Reforma da previdência: 'a grande questão é o arrocho sobre os mais pobres'. Entrevista especial com Ely José de Mattos

Foto: Henry Milleo | Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | 07 Agosto 2019

A reforma da Previdência em tramitação no Congresso é “excessivamente pesada com os mais pobres” e, se aprovada, irá dificultar a aposentadoria, porque vai “estimular os contribuintes a se aposentarem mais tarde e, em muitos casos, com renda média menor do que hoje”, diz o economista Ely José de Mattos à IHU On-Line. Na avaliação dele, “a reforma poderia aliviar a pressão sobre os mais pobres, repensando, por exemplo, o cálculo médio do benefício. Além disso, poderia ser saudável considerar um sistema de capitalização complementar ao sistema de repartição básico, contando com contribuições de empregados e empregadores. Por fim, penso que seria importante associar à reforma da Previdência uma profunda reforma tributária e também um reforço da proteção social, especialmente dos mais pobres, com incapacidades e também de áreas rurais”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Mattos pontua ainda que a aprovação da reforma pode ter como consequência a diminuição da adesão dos trabalhadores ao sistema previdenciário. “Uma vez que os mais pobres avaliem que pode não valer a pena contribuir para um sistema previdenciário que lhe pagará muito tarde e mal, o volume de contribuições pode automaticamente diminuir, voltando a comprometer o sistema”, adverte.

Ely José de Mattos (Foto: PUCRS)

Ely José de Mattos é graduado em Ciências Econômicas, mestre em Desenvolvimento Rural e doutor em Economia Aplicada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente, leciona no Programa de Pós-Graduação em Economia do Desenvolvimento da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS.


Confira a entrevista.

IHU On-Line - O senhor alega que, assim que entrar em vigor, as medidas relacionadas à reforma da Previdência dificultarão a aposentadoria e diminuirão os benefícios médios de quem se aposentar. Poderia nos detalhar essa perspectiva, apresentando exemplos?

Ely José de Mattos - Não se trata de uma alegação opinativa, mas da própria proposta de reforma. Reformar o atual sistema previdenciário implica em dificultar a aposentadoria no sentido de estimular os contribuintes a se aposentarem mais tarde e, em muitos casos, com renda média menor do que hoje. A economia gerada pela reforma que está em votação vem, principalmente, do aumento do tempo de contribuição, idade mínima obrigatória e redução do benefício médio. Replico abaixo um exemplo que dei em artigo meu publicado em Zero Hora no dia 19/07/2019:

Consideremos como exemplo um empregado de 25 anos de idade, homem, que já trabalhe há cinco anos, com salário de R$ 2 mil. Para solicitar aposentadoria pelas novas regras, ele precisará acumular mais 10 anos de contribuição, pelo menos, e esperar atingir a idade mínima de 65 anos de idade. Assim, se aposentaria ganhando R$ 1,2 mil, a valores de hoje. Para manter a renda de R$ 2 mil na aposentadoria, ele precisaria permanecer empregado com a mesma renda, e contribuindo, por 35 dos 40 anos que ainda lhe faltam.

IHU On-Line - Muitos especialistas têm afirmado que o Brasil precisa fazer uma reforma da Previdência, mas criticam particularmente a proposta do governo. Na sua avaliação, o Brasil precisaria de algum tipo de reforma? Se sim, em que aspectos ela seria diferente da que está sendo proposta pelo governo?

Ely José de Mattos - O atual sistema previdenciário carece de reforma, sim. No entanto, penso que a atual proposta é excessivamente pesada com os mais pobres. Penso que a reforma poderia aliviar a pressão sobre os mais pobres, repensando, por exemplo, o cálculo médio do benefício. Além disso, poderia ser saudável considerar um sistema de capitalização complementar ao sistema de repartição básico, contando com contribuições de empregados e empregadores. Por fim, penso que seria importante associar à reforma da Previdência uma profunda reforma tributária e também um reforço da proteção social, especialmente dos mais pobres, com incapacidades e também de áreas rurais.

