Misericórdia, discernimento e consciência. Um dicionário de teologia de acordo com a sensibilidade contemporânea. Entrevista com José Roque Junges

José Roque Junges, jesuíta e professor de bioética da Unisinos, apresenta o “Dicionário de Teologia Moral” recém-lançado pela Editora Unisinos

Foto: Reprodução

23 Dezembro 2021



Misericórdia, discernimento e consciência são as três palavras-chaves para tratar de temas relativos à teologia moral na nossa era. É nessa perspectiva que foi lançado o Dicionário de Teologia Moral (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2021), organizado por Paolo BenantiFrancesco Compagnoni, Aristide FumagalliGiannino Piana, publicado originalmente em italiano e traduzido pela Editora Unisinos para o português.

 

Segundo o jesuíta José Roque Junges, a nova versão do Dicionário “tenta recolher a novidade que o Papa Francisco traz para a teologia, a vida da Igreja e para o modo de ver os problemas éticos. Essa nova perspectiva se expressa em duas linhas que o Papa Francisco insiste muito, que são muito importantes para a teologia moral e aparecem no modo de elaborar os diferentes verbetes desse dicionário. Uma delas é misericórdia. A moral nunca pode ser rigorista, condenatória. (...) A segunda perspectiva é o discernimento: a moral não tem receitas. A moral não é o Direito. O Direito já tem tudo definido. A moral não tem tudo definido e não tem receitas. A moral justamente necessita do discernimento porque em cada situação temos que saber discernir e deliberar o que é o melhor”, explicou. Além desses aspectos, pontuou, o apelo à consciência para o tratamento das questões morais é fundamental. “A moral tem que estar centrada não na lei, como é o Direito, por exemplo, mas na consciência. É a consciência que tem que discernir”.

 

A seguir, publicamos a apresentação de Junges do Dicionário no formato de entrevista.

 

Pe. Roque Junges (Foto: Susana Rocca | IHU)

 

José Roque Junges possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS, especialização em História do Brasil Contemporâneo pela Unisinos, mestrado em Teologia pela Pontificia Universidad Catolica de Chile e doutorado em Teologia Moral pela Pontificia Università Gregoriana de Roma, Itália. Atualmente é professor das disciplinas de bioética no curso de medicina e professor/pesquisador do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Unisinos. Entre os livros mais recentes publicados, destacamos (Bio) Ética Ambiental (São Leopoldo: Unisinos, 2010); Bioética Sanitarista: desafios éticos da Saúde Coletiva (São Paulo: Loyola, 2014); Epistemologias da Bioética: Ensaios de Hermenêutica crítica (São Leopoldo: Unsinos, 2021).

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Pode apresentar rapidamente o Dicionário de Teologia Moral, lançado recentemente pela Editora Unisinos?

José Roque Junges – A Editora Unisinos acaba de publicar a tradução, feita com muito esmero e profissionalismo, do “Dicionário de Teologia Moral” (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2021). A edição original desse dicionário, que foi publicado logo depois do Concílio Vaticano II, é italiana e a obra está em sua terceira edição. A primeira edição recolheu as reformulações e “aggiornamentos” – como se diz em italiano – da teologia moral feitos depois do Concílio Vaticano II. Esse dicionário, que foi publicado na década de 1960 e reeditado na década de 1990 com uma nova reformulação, foi novamente reeditado na Itália dois anos atrás, em uma versão totalmente reformulada, com uma nova perspectiva muito interessante.

 


Dicionário de Teologia Moral (Foto: Reprodução)

 

IHU – Qual é a nova perspectiva?

José Roque Junges – Essa nova reedição que traduzimos para o português tenta recolher a novidade que o Papa Francisco traz para a teologia, a vida da Igreja e para o modo de ver os problemas éticos. Essa nova perspectiva se expressa em duas linhas que o Papa Francisco insiste muito, que são muito importantes para a teologia moral e aparecem no modo de elaborar os diferentes verbetes desse dicionário. Uma delas é misericórdia. A moral nunca pode ser rigorista, condenatória. O Papa Francisco insiste que a moral, quando analisa problemas ou ações humanas, tem que partir da fragilidade e da vulnerabilidade das ações humanas. Os seres humanos sempre são frágeis, vulneráveis e suas ações nunca podem ser pensadas como perfeitas; elas sempre são contingentes e melhoráveis. Então, temos que olhar para as ações morais sempre com misericórdia.

 

 

A segunda perspectiva é o discernimento: a moral não tem receitas. A moral não é o Direito. O Direito já tem tudo definido. A moral não tem tudo definido e não tem receitas. A moral justamente necessita do discernimento porque em cada situação temos que saber discernir e deliberar o que é o melhor. [Isso significa que] em outro tempo é possível reformular o posicionamento porque se trata de discernir na situação. Essa é a velha tradição desde Santo Tomás de Aquino, ou seja, a certeza moral nunca é uma certeza metafísica ou matemática. Não existe matemática na moral. Na moral só existem certezas contingentes, isto é, certezas e decisões que são reformuláveis.

 

Consciência

 

Se essas duas perspectivas, misericórdia e discernimento, são importantes, tem um terceiro ponto importante: a moral tem que estar centrada não na lei, como é o Direito, por exemplo, mas na consciência. É a consciência que tem que discernir. Isso não significa que a norma não seja importante. É evidente que ela é importante – e isso o dicionário também recolhe –, mas ela não é a referência primeira. O referencial primeiro é a consciência da pessoa, que tem que ver como, naquela situação, a norma se aplica.

 

IHU – Qual é a novidade em relação aos verbetes?

José Roque Junges – O dicionário tem verbetes clássicos de teologia moral, como “norma”, “consciência”, “epiqueia” – que é um termo muito clássico na teologia moral desde a Idade Média, que no fundo trata da questão do discernimento, ou seja, saber aplicar a norma a uma situação concreta. Isso é fazer epiqueia.

 

Tem verbetes novos, que são apenas deste dicionário, que não estão nem nas outras edições. Por exemplo, verbetes que têm relação com a tecnologia digital, como “tecnologia digital”, “cultura digital”, incluindo questões éticas que vêm da cultura digital. Esse dicionário traz isso porque um dos editores, Paolo Benanti, um franciscano italiano, é um grande especialista nesse assunto. Os verbetes sobre esse tema e as questões relativas à mídia são escritos por ele.

 

 

O verbete “economia”, que em geral está em todos os dicionários, nesta versão está muito bem escrito porque foi elaborado por um economista chamado [Stefano] Zamagni, um dos assessores do Papa Francisco. Esse é um verbete que tem grandes novidades.

 

 

 

 

Alguns não têm grandes novidades, como os clássicos, mas outros são novos, não existiam em dicionários anteriores. Também tem verbetes clássicos que foram escritos, pensados e interpretados dentro de uma perspectiva diferente, daquilo que Francisco insiste acerca da misericórdia, do discernimento e da consciência. Essa é a grande novidade desse dicionário e ele poderá ajudar muito a se repensar o que é a teologia moral nas faculdades de teologia. Os organizadores são quatro teólogos moralistas italianos de grande renome: Paolo Benanti, Francesco Compagnoni, Aristide Fumagalli, Giannino Piana.

 

 

 

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