18 Julho 2023
É um dos pensadores mais relevantes e originais da França. Desde seu célebre ensaio A era do vazio (1983), descreve as características da hipermodernidade, uma era que muda sem cessar. Cavaleiro da Legião de Honra e doutor honoris causa por várias universidades do mundo, Gilles Lipovetsky é também autor dos livros: O império do efêmero, O crepúsculo do dever, A terceira mulher, A sociedade da decepção, A tela global, entre outros.
Diz que está muito ocupado, pois acaba de publicar, na França, Le nouvel âge du kitsch: Essai sur la civilization du “trop”. De Paris, via zoom, conversa com La Tercera sobre o neokitsch, a cultura do excesso, o papel da educação na construção de uma vida com sentido e a evolução de seu pensamento político, da revolução ao reformismo.
A entrevista é de Paula Escobar, publicada por La Tercera, 14-07-2023. A tradução é do Cepat.
Por que nossa época se caracteriza por ser a era do excesso?
O kitsch é caracterizado por um mundo de cópia industrial, barato, considerado como vulgar, aparente. O kitsch tem algo de excessivo, de exagero: muitos tecidos e decorados, pinturas, muitas coisas que querem mostrar a riqueza e o status das pessoas.
O problema é que esse status excessivo mudou de escala. Antes era o pequeno mundo interior burguês, mas, hoje, existe um megakitsch. Olhe para a Disney World, os parques de diversões, os centros comerciais. Olhe para os consumidores que saem dos hipermercados cheios de mercadoria ou olhe para o show business; Lady Gaga ou Madonna, com um excesso de cor, de lantejoulas.
Então, passamos de um excesso que estava no pequeno mundo burguês para um generalizado. É algo para se observar como a internet e as redes sociais nunca param de mostrar dezenas de fotos sobre o que as pessoas comem, compram e onde estão.
Antes, o kitsch estava muito separado do resto, mas, hoje, mesmo as áreas que não eram kitsch florescem com ele. O luxo, por exemplo, a marca Gucci, Trump e sua torre de novo rico; inclusive, o design também se tornou kitsch. Áreas que antes não estavam nisso, incorporaram o kitsch com sua lógica própria. O excesso foi ganhando cada vez mais setores de nosso mundo.
Você diz que a civilização do excesso é também a do estresse, da falta de qualidade de vida, da ausência de sentido. Por que estamos assim?
Estamos na era da ansiedade e da insegurança, uma insegurança generalizada. Hoje, temos medo da mudança climática, da globalização, da migração descontrolada. Na vida privada, não há estabilidade, há divórcios, separações.
Estamos obcecados com a qualidade da nossa alimentação. Estamos lendo o tempo todo informações alarmistas sobre os alimentos, o ar que respiramos, estamos obcecados com a dimensão da ameaça sobre as nossas vidas.
Nos anos 1960, só falávamos de sexo! Falávamos de libertação, não de saúde, nem de poluição. A atmosfera mudou, estamos em estado de ansiedade, de medo, de mal-estar, porque somos bombardeados por informações, mas também porque o modo de regulação tradicional não funciona mais.
Não se trata de dizer que antes as pessoas eram felizes, isso é um absurdo, mas, hoje, em uma sociedade hiperindividualista, tudo recai sobre as nossas costas, o que nos impulsiona a sermos autossuficientes e a buscarmos o bem-estar total. Isso tem como contrapartida um mal-estar permanente.
Qual é a solução? Você falou de uma ética da sobriedade...
Penso que é necessário (ter) uma sociedade de “menos”, a ética da sobriedade é uma de “menos”. É necessária. Consumimos muito, acumulamos muito: não há necessidade de trocar de celular a cada dois anos!
Hoje, sabemos que é preciso economizar energia, poluir menos, reciclar os materiais. É preciso adotar medidas sensatas. Contudo, quero dizer que não é pela diminuição que encontraremos a solução. Não está certo comer tanta carne, claro, é preciso usar mais a bicicleta do que o carro, muito bem, mas tem milhares de pessoas que querem ter um carro no mundo hoje...
A solução não é dizer às pessoas que isso está errado, não é pela moral que chegaremos a uma solução. Ela passa pela tomada de consciência do Estado e o poder público de que devem fazer investimentos consideráveis para a transição energética, as energias renováveis, a economia circular.
As empresas devem mudar sua forma de produzir. É preciso inventar o novo modo de produção; é preciso ter o avião a hidrogênio, carros que não só consumam menos gasolina, mas elétricos.
São investimentos consideráveis e é necessário mobilizar toda uma sociedade, os laboratórios, os pesquisadores, o estado, não apenas o consumidor. Hoje, há uma tendência a este último.
Por quê?
Para que as pessoas entendam que a culpa é delas, que devem prestar atenção em tudo. Contudo, não está à altura do problema planetário! Hoje, os chineses usam cada vez mais usinas a carvão. A bicicleta é boa, mas não é a solução. Este é um problema global, que passa pela reestruturação das nossas economias: passar da energia fóssil à energia renovável. Sem isso, não há solução.
A moral cabe muito bem a título pessoal, mas não é a solução para um problema da civilização como é a crise climática, o aquecimento global e o empobrecimento da biodiversidade. Não é a chave que abre o caminho para um futuro melhor.
Você defende que a educação é crucial para uma vida com um sentido para além da moda e as marcas. Como isso deve ser pensado?
É difícil conseguir tudo o que falamos antes, mudar o sistema internacional, porque os países pobres não têm os meios para investir. No entanto, a educação depende dos pais e da escola nacional, e não é tão caro! Pode ser feito!
Mudar o sistema moderno internacional é complexo, parar a guerra na Ucrânia, nem você e nem eu temos o poder de mudar isso, são forças supranacionais, mas a escola não. Sim, podemos mudar o modo de educar sem que envolva uma fortuna.
Eu defendo um papel mais ativo. Devemos repensar o lugar da cultura geral, da prática artística, para que a vida não consista apenas em produzir e consumir. Se for só isso, é muito pobre... não é apaixonante.
O que é o apaixonante?
Fazer algo que tenha sentido. E para isso é necessário se preparar, mostrar para as crianças que podemos (realmente) viver. Tudo bem em comprar e com as marcas, mas não é a finalidade da vida.
Quando você vai a Santiago em um domingo, todo mundo está no centro comercial, as ruas estão vazias. Só os centros comerciais atraem as pessoas! É triste porque o belo da vida é inventar, criar, ser solidário, amar, ser justo, fazer coisas interessantes, escrever, dançar, criar uma empresa...
Na escola, deve-se começar a falar sobre isso, uma educação mais criativa, que dê sentido à existência. E podemos fazer isso sem envolver enormes recursos. É responsabilidade do Estado, dos pais, dos eleitores, saber e considerar que a cultura geral, a prática da arte, não é algo secundário porque é algo bom para a realização da vida.
Quando se considera que não existe nada mais a não ser aumentar a riqueza material e saber fazer algoritmos para educar, eu me preocupo com o futuro: teremos um futuro pobre. A escola tem um papel imprescindível nesse sentido.
Como vê a juventude de hoje? Parece contraditório estar tão preocupada com a mudança climática, mas também fazer parte da cultura do hiperconsumo.
O que você diz está correto. O frenesi da juventude pela moda, as marcas, está aí. Contudo, não se deve ser muito pessimista, porque também vemos que muitos fazem parte de associações de diferentes tipos. Criadores de startups, por exemplo. Querem ganhar dinheiro, isso não é ruim.
O liberalismo não é o diabo, é o ultraliberalismo que é ruim. Insisto nesse ponto. E, hoje, muitas pessoas estão orgulhosas em criar startups, porque se sentem úteis para um futuro melhor. Criam serviços novos para idosos, doentes, aparelhos que consomem menos energia. Os jovens agricultores buscam uma produção orgânica, ao contrário de seus pais.
Na juventude, há um apetite por atividades que têm um sentido, um sentido que que é útil para o coletivo. Antes, o sentido era a religião, era preciso imitar a Cristo, uma vida exemplar. Depois, com as grandes ideologias, era preciso viver pelo futuro, pelo comunismo. Hoje, buscamos o sentido...