IHU On-Line - Por quais razões a proposta do governo não é boa? Quais são as mudanças equivocadas sugeridas nesta reforma?

Ely José de Mattos - Como mencionei anteriormente, a grande questão é o arrocho sobre os mais pobres. Ainda que a maior parte do déficit da Previdência esteja no regime geral, o INSS, o resultado final me parece um esforço grande demais por parte dos mais pobres, que hoje não contam com sistema de proteção social acessório que funcione bem.

IHU On-Line - Quais os limites dessa nova Previdência proposta pelo governo federal?

Ely José de Mattos - Não sei se trataria como “limite”, mas um cenário que me parece factível é o da diminuição da adesão ao sistema previdenciário. Uma vez que os mais pobres avaliem que pode não valer a pena contribuir para um sistema previdenciário que lhe pagará muito tarde e mal, o volume de contribuições pode automaticamente diminuir, voltando a comprometer o sistema. Esse é um cenário que pode parecer um pouco extremado, mas se outras ações, como o reforço da formalização do mercado de trabalho, não vierem em breve, será bastante factível, na minha opinião.

IHU On-Line - De que forma o aumento da idade mínima para aposentadoria de homens e mulheres deve impactar o sistema previdenciário? E quais os efeitos práticos na qualidade de vida dos contribuintes?

Ely José de Mattos - O aumento da idade mínima é o principal pilar da “nova previdência”, na minha avaliação. Impedindo que as pessoas se aposentem mais jovens, há aumento do tempo médio de contribuição que, associado ao cálculo menos generoso do benefício, ajudará a sustentar o sistema de repartição. Com relação à qualidade de vida, o impacto é inegavelmente negativo para uma parcela dos trabalhadores. Para uma parcela significativa, a mudança seria relativamente pequena, uma vez que já se aposentam por idade, recebendo um salário mínimo. Mas, para aqueles que pretendem receber mais que isso, teriam de contribuir por mais tempo ou receber muito menos ao se aposentar — conforme o exemplo que mencionei acima.

IHU On-Line - Atualmente, muitas pessoas antecipam a aposentadoria, chegando a se aposentar com o menor percentual, mas continuam no mercado de trabalho. Quais os riscos dessa estratégia? Com a reforma da Previdência pode haver um aumento dessa estratégia?

Ely José de Mattos - Difícil dizer. Tudo vai depender de como o mercado de trabalho, que também passa por mudanças profundas, vai se consolidar no médio prazo. Partindo de uma perspectiva mais pessimista, pensando em um mercado de trabalho com alta rotatividade estimulada por uma nova legislação trabalhista, é possível que não reste outra opção senão continuar trabalhando. De qualquer modo, me parece difícil fazer qualquer previsão neste momento.

IHU On-Line - Quais os riscos de a reforma da Previdência se converter em geradora de ainda mais pobreza e desigualdade? E quais os caminhos possíveis para evitar que isso ocorra?

Ely José de Mattos - Conforme já apresentei, meu maior receio é a diminuição média dos benefícios associada à aposentadoria mais tardia. Isso deve gerar, sim, maiores níveis de desigualdade e pobreza. Para que isso não ocorra, consideraria os elementos que listei na segunda questão.

IHU On-Line - De que maneira a reforma trabalhista vem impactando a Previdência?

Ely José de Mattos - Sobre isso ainda há muita especulação. Precisamos aguardar a economia se recuperar um pouco para observar como o mercado de trabalho irá se comportar em termos de dinâmica, ou seja, estabilidade ou rotatividade. Eu tenderia a pensar que uma rotatividade maior deve ocorrer, o que pode afastar as pessoas da Previdência, as relegando a um Benefício de Prestação Continuada - BPC ao invés da aposentadoria na velhice. Mas, reforço, é preciso aguardar para sentir estes movimentos.

 

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