Santificar o Nome. Artigo de Flávio Lazzarin

Mais Lidos

  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS
  • Povos Indígenas em debate no IHU. Do extermínio à resistência!

    LER MAIS
  • “Quanto sangue palestino deve fluir para lavar a sua culpa pelo Holocausto?”, questiona Varoufakis

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

08 Junho 2023

"O martírio, que brota da Páscoa de Jesus, é um dom gratuito do Espírito e não fruto do nosso radicalismo ideológico. É uma vocação doada que coloca os fiéis sempre do lado dos perseguidos e nunca do lado dos perseguidores e os convida a superar cotidianamente a tentação política de reagir à violência e à injustiça com as mesmas atitudes e as mesmas armas dos ímpios".

O artigo é de Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), publicado por Settimana News, 02-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Repetimos a oração do "Pai Nosso" todos os dias e normalmente renunciamos à exegese desse texto que Mateus e Lucas nos deixaram em dom. Perdemos, com isso, a oportunidade de levantar um pouco o véu que cobre a luz da Palavra destinada a iluminar nossa vida, nossa história.

Alguns dias atrás, a página de um livro quebrou por um momento o hábito da repetição sem meditação. E, mais uma vez, foram os profetas que profetizam no arraial (Nm 11,24-29) a alimentar os pensamentos teológicos. Estou lendo "O preço do monoteísmo", de Jan Assmann [1], e inesperadamente me deparo com esta consideração: “para judeus e para cristãos... o nome de Deus, mesmo quando é proibido nomeá-lo, permanecendo quase oculto, desempenha um papel fundamental, a ponto de decidir entre vida e morte: Kidush Hashem – santificar o nome – para os judeus é a fórmula do martírio, enquanto os cristãos rezam santificado seja o vosso nome”.

Sem perder tempo, faço uma busca rápida na rede e encontro a confirmação da menção de Assmann.

Kidush Hashem é um preceito do judaísmo: “E não profanareis o meu santo nome, para que eu seja santificado no meio dos filhos de Israel. Eu sou o Senhor que vos santifico; que vos tirei da terra do Egito, para ser o vosso Deus. Eu sou o Senhor” (Lv 22,32-33).

A santificação do nome torna-se um símbolo de martírio não nas narrativas bíblicas, mas, muito mais tarde, nos trágicos acontecimentos da última revolta dos zelotes contra as legiões de Roma. O Talmude Babilônico define o martírio dos judeus durante as perseguições do imperador Adriano (132-135 d.C.) como santificação do Nome.

O nome de Deus é santificado quando o judeu está disposto a perder a vida para não desobedecer aos três mandamentos fundamentais: a proibição de adoração de ídolos, a proibição do incesto e do adultério, o homicídio. Enquanto todos os outros 610 mandamentos podem ser quebrados para salvar a própria vida – e devem ser quebrados para salvar mesmo uma só vida – nesses três casos é preciso estar pronto para enfrentar o martírio.

Os judeus, que testemunharam com o martírio a fidelidade à Lei, são chamados hedoshim, santos, que santificaram o Nome de Deus. Também os judeus assassinados e exterminados por serem judeus, como os seis milhões do Holocausto, são lembrados como kedoshim. Assim como os judeus que foram mortos ou exilados durante as Cruzadas ou pela Inquisição espanhola e portuguesa, que são considerados santos, porque não traíram sua fé.

Muito se discutiu nos últimos cem anos se também a resistência zelote de Massada (73 d.C.), narrada por Flávio Josefo, foi marcada pela opção do Kidush Hashem, a morte em santificação do Nome, em oposição à obediência ao invasor romano.

O suicídio em massa ocorrido em Massada foi inicialmente motivo de orgulho nacionalista para o estado de Israel, como se fosse uma metáfora do persistente confronto com nações vizinhas e hostis, mas posteriormente autoridades israelenses – como Ben Gurion – criticaram o suicídio de Massada como escolha política desesperada e estratégia militar desde o início sem vias de saída.

Além disso, a morte dos 900 zelotes foi criticada por religiosos renomados que consideram o suicídio uma infidelidade à Torá e uma ilegítima resposta religiosa à opressão política. Em suma, para muitos judeus a alternativa ortodoxa ao suicídio coletivo de Massada foi a escolha do rabino Yochanan Ben-Zakai, que fugiu, escondido em um caixão, da Jerusalém sitiada pelas legiões romanas para fundar a escola de Yavne, lugar de estudos e de oração, semente da autonomia judaica e fiel guardiã da memória.

De fato, fica a autoridade dos antigos testemunhos históricos e teológicos que nos falam da santificação do Nome apenas no caso dos mártires da segunda revolta contra os romanos de 135 d.C.

A conexão profunda entre santificação do Nome e o martírio é uma profecia que nos foi doada por nossos irmãos judeus. Esta exegese alimenta a espiritualidade e a reflexão teológica. Seria necessário, portanto, ampliar o comentário sobre o 'Pai Nosso' do Catecismo da Igreja Católica [2], e explicitar radicalmente que quando rezamos “Santificado seja o vosso nome” falamos da nossa frágil e sempre ameaçada decisão de seguir Jesus de Nazaré, enfrentando os poderes deste mundo até a Glória da Cruz.

O martírio, que brota da Páscoa de Jesus, é um dom gratuito do Espírito e não fruto do nosso radicalismo ideológico. É uma vocação doada que coloca os fiéis sempre do lado dos perseguidos e nunca do lado dos perseguidores e os convida a superar cotidianamente a tentação política de reagir à violência e à injustiça com as mesmas atitudes e as mesmas armas dos ímpios.

Descobrimos, também na história recente das Igrejas da Abya Yala, não apenas os mártires assassinados, mas vidas muito mais numerosas inteiramente dedicadas – martirialmente – ao testemunho.

Só o ágape desarmado e obstinadamente confiante na Misericórdia pode vencer, mesmo quando somos derrotados e tudo parece perdido. Realmente é preciso ir muito além e contra a blasfêmia constantiniana que reduz a cruz a um estandarte de guerra e à celebração mágica de uma vitória militar.

A blasfêmia constantiniana infelizmente reaparece nas reedições mais atuais do tradicionalismo católico, aliado das novas direitas inimigas da vida e dos pobres.

Notas

[1] Assmann Jan. O preço do monoteísmo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2021, p. 36.

[2] “A palavra ‘santificar’ deve ser entendida, aqui, antes de mais, não no seu sentido causativo (só Deus santifica, torna santo), mas sobretudo num sentido estimativo: reconhecer como santo, tratar de um modo santo. É assim que, na adoração, esta invocação é por vezes entendida como louvor e ação de graças (57). Mas esta petição é-nos ensinada por Jesus na forma optativa: um pedido, um desejo, e expectativa na qual Deus e o homem estão empenhados. Desde a primeira petição ao nosso Pai, mergulhamos no mistério íntimo da sua divindade e no drama da salvação da nossa humanidade. Pedir-Lhe que o seu nome seja santificado é envolvermo-nos ‘no desígnio benevolente que Ele de antemão formou a nosso respeito’ (Ef 1, 9), para que ‘sejamos santos e imaculados diante d'Ele, no amor’ (Ef 1, 4). Nos momentos decisivos da sua economia, Deus revela o seu nome; mas revela-o realizando a sua obra. Ora esta obra só se realiza, para nós e em nós, se o seu nome for santificado por nós e em nós. (CIC 2807-2808).

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Santificar o Nome. Artigo de Flávio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU