26 Dezembro 2023
Espera-se que essa ousadia pragmática e libertadora possa se estender a outros aspectos da vida da Igreja marcados por práticas de desigualdade, como a lugar limitado das mulheres ou o celibato dos padres.
Publicamos aqui o editorial do jornal Le Monde, 19-12-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fazendo evoluir a prática da Igreja Católica em relação aos casais gays e lésbicas, o soberano pontífice distancia-se de seus antecessores, mesmo que não derrube a doutrina tradicional.
Espera-se que essa ambição se amplie para combater outras desigualdades, a começar pelo lugar das mulheres na instituição.
Em relação à história secular da Igreja Católica, a decisão anunciada pelo Vaticano na segunda-feira, 18 de dezembro, de autorizar a bênção aos casais homossexuais é uma virada histórica.
“É possível abençoar os casais em situação irregular [leia-se: os divorciados recasados] e os casais do mesmo sexo”, afirma uma “declaração doutrinal” proveniente do Dicastério para a Doutrina da Fé, o órgão responsável por vigiar o rigor teológico.
Essa autorização não muda em nada a doutrina tradicional da Igreja sobre o matrimônio, que continua sendo a união indissolúvel entre um homem e uma mulher em vista da procriação. Mas, ao traduzir concretamente a evolução liberal liderada pelo Papa Francisco sobre um tema altamente controverso dentro da própria Igreja, tende a pôr fim a séculos de tabu e de ignorância, fonte de ostracismo, de discriminação e de sofrimento.
A prudente evolução teológica permitida pelo texto assinado pelo próprio papa se baseia em uma distinção entre bênção e rito. A primeira está agora autorizada, mas não faz parte do rito litúrgico. Para não ser confundida com um matrimônio, a bênção não poderá retomar nenhum dos elementos do rito.
Essa inovação se inscreve em um pragmatismo que felizmente se distancia dos antecessores que permaneceram no registro da condenação em matéria de homossexualidade. O Papa Francisco não modificou a posição da Igreja em relação à homossexualidade, que continua sendo considerada um comportamento “intrinsecamente desordenado”, mas tem preparado essa evolução há vários anos.
“Quem sou eu – perguntou-se ele em 2013 – para julgar uma pessoa homossexual, se ela tiver boa vontade?” Em 2018, ele tinha tranquilizado uma das vítimas chilenas de um padre condenado pela Igreja por abusos sexuais: “Juan Carlos, não me importa que você seja gay. Deus fez você assim e ama você assim, e estou bem com isso. Você deve ser feliz por ser do jeito que você é”.
Com uma abordagem radicalmente nova, o papa está ao lado dos homossexuais, fala deles e nunca deixa de dizer que a Igreja deve ser acolhedora para com eles, e acompanhá-los, não os rejeitar.
Durante anos, seus gestos simbólicos não se traduziram em mudanças nos fatos. Em março de 2021, uma “nota” da Congregação para a Doutrina da Fé chegou até a fechar explicitamente a porta às bênçãos das uniões entre pessoas do mesmo sexo. Desta vez, a mudança foi anunciada poucas semanas depois da primeira assembleia do Sínodo sobre a Sinodalidade realizada em Roma, em outubro. Durante o Sínodo, ouviram-se testemunhos comoventes sobre os tormentos suportados pelos fiéis homossexuais. É o prolongamento de um olhar sobre a homossexualidade que mudou sob a pressão de algumas Igrejas, como as da Alemanha e da Bélgica, onde os padres abençoam abertamente os casais do mesmo sexo.
A Igreja, portanto, adapta-se muito tardiamente à evolução das sociedades ocidentais, com o risco de incomodar sua ala mais conservadora, não só nos Estados Unidos, mas também na África e na América Latina.
Embora a instituição seja objeto de uma desconfiança alimentada por décadas de agressões escondidas debaixo de um manto de chumbo, espera-se que essa ousadia pragmática e libertadora possa se estender a outros aspectos da vida da Igreja marcados por práticas de desigualdade, como a lugar limitado das mulheres ou o celibato dos padres.
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Bênção aos casais homossexuais: o pragmatismo ousado do Papa Francisco. Editorial do jornal Le Monde - Instituto Humanitas Unisinos - IHU