O consumo é fácil, com um pouco de dinheiro, você tem um pouco de satisfação, e se você não tem mais nada, o que resta? O consumo como uma forma de existir. Eu não os condeno, não possuem mais nada. Não é culpa dos jovens.
Você fez parte do movimento icônico dos jovens: o Maio de 68 francês. Como observa as ideias que você tinha naquela época e as de hoje?
Maio de 68 foi um movimento jovem e estudantil, caracterizado pelas utopias. Utopias de mudar o mundo, de liberdade sexual, liberdade no trabalho, na escola, em tudo. Hoje, em grande medida, os jovens vivem essa liberdade. E, hoje, não vejo grandes utopias propiciadas pelo romantismo, nem nada parecido.
Agora, a utopia está sendo fomentada pelo transumanismo, por todos esses profetas californianos, como Elon Musk, que nos dizem que vamos vencer a morte, que vamos hibernar a humanidade, que vamos vencer todas as doenças. Passamos de uma utopia romântica a uma tecnológica. Foi a tecnologia que tomou conta.
Não sou antitecnologia, mas não concordo que a tecnologia possa te fazer feliz, ela te presta um serviço, mas a felicidade é outra coisa. A felicidade é um mistério. Agora, eu não tenho a chave da felicidade, não sou um guru, mas posso pensar em um mundo onde os jovens e as pessoas comuns vivam de forma diferente. E a criação, a cultura, a informação de qualidade nos permitirão desfrutar de momentos de felicidade.
Maio de 68 foi uma inspiração para jovens esquerdistas em todo o mundo. O que define a esquerda, hoje? O que deveria defini-la?
Maio de 68 realmente ficou para trás. Sou quase um dos últimos sobreviventes, tinha 24 anos. Já não é o mesmo mundo: Maio de 68 era um cavalo para o futuro, mas, ao mesmo tempo, tinha um pé no passado, naquela imagem romântica e com a ideia revolucionária.
A revolução me parece uma ideia ruim e é bom que não a tenhamos mais. Sou reformista, mas um reformista liberal e ambicioso. Acredito na reforma, não na revolução, mas acredito em uma reforma profunda, e podemos fazê-la. É a única maneira de avançar para o melhor.
A revolução é retórica. A extrema esquerda… são palavras. O que substitui o mercado? Qual modelo? Ninguém quer uma economia dirigida, e se não for o mercado, o que será? Não sabemos realmente o que propõe.
Contudo, por outro lado, o mercado pode ser regulado, não é uma realidade intangível. As reformas fiscais são necessárias para combater as grandes injustiças. São necessárias reformas profundas para avançar na transição energética. Precisamos de uma reforma profunda do sistema educacional.
A social-democracia pode não estar morta, mas está muito, muito doente, (mas) pode ressurgir de suas cinzas. No momento, o que está ascendendo é uma direita populista, que é muito perigosa.
Por quê?
Às vezes, falamos de extrema direita, mas a extrema direita neonazista é minoritária. É a direita populista que experimenta uma ascensão constante. Mesmo na França, país republicano, hoje o Reagrupamento Nacional, o partido de Le Pen e agora de sua filha, está às portas do poder.
Não é fascismo, é uma direita populista que é perigosa, pois trabalha sobre o ódio às elites, às elites intelectuais, econômicas, políticas e midiáticas, e estabelece as categorias de uns e outros. Vimos a desgraça trazida por Donald Trump: houve um ataque ao Capitólio!
Devemos lutar contra o populismo porque mente, dá informações falsas ao cidadão. Vimos isso no Reino Unido. A direita populista ganhou o Brexit porque deu informações falsas aos cidadãos britânicos. Trump não para de dizer mentiras, é incrível.
E a esquerda?
Acredito que há espaço para a esquerda na democracia, não é bom que não haja mais uma esquerda credível. Precisamos reconstruir uma esquerda reformista, uma esquerda responsável, precisamos de alternância na democracia. Temos muito com o que nos preocupar.
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“Passamos de uma utopia romântica a uma tecnológica”. Entrevista com Gilles Lipovetsky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU