade ficam envenenadas e acabam pervertidas, transformando-se nas suas piores qualidades”.

Ao ler as histórias sensacionalistas dos vários documentos vaticanos vazados, fica fácil ver como esta acusação escaldante de Burke possui uma certa aplicabilidade à Igreja que Francisco está tentando reformar. Lendo as críticas defensivas do crescimento teológico em muitas das intervenções sinodais, fica fácil ver como soa verdadeiro o comentário de Burke sobre a vaidade envenenando as melhores qualidades da pessoa. Burke também iria saudar a afirmação do papa de que a realidade é mais importante do que as ideias. O seu mais famoso aforismo – “Sinto uma relutância insuperável em dar o meu apoio para a destruição de qualquer instituição estabelecida do governo, por mais plausível que que isso possa ser”, – tem semelhança com o dizer do papa, embora devemos notar que esta famosa citação não foi proferida num debate sobre a Revolução Francesa, mas em um debate sobre [uma nova lei], em que Burke estava profundamente comprometido em destruir a instituição estabelecida do governo representada pelos Warren Hastings, tal como o papa está determinado em reformar uma Cúria que poderia produzir tanta pequenez e tanta venalidade.

Um amigo diz que este papado é algo parecido como despertar dentro de um romance de Morris West, e de fato o é. Esta questão de sinodalidade, as suas implicações mais amplas na eclesiologia, exige estudo e oração. Espero que os nossos jovens – e nem tão jovens – teólogos assumam este trabalho e ajudem os demais a pensarmos sobre o tema. De novo, estamos diante de algo mais do que uma simples reforma estrutural. Ao ler as observações do Santo Padre em Florença e as falas dos cardeais Marx e Cupich, fica difícil não notar que o vento está soprando; fica difícil não nutrir a esperança de que este vento é a brisa do Espírito Santo correndo através da Igreja.

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