08 Abril 2021
"O Brasil sob do desgoverno de Bolsonaro e durante o período em que Ernesto Araújo afirmou gostar da condição de “pária mundial”, desfilava a bandeira contra o suposto “globalismo”. Conceito vazio, não aceito academicamente e menos ainda em fóruns diplomáticos", escreve Bruno Beaklini, cientista político e professor de relações internacionais de origem árabe-brasileira, editor dos canais do Estratégia & Análise, em artigo publicado no portal Monitor do Oriente Médio.
A pandemia do coronavírus prova que as condições da existência soberana dos países e o estatuto de cooperação no Sistema Internacional são fatores muito concretos. Estados nacionais dotados de capacidade instalada, áreas de concentração em pesquisa (mesmo que sem escala de fabricação) e expertise científica podem desenvolver-se dentro da economia política da saúde, e atingir níveis importantes de independência e até internacionalização.
O caso brasileiro é ímpar. Temos as condições objetivas, mas uma ausência de mentalidade estratégica em alto nível decisório. Isto decorre de dois fatores. O de longo prazo é a sanha privatista que estamos vivendo desde o golpe jurídico-parlamentar. Já o fator verificado no curto prazo é a estupidez negacionista do “governo” Jair Bolsonaro que atrasou – e segue atrasando – as condições para o combate ao Covid-19.
No momento em que escrevemos o artigo, só temos vacinas no país graças à preservação de capacidade instalada e expertise do Instituto Butantan e da Fundação Oswaldo Cruz. Especificamente, ainda mais presente do que a vontade de realização da inteligência científica da Fiocruz, a Coronavac, a vacina com patente da República Popular da China, só está sendo fabricada no Brasil porque houve um racha dentro da direita, com o governador João Dória - um baluarte golpista e eleitor de Bolsonaro em 2018 – confrontando-se com a comunicação xenófoba, racista e anti-chinesa proferida pelos familiares do presidente e alguns de seus ministros.
Não resta dúvida alguma que o convênio com a Oxford/AstraZeneca se deu em função do avanço da negociação entre o Butantan e a vacina desenvolvida pela Sinovac. O mesmo ocorre agora, novamente, com a reprodução de tecnologia estadunidense no instituto vinculado ao governo estadual de São Paulo, e a capacidade em curto prazo de produção do ingrediente farmacêutico ativo e, com isso, poder superar a dependência na importação do componente fundamental de qualquer medicação.
A cooperação internacional entra aqui: “A ButanVac é resultado de um consórcio internacional que tem, como produtores públicos, o Butantan, o Instituto de Vacinas e Biologia Médica do Vietnã e a Organização Farmacêutica Governamental da Tailândia. A tecnologia da Butanvac usa o vírus da doença de NewCastle desenvolvido por cientistas na Icahn School of Medicine no Mount Sinai, em Nova York, Estados Unidos. A proteína S estabilizada do vírus SARS-Cov-2 utilizada na vacina com tecnologia HexaPro foi desenvolvida na Universidade do Texas em Austin”.
Deste modo, podemos afirmar que a Butanvac é fruto da disputa direta entre um governo subnacional (o do estado de São Paulo) com o governo federal, desenvolvendo a Versamune, um consórcio da Faculdade de Medicina da USP Ribeirão Preto com uma empresa de tipo startup (Farmacore) e o laboratório dos EUA, PDS Biotechnology.
Dessa forma valem os fundamentos de qualquer racionalidade. Mesmo que estejamos atrasados na produção da vacina, se não fosse a capacidade instalada, a expertise cientifica e o Plano Nacional de Imunizações (PNI), simplesmente não teríamos nada. Infelizmente, nem a ciência brasileira e nem o Sistema Único de Saúde (SUS) foram capazes de superar o dom de Bolsonaro e seus auxiliares diretos para ampliar a desgraça no país.
