Medicina e teologia da libertação. Artigo de Paul Farmer

Posto médico no acampamento de refugiados de Dadaab, no Quênia, 25-07-2011. Foto: Andy Hall | Oxfam

26 Fevereiro 2022

 

“Atuar como médico a serviço de pessoas pobres ou oprimidas é prevenir, sempre que possível, as doenças que as afligem – mas também tratar e, se possível, curar. Então, onde está a inovação nisso? Como uma intervenção em saúde inspirada na teologia da libertação seria diferente daquelas com fundamentos mais convencionais? O que vem a seguir de uma perspectiva da teologia da libertação na medicina? O que realmente somos chamados a fazer, nos esforços para fazer causa comum com os pobres, seja pensar local e globalmente, e agir em resposta a ambos os níveis de análise. Se falharmos nessa tarefa, talvez nunca mudemos as estruturas que criam e mantêm a pobreza, estruturas que adoecem as pessoas.”

 

O artigo é de Paul Farmer, renomado médico, humanista e escritor estadunidense por prover atenção à saúde de milhões de pobres em todo o mundo e por fundar a organização global sem fins lucrativos Partners in Health. Sua morte, aos 62 anos, foi anunciada no domingo, 21-02-2022. Em sua homenagem, a revista America, dos jesuítas estadunidenses, republica, em 23-02-2022, este artigo de 15-07-1995. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

Os proponentes da Teologia da Libertação têm há décadas defendido que as pessoas de fé devem fazer uma opção preferencial pelos pobres. Como discutido por Leonardo Boff, do Brasil, uma liderança do movimento, “a opção da Igreja é preferencial pelos pobres, contra suas pobrezas”. Os pobres, acrescenta Boff, “são aqueles que sofrem com a injustiça. Sua pobreza é produzida por mecanismos de empobrecimento e exploração. Sua pobreza é portanto um mal e uma injustiça”.

 

Para esses preocupados com a saúde, uma opção preferencial pelos pobres oferece um desafio e um insight. Isso desafia médicos e outros trabalhadores da saúde a fazerem uma opção preferencial pelos pobres. Isso é, os pobres estão mais doentes que os não-pobres. Eles estão esmagados pelo risco de morrer prematuramente, por estarem mais expostos a patógenos (inclusive situações patogênicas) ou pelo acesso diminuto a serviços ou, como é na maioria dos casos, por todos esses fatores de risco juntos.

A teologia da libertação, que argumenta que uma mudança genuína será enraizada em pequenas comunidades dos pobres, avança por uma simples metodologia – ver, julgar e agir. A parte “ver” dessa fórmula implica em analisar a realidade. Isso é surpreendente, já que os bispos católicos da América Latina são tradicionalmente aliados das elites de seus países e tenham escolhido por uma análise social mais dura quando examinam suas sociedades. Muitos argumentariam que os documentos-chave da teologia da libertação foram forjados nos encontros episcopais em Medellín, de 1968, e em Puebla, de 1979. Em ambas instâncias, bispos progressistas, trabalhando com teólogos com ideias semelhantes, como o peruano Gustavo Gutierrez, lamentavam as forças econômicas e políticas que trazem miséria para tanto latino-americanos. Os bispos não mensuraram palavras: “O documento de Puebla”, citando Boff, “mexe imediatamente com a análise estrutural dessas forças e denuncia os sistemas, estruturas e mecanismos que ‘criam uma situação onde os ricos ficam mais ricos à custa dos pobres se tornarem mais pobres’”.

 

A parte do “julgar” é importante e, em um certo sentido, pré-julgado. Nós olhamos para as vidas dos pobres e estamos certos que algo está errado. A violência estrutural está sendo feita a eles (alguns dos bispos cunharam “pecado estrutural”).

 

Nos países ricos do hemisfério norte, os relativamente pobres muitas vezes viajam para longe e esperam muito por cuidados de saúde inferiores aos disponíveis para os ricos. No terceiro mundo, onde estimativas conservadoras sugerem que um bilhão de pessoas vivem na pobreza, a situação dos pobres é muito pior. Como eles lidam? Muitas vezes, eles são incapazes. Os pobres de lá têm expectativas de vida curtas, muitas vezes morrendo de doenças evitáveis ou tratáveis ou de acidentes. Na verdade, a maioria dos pobres do terceiro mundo não recebe nenhum tratamento biomédico eficaz. Para muitas pessoas, não existe uma vacina contra a poliomielite. A tuberculose é tão letal quanto a AIDS. O parto envolve risco mortal. Em uma era de desenvolvimento explosivo no domínio da tecnologia médica, é enervante descobrir que as descobertas de Salk, Sabin e até Pasteur permanecem irrelevantes para grande parte da população humana.

 

Há corolários importantes para este sentido de que a injustiça está sendo feita. Uma é que os pontos de vista das pessoas pobres serão inevitavelmente suprimidos ou negligenciados enquanto as elites controlarem a maioria dos meios de comunicação. Assim, as etapas de ver e julgar geralmente serão difíceis, porque interesses estabelecidos, incluindo aqueles que controlam os esforços de desenvolvimento, têm um interesse óbvio em moldar observações e atenuar julgamentos severos sobre condições deploráveis.

 

Finalmente, os teólogos da libertação e as comunidades de base nas quais se inspiram concordam que é necessário agir sobre essas reflexões. A parte “agir” do método implica muito mais do que relatar as próprias descobertas. Jon Sobrino, teólogo jesuíta de EI Salvador, assim se expressou: “Não há dúvida de que a única maneira correta de amar os pobres será lutar por sua libertação. Essa libertação consistirá, antes de tudo, em sua libertação no nível mais elementar – o de sua vida simples e física, que é o que está em jogo na situação atual”. A avaliação do padre Sobrino está em consonância com minhas próprias experiências no Haiti e em outros lugares, inclusive nas ruas de algumas cidades dos Estados Unidos. O que está em jogo, para muitos pobres do hemisfério, muitas vezes é a sobrevivência física.


Paul Farmer prestou assistência médica em Les Cayes, Haiti, depois do furacão de 2016. Foto: Partners in Health

 

A opção preferencial da tuberculose pelos pobres

 

Atuar como médico a serviço de pessoas pobres ou oprimidas é prevenir, sempre que possível, as doenças que as afligem – mas também tratar e, se possível, curar. Então, onde está a inovação nisso? Como uma intervenção em saúde inspirada na teologia da libertação seria diferente daquelas com fundamentos mais convencionais? Na última década, a Partners in Health juntou-se a ativistas locais de saúde comunitária para fornecer cuidados básicos e serviços preventivos a comunidades pobres no México, Peru e especialmente no Haiti, oferecendo o que chamamos de solidariedade pragmática. Frequentemente, nossos esforços médicos têm sido baseados por certos insights da teologia da libertação.

 

Veja a tuberculose (TB), que provavelmente é a principal causa de mortes evitáveis de adultos no mundo. Como ver, julgar e agir em solidariedade pragmática com aqueles que provavelmente adquirirão ou que já sofrem de TB? A parte de observação da fórmula é fundamental, pois envolve uma revisão cuidadosa de uma grande quantidade de literatura que busca explicar a distribuição da doença nas populações, explorar suas características clínicas e avaliar os regimes de tratamento da TB. Esse tipo de revisão é padrão em todo planejamento de saúde responsável, mas a teologia da libertação empurraria a análise em duas direções: primeiro, para buscar as causas profundas do problema; segundo, extrair as experiências e pontos de vista das pessoas pobres e incorporar esses pontos de vista em todas as observações, julgamentos e ações.

 

A revisão cuidadosa da literatura biomédica e epidemiológica sobre TB permite algumas conclusões. Em primeiro lugar, é claro que a incidência da doença não é de todo aleatória. A tuberculose teve suas vítimas entre os grandes, mas é uma doença que desde tempos imemoriais assolou os menos favorecidos economicamente. Isto é especialmente verdade nas últimas décadas. Com o desenvolvimento da terapia eficaz em meados do século, surgiram altas taxas de cura– acima de 95% – para aqueles com acesso aos medicamentos certos pelo tempo certo. Assim, as mortes por tuberculose agora ocorrem quase exclusivamente entre os pobres, tanto aos que residem em nossas próprias cidades do interior quanto nos países pobres do hemisfério sul.

 

As últimas reviravoltas da história – o ressurgimento da tuberculose nos Estados Unidos, o advento da tuberculose relacionada ao HIV e o desenvolvimento de cepas de tuberculose resistentes a todas as terapias de “primeira linha” desenvolvidas nos últimos anos – servem para reforçar a tese de que o Mycobacterium tuberculosis, o organismo causador, faz sua própria opção preferencial pelos pobres.

 

Muitos consideram escandaloso que a principal causa mundial de mortes evitáveis de adultos seja uma doença que, com exceção das novas cepas resistentes, seja mais de 95% curável com a terapia padrão (sarampo e malária, totalmente preveníveis e tratáveis, também matam milhões por ano). Outros expressam desagrado por uma doença parcial a hospedeiros pobres e debilitados e julgam inaceitável a falta de terapia prontamente disponível para aqueles com maior probabilidade de adoecer com TB. Em um sentido muito real, a pobreza coloca as pessoas em risco de TB e as impede de ter acesso a um tratamento eficaz.

 

O recrudescimento da tuberculose raramente é atribuído às desigualdades nativas de nossa sociedade. Em vez disso, ouvimos falar de fatores biológicos (o advento do HIV, o surgimento da resistência às drogas) ou de barreiras culturais e psicológicas à adesão. Por meio desses dois conjuntos de mecanismos, altas taxas de falha no tratamento podem ser convenientemente atribuídas ao organismo ou a pacientes não cooperativos.

 

Há custos para ver o problema dessa maneira. Se o ressurgimento da tuberculose for visto como um fenômeno exclusivamente biológico, os recursos disponíveis serão desviados para, digamos, pesquisas farmacêuticas e imunológicas. Se o problema é principalmente de adesão do paciente, então os planos para tratar da TB são necessariamente baseados em planos para mudar o paciente, não as forças relacionadas à pobreza que são, na minha opinião, comprovadamente as causas da moderna pandemia de TB.

 

Qual seria a parte do agir do método? Em certo sentido, é simples: curar os doentes. A maioria dos estudos de TB no Haiti revela que a grande maioria dos pacientes não completa o tratamento. Isso explica em parte porque a tuberculose é a principal causa de morte de adultos nas áreas rurais. No planalto central do país, trabalhamos com nossa organização irmã, Zanmi Lasante, para conceber um esforço de tratamento da tuberculose que toma emprestado várias ideias, e também alguma paixão, da teologia da libertação. Embora a equipe do Zanmi Lasante tivesse efetivamente identificado e encaminhado pacientes com tuberculose pulmonar para a clínica nos primeiros anos de operação, aos poucos foi ficando claro que a detecção de novos casos nem sempre levava à cura, apesar de que todos os cuidados contra a TB, incluindo medicamentos, eram gratuitos. Os procedimentos foram completamente reexaminados em 1988, depois que três jovens adultos morreram de tuberculose pulmonar antiquada no espaço de alguns meses.

 

O que deu errado? Um grupo de agentes comunitários de saúde e médicos se reuniu para tratar dessa questão (as sessões de discussão foram modeladas na prática das comunidades de base). Muitos no grupo apontaram para fatores dos pacientes. Dizia-se que aqueles que haviam morrido eram não complacentes ou supersticiosos. Outros achavam que os fatores estruturais eram os mais culpados: os pacientes tinham dificuldade em comparecer às consultas ou encontrar alguém para dar-lhes injeções. Um agente de saúde da aldeia observou incisivamente que “só os mais famintos morrem”.

 

Após um longo estudo de dois grupos na área do planalto central, concluímos que a remoção de barreiras estruturais ao cumprimento, quando associada à ajuda financeira, melhorou drasticamente o resultado em haitianos pobres com tuberculose. Esse insight vai direto ao cerne da questão de conformidade. Certamente, os pacientes podem não aderir, mas quão relevante é essa noção na zona rural do Haiti? Os pacientes podem ser instruídos pelos médicos a comer bem. Eles vão “recusar” se não tiverem comida. Eles podem ser instruídos a dormir em um quarto aberto e longe dos outros. Aqui, novamente, forçados por sua pobreza a viver em condições de superlotação, eles serão considerados incompatíveis. Eles serão instruídos a ir a um hospital. Novamente, “negligência grave” ocorrerá se os cuidados médicos forem pagos em dinheiro, como é o caso na maior parte do Haiti.

 

 

Embora se espere que os antropólogos sublinhem a importância da cultura na determinação da eficácia final dos esforços para combater a doença, aprendemos que no Haiti muitas variáveis - exposição inicial à infecção, reativação da tuberculose quiescente, duração da convalescença, desenvolvimento de resistência aos medicamentos, grau de destruição pulmonar e, acima de tudo, mortalidade – são fortemente influenciadas por fatores econômicos. Em um estudo publicado em colaboração com Zanmi Lasante, concluímos que “a velha verdade de que a pobreza e a tuberculose são maiores do que a soma de suas partes é mais uma vez apoiada por dados, desta vez provenientes da zona rural do Haiti e lembrando-nos que tal sinergismo mortal, anteriormente ligado principalmente a cidades populosas, está de fato mais intimamente associado à pobreza profunda”.

 

Cenários semelhantes podem ser descritos em relação a outras doenças, desde a febre tifoide até a AIDS. Em cada caso, as pessoas pobres estão em maior risco de contrair a doença e também menos propensas a ter acesso a cuidados. E em cada caso, a análise do problema pode levar os pesquisadores a se concentrarem nas deficiências dos pacientes (por exemplo, não beber água pura, falta de uso de preservativos, ignorância sobre saúde e higiene pública) ou sobre as condições que estruturam o risco das pessoas (por exemplo, falta de acesso à água potável, falta de oportunidades econômicas para as mulheres, distribuição injusta dos recursos mundiais).

 

Um dos principais benefícios de uma análise desse tipo é que ela encoraja os médicos e outros preocupados em proteger ou promover a saúde a se unirem a pessoas pobres e doentes. Isso é especialmente importante em áreas onde as medidas de austeridade impostas por agências financeiras internacionais estão tornando os cuidados de saúde ainda menos acessíveis às pessoas pobres. De fato, o surgimento de uma “nova ordem mundial” endossada pelo Banco Mundial certamente testará nosso compromisso – e não apenas em lugares como Haiti e Peru. A aprovação da Lei J 87 na Califórnia pode comprometer a assistência médica (e educação) para dezenas de milhares de moradores, especialmente crianças latinas. Para seu crédito, muitos provedores da Califórnia simplesmente se comprometeram a resistir aos esforços para negar serviços às pessoas com base em seu status de imigração. Uma promessa semelhante de resistência pode se tornar necessária para aqueles preocupados com os milhões de estadunidenses que não têm plano de saúde.


Paul Farmer prestou assistência médica em Monróvia, Liberia, no combate à epidemia de tuberculose. Foto: Partners in Health

Uma opção pelos pobres na saúde

 

Tuberculose à parte, o que vem a seguir de uma perspectiva da teologia da libertação na medicina? Para mim, aplicar uma opção pelos pobres nunca implicou a defesa de uma estratégia específica para uma economia nacional. Não significa preferir uma forma de desenvolvimento ou sistema social a outro (embora alguns sistemas econômicos sejam evidentemente mais marcados pela violência estrutural do que outros). Nem o recurso às ideias centrais da teologia da libertação implica necessariamente um compromisso com um determinado corpo de crenças religiosas. A Partners in Health, a organização comunitária que represento, é completamente ecumênica.

 

A primeira lição da teologia da libertação é semelhante àquela que geralmente confronta os curandeiros: a saber, que há algo terrivelmente errado. As coisas não são como deveriam ser. Mas nesta visão o problema é com o mundo, ainda que possa se manifestar no paciente. Como observou Robert McAfee Brown, parafraseando o jesuíta uruguaio Juan Luis Segundo: “A menos que concordemos que o mundo não deve ser como é, não há ponto de contato, porque o mundo que nos satisfaz é o mesmo mundo que é totalmente devastador para eles”.

 

A segunda lição é que há muito a ser aprendido ao refletir sobre as vidas e lutas das pessoas pobres ou oprimidas. Como é melhor explicado o sofrimento, inclusive o causado pela doença? Como deve ser abordado? Essas perguntas são tão antigas quanto a humanidade. Tivemos milênios para abordar – socialmente, de forma organizada – o sofrimento que nos cerca. Ao olhar para as abordagens para este problema, pode-se facilmente discernir três tendências principais: caridade, desenvolvimento e justiça social.

 

Cada um deles pode ter muito a recomendá-lo, mas acredito que as duas primeiras abordagens, caridade e desenvolvimento, são profundamente falhas. Aqueles que acreditam que a caridade é a resposta para os problemas do mundo muitas vezes tendem a considerar as pessoas que precisam dela como intrinsecamente menos do que eles mesmos. Isso é diferente de considerar os pobres como desempoderados ou empobrecidos por meio de processos e eventos históricos, como a inundação de um vale. Há uma enorme diferença entre ver homens e mulheres pobres como vítimas de deficiências inatas e vê-los como vítimas de violência estrutural.

 

A caridade pressupõe ainda que sempre haverá aqueles que têm e aqueles que não têm. Isso pode ou não ser verdade, mas, novamente, há custos para ver o problema sob essa luz. Em Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire assim o expressa: “Para ter a oportunidade contínua de expressar sua 'generosidade', os opressores também devem perpetuar a injustiça. Uma ordem social injusta é a fonte permanente dessa 'generosidade', que se nutre da morte, do desespero e da pobreza”. A conclusão de Freire segue com bastante naturalidade: “A verdadeira generosidade consiste precisamente em lutar para destruir as causas que nutrem a falsa caridade”. Dada a acentuada tendência do século XX de aumentar a desigualdade econômica em face do crescimento econômico, haverá muita falsa caridade no futuro.

 

Na medicina, a caridade sustenta o objetivo muitas vezes louvável de atender às necessidades das populações carentes. Nessa visão, serviços de segunda mão, refugos e remédios que sobraram são distribuídos. Muitos de nós estiveram envolvidos neste tipo de boas obras, e muitas vezes ouvimos o seu lema: “Os pobres sem-abrigo são tão merecedores de bons cuidados médicos como o resto de nós”. A noção de uma opção preferencial pelos pobres nos desafia ao reformular o lema: “Os pobres sem-teto são mais merecedores de bons cuidados médicos do que o resto de nós”.

 

E as abordagens de desenvolvimento? Muitas vezes, essa perspectiva parece considerar o progresso e o desenvolvimento como processos quase naturais. Os tecnocratas que projetam projetos de desenvolvimento – como a barragem de Peligre, planejada e financiada pelos EUA, que deslocou e, portanto, empobreceu dezenas de milhares de camponeses haitianos em 1956 – pedem paciência. “No devido tempo”, eles dizem, “você também compartilhará nosso padrão de vida, ou, se não você, seus filhos”. E certamente, olhando ao nosso redor, vemos em toda parte os benefícios tangíveis do desenvolvimento científico. Então, o que há de errado com isso? Em sua introdução em “Teologia da Libertação”, Gustavo Gutierrez defende que afirmamos nossa humanidade “na luta pela construção de uma sociedade justa e fraterna, onde as pessoas possam viver com dignidade e ser agentes de seu próprio destino. Essa é a minha opinião, o termo desenvolvimento não abarca essas aspirações profundas”. Ele continua seus comentários apontando que o termo “libertação” expressa a esperança dos pobres muito mais sucintamente.

 

Ao examinar a medicina, vê-se o impacto do pensamento desenvolvimentista não apenas na obsolescência planejada da tecnologia médica, mas também em construções analíticas influentes, como o modelo de transição para a saúde. Nessa visão, as sociedades, à medida que se desenvolvem, estão caminhando para essa grande transição em que as mortes não serão mais causadas por infecções como a tuberculose, mas ocorrerão muito mais tarde sendo causada por doenças cardíacas e câncer. Mas esse modelo mascara as diferenças interclasses dentro de um determinado país. Para os pobres, onde quer que vivam, não há transição de saúde. Em outras palavras, cidadãos ricos de nações subdesenvolvidas (aqueles que ainda não passaram pela transição de saúde) não morrem jovens por doenças infecciosas, mas mais tarde e pelas mesmas doenças que atingem populações semelhantes em países ricos. Em partes do Harlem, em contraste, as taxas de mortalidade em certas faixas etárias são tão altas quanto as de Bangladesh; em ambos os lugares, as principais causas de morte em adultos jovens são infecções e violência.

 

Os líderes dos países estão impacientes com essas observações e respondem, se é que respondem, com lembretes nítidos de que são as tendências gerais que contam. Mas se você trabalha a serviço dos pobres, o que está acontecendo dentro dessa classe em particular – seja no Harlem ou no Haiti – sempre conta muito. Na verdade, conta mais.

 

Em resumo, então, os modelos de caridade e desenvolvimento, embora talvez úteis às vezes, são considerados deficientes quando se trata de um exame rigoroso e profundo. Isso deixa o modelo de justiça social. Na minha experiência, as pessoas que trabalham pela justiça social, independentemente de suas próprias posições na vida, tendem a ver o mundo como profundamente falho. Eles veem as condições dos pobres não apenas como inaceitáveis, mas como resultado da violência estrutural causada pelo homem. Muitas vezes, se são privilegiados como eu, entendem que estiveram implicados, direta ou indiretamente, na criação ou manutenção dessa violência estrutural. Sentem então indignação, mas também humildade e penitência.

 

Essa postura de penitência e indignação é fundamental para um trabalho efetivo de justiça social. Infelizmente, muitas vezes está ausente ou, pior, transformado de postura em pose. E, a menos que a postura esteja ligada a intervenções muito mais pragmáticas, geralmente fracassa.

 

Felizmente, abraçar esses conceitos e essa postura tem implicações muito concretas. Fazer uma opção pelos pobres inevitavelmente implica trabalhar pela justiça social, trabalhando com os pobres enquanto lutam para mudar sua situação. De fato, em um mundo dilacerado pela desigualdade, a medicina pode ser vista como um trabalho de justiça social, e a maior parte do que fazemos pode ser vista sob essa luz. No Haiti, Peru e Chiapas, descobrimos, muitas vezes é menos uma questão de desenvolvimento e mais uma questão de redistribuição de bens e serviços, de simplesmente compartilhar os frutos da ciência e da tecnologia. A maioria de nossos esforços na transferência de tecnologia – medicamentos, materiais de laboratório, computadores e treinamento – são concebidos exatamente dessa maneira.

 

 

Uma opção preferencial pelos pobres também implica um modo de análise. Ao examinar a tuberculose no Haiti, nossa análise deve ser historicamente profunda: não apenas profunda o suficiente para nos lembrar do projeto da barragem Peligre que privou a maioria de meus pacientes de suas terras, mas profunda o suficiente para nos fazer lembrar que os haitianos modernos são os descendentes de um povo sequestrado da África para nos fornecer açúcar, café e algodão.

 

Nossa análise também deve ser geograficamente ampla. Muitos acreditam que o mundo como o conhecemos está se tornando cada vez mais interconectado. Um corolário dessa crença é que o que acontece com os pobres nunca está divorciado das ações dos poderosos. Certamente, as pessoas que se definem como pobres podem controlar até certo ponto seus próprios destinos. Mas o controle das vidas está relacionado ao controle da terra, dos sistemas de produção e das estruturas políticas legais e formais nas quais as vidas estão enredadas. Houve, com o tempo, uma crescente concentração de riqueza e controle nas mãos de poucos. A tendência oposta é desejada por pessoas que trabalham pela justiça social.

 

Para quem trabalha na América Latina, o papel dos Estados Unidos é grande. Jim Carney, um padre jesuíta que trabalhou com os pobres de Honduras, expressou-se de forma incisiva:

 

“Nós, norte-americanos, comemos bem porque os pobres do terceiro mundo não comem nada? Não somos nós, norte-americanos, poderosos porque ajudamos a manter os pobres do terceiro mundo fracos? Não oprimimos o terceiro mundo?” (o padre Carney, que tentou viver ao máximo sua opção pelos pobres, foi morto pelas forças de segurança hondurenhas treinadas pelos EUA em 1983).

 

É verdade que já é difícil pensar globalmente e agir localmente. Mas talvez o que realmente somos chamados a fazer, nos esforços para fazer causa comum com os pobres, seja pensar local e globalmente, e agir em resposta a ambos os níveis de análise. Se falharmos nessa tarefa, talvez nunca mudemos as estruturas que criam e mantêm a pobreza, estruturas que adoecem as pessoas.


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