A condição de pária mundial e neocolonizado de Jair Bolsonaro levou o Brasil a não avançar nas negociações para adquirir a vacina russa. O Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA (HHS) foi comandado por Alex Azar entre 2018 e 2021 sendo este um ex-executivo da indústria farmacêutica. Alegando “evitar influências maléficas nas Américas”, a pasta ministerial do Império que regula a agência de vigilância sanitária, FDA (Administração de Alimentos e Medicamentos) e CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) simplesmente usou de “persuasão diplomática” para evitar que os esforços científicos de Cuba, Venezuela e Rússia fossem disseminados pelas Américas.
O discurso é de segurança hemisférica, como se estivéssemos na Guerra Fria da Bipolaridade. A aplicação é genocídio organizado, impedindo que populações inteiras tenham acesso a mais possibilidades de vacina. E a prática nem chega a ser reserva de mercado, pois não resultou em acordo com um laboratório diretamente vinculado aos contratos do governo federal dos EUA. A pressão imperialista em nosso país poderia ter sido realizada pelo “adido de saúde” da embaixada estadunidense. Como se não bastasse, a Anvisa vem atrasando todos os processos referentes à aquisição da Sputnik, desenvolvida pelo Instituo Gamaleya e financiada pelo fundo soberano RDIF.
A situação na cooperação internacionalizada é ainda pior. Em 2020, o governo Bolsonaro, com a dupla de ministros Eduardo Pazuello (Saúde) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores), hesitou em fazer parte do consórcio mundial de vacinas, o Covax. Depois de muita pressão no país, os representantes brasileiros aceitaram comprar vacinas para alcançar a cobertura de 10% da população brasileira. A mudança de comportamento do país veio através de Marcelo Queiroga, o cardiologista que assume a pasta da Saúde no momento em que o Brasil é o epicentro da pandemia mundial.
O indicado pelo senador Flávio Bolsonaro (REP-RJ) teria aumentado o pedido no Covax visando alcançar 20% de nossa população. Isso implica em passar para 80 milhões de doses, condição perfeita para uma “virada na imagem da capacidade de gestão do governo”. Puro engano. A primeira encomenda do Brasil, ainda durante a fase assumidamente “anti-globalista”, foi de 42 milhões de doses, das quais o país recebeu apenas um milhão até o fechamento desse artigo e aguarda outras nove milhões de doses para maio! A negligência é óbvia; tivesse o governo federal feito o pedido maior com seis meses de antecedência e hoje teríamos o dobro disponível. E estamos falando do consórcio mundial Covax, administrado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Se o Brasil tivesse ainda alguma capacidade de liderança, se preocuparia em adquirir vacinas em grande volume; transferência de tecnologia e capacidade instalada; além de, obviamente, defender em escala mundial a quebra das patentes das vacinas para combater o coronavírus. Todo avanço científico e o desenvolvimento da tecno-ciência, incluindo a área da saúde com os complexos médico-hospitalares e químico-farmacêuticos necessariamente precisa de financiamento de longo prazo. Para atingir essas metas, costuma obedecer a seguinte “lógica” no processo de acumulação: o Estado, através de seus tesouros, estabelece fundos soberanos e setoriais. As empresas recebem estes recursos e transformam a extração de riqueza coletiva em aumento de ganhos privados. Não bastassem financiar a pesquisa, depois os governos centrais compram as vacinas com margens e em condições emergenciais.
O Brasil sob do desgoverno de Bolsonaro e durante o período em que Ernesto Araújo afirmou gostar da condição de “pária mundial”, desfilava a bandeira contra o suposto “globalismo”. Conceito vazio, não aceito academicamente e menos ainda em fóruns diplomáticos. Diante das “ameaças globais”, não enfrenta nenhuma e se alinha de forma ainda mais subserviente aos Estados Unidos. Se tivesse aplicado o conceito correto de globalização capitalista corporativa, estaria preocupado em fortalecer o eixo dos BRICS e quebrar as patentes que são uma ameaça ao acesso universal da ciência para combater a pandemia.
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O “pária mundial” e o atraso nas vacinas do Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU