15 Outubro 2020
"O verso gravado no corpo é o erro que macula a língua oficial, da autoridade, dos homens que, não é preciso afirmar, já no tempo teresiano, são os que têm prioridade no exercício da palavra. Desobedecê-la, por vias indiretas, como num latim incorreto, ou por vias diretas, na con-frontação: eis o labor ardente de Teresa".
O artigo é de Jonas Samudio, escritor e estilista, criador da grife TTERESA, dedica-se às relações entre mística, erotismo e feminino, tecidas no corpo e na escrita. Formado em Filosofia, Teologia e Letras, é mestre e doutor em Estudos Literários. Publicou A mais aberta (Cas’a Edições, 2017), Mão de fora e suas histórias, com ilustrações de Kleriston Kolive (Edição do Autor, 2017), Demasiado alinho sobre TTERESA (2019, Edição do autor, 2019), “Véus seus” (Revista Em tese, 2019) e Pétala pele (Cas’a Edições, no prelo).
“Como não pode compreender o que entende, é não entender entendendo”. [1]
Do doutorado de Santa Teresa, sabe-se que, em 27 de setembro de 1970, o papa Paulo VI declarou-a – o início de sua homilia, aliás, diz: “Nós conferimos, ou melhor, Nós reconhecemos o título de Doutora da Igreja a Santa Teresa de Jesus” [2] – a primeira de outras quatro – S. Catarina de Sena, em 04 de outubro de 1970, também declarada pelo mesmo papa, S. Teresa de Lisieux, a Teresinha do Menino Jesus, em 19 de outubro de 1997, por João Paulo II, e S. Hildegarda de Bingen, em 07 de outubro de 2012, por Bento XVI. São apenas quatro doutoras, frente a trinta e dois doutores homens.
Aqui, toca-me falar de um erro de Santa Teresa. Porém, antes de passar a ele, reparo que “erro”, substantivo masculino, tem, pelo menos, duas significações que me interessam e, por isso, as considero determinantes no título, como pro-vocação. Ou in-vocação pro-vocante. Ou como a voz que intitula, na qual Teresa, permitam-me a intimidade, é a figura mirada e, este texto, uma pequena seta de con-sideração, seta de-siderata: sim, sideradas na imensidão mais imensa, no regaço do infinito. No desejo do Longeperto, diria Marguerite Porete; no desejo da poesia, poderia acrescer, e no abraço de ambos.
Do erro, como dizia, chegamos a error, -ris, no latim: trata-se, de um lado, do desacerto, do engano passível de condenação, da falta, também moral. De outro lado, é errância, é o vaguear, é o peregrinar sem destino. É a destinação errante, tal como a escrita, que assume, de igual modo, o risco do erro, e o risco de, nesse exercício, se perder. Nesse caso, tratar dos erros de Teresa, seria, talvez e também, tratar dos riscos de heresia que, como a tantos, assombrou textos e autora – basta que nos recordemos os períodos em que sua obra esteve sob investigação dos eclesiásticos e que, passando pelo crivo dessa censura, conheceu o caminho da publicação, ao contrário de outros que, como o Espelho das almas, da já citada beguina Marguerite Porete, chegou até nós graças ao apagamento de sua autoria, terrível saída para salvar, das chamas, os livros impressos, as mesmas chamas que dizimaram a vida de sua autora. [3] Ademais, aos olhos de uma certa moralidade cristã desesperada pela salvação das almas e que, à custa dessa salvação, investe na tristeza e na perda da alegria, do corpo, do respeito pelas diferenças, da luta contra todas formas de injustiça, é preciso dizer: Santa Teresa está, de fato, errada. Ao menos, em alguns dos elementos que aqui elencaremos.
Há, pois, esse erro. Mas não só: há o erro dos peregrinos. Dos errantes, dos que, vagando, conhecem o risco, o perigo, e a vida que os inclui, a vida como aposta desatinada. Conhecem os lugares encruzilhados e, neles, em todos os lugares, não fixam morada. São os que poderíamos chamar de transeuntes, não obstante todos o sermos, a cada vez e por vezes, também no pensamento que, se não se enrijece numa sistematização restrita, erra e erra. Tenta, se arrisca, retorna, avança, por errâncias.
Alguns escritores são da comunidade dos errantes. Escritoras, mais particularmente, dentre as quais Teresa, a errante das fundações de carmelos descalços, errante das faltas: “por minha pouca memória, creio, omitirei muitas coisas bem importantes e direi outras que poderia escusar. Em suma, mostrarei em tudo meu pouco engenho e saber, e também a falta de vagar com que escrevo”. [4] Pouca memória e muito desejo, o vagar da escrita, o di-vagar tão de-vagar. Errância das errâncias, a de quem escreve. A escrita, pois, labor errante – que erra e vaga, de erro em erro, em erros atravessando erros. Entender não entendendo, por certo, também erro e falta – enfraquecido, aí, todo conteúdo moral – e vagar, a escrita parece ser um trajeto, uma trajetória de, frente à espessura da Verdade, fazer ver o vago em que estão entregues as coisas, o próprio delas. E escrever, o modo de a-bordá-las incandescentes, abrasadas, para permanecer no vocabulário de nossa santa madre – pois as afirmações: “a verdade da literatura estaria no erro do infinito” e a “errância, o fato de estarmos a caminho sem poder jamais nos deter, transforma o finito no infinito”, [5] nos empurram a outra: o erro e a errância da escrita.
No que tange à santa Teresa, dedico-me, agora, a um desses erros, testemunhado pela ortografia. Dizemos que a sua escrita erra sobre a língua dos varões em sua árdua “tendência a teorizar [...] num princípio rígido”. [6] Para escritoras como Teresa, há rigor, não rigidez, e rigor não apenas naquilo que se diz e escreve, mas no modo de fazê-lo. No Livro da vida, lemos: “Esclareceu-me Deus a inteligência, umas vezes com palavras, outras sugerindo-me o modo de me exprimir”. [7] O infinito como a própria instauração do infinito que atinge o finito na sua qualidade pretensamente espessa: escrever algumas poucas palavras diante do imensurável das possibilidades que as letras – apenas 26, em nosso alfabeto – oferecem. Na língua mística, Deus que, como infinito, ao avançar sobre a semântica dos amantes é a sua própria chegada, e chegada que carrega uma exigência como pedido: se há um modo de o exprimir, a mística, como escrita, o encontra, ou inventa, não havendo, entre as experiências, diferença, mas uma vertigem, a do dizer o que não se pode numa língua que, agora a pouco, inexistia, e, já agora, é insuficiente:
Via eu que o Senhor me estava falando: olhava aquela grande formosura e notava a suavidade – por vezes o rigor – das palavras daquela formosíssima e divina boca. Desejava em extremo perceber a cor de seus olhos e saber a sua altura para o dizer depois, mas jamais o mereci, nem há esforço que o consiga; antes tudo se desvanece diante de minha vista. [8]
Na errância dessa língua, Teresa tece uma poética do espontâneo, de uma expansiva intimidade: deseja ver para partilhar sua visão. Seu texto se situa na zona de uma escrita dedicada ao impossível de escrever que se escreve, apontando para tal impossibilidade na ponta de suas penas: frases simples, um tom coloquial de alguém que está próximo e se dirige a vários interlocutores (Deus, os padres que ordenaram a escrita, as irmãs que, de certo, teriam acesso ao texto, também os clérigos e inquisidores que julgariam a ortodoxia daquilo que continham). Teresa não escreve para si, tanto que não corrige a escrita e parece escrever de um impulso – são frequentes as expressões “como direi agora”, “disse mal”, “como direi depois”, “risque o senhor isso que disse, se lhe parecer bem, e considere como uma carta para si”. [9]
Por vezes, quando estrangeira à língua em que escreve, Teresa a registra pela ortografia do som, como no latim, redigido tal qual o escutou; [10] registra pelo ouvido, como uma forma de obedecer: do latim, ob-audire, escutar atentamente para, talvez, des-obedecer: escrever de ouvido a língua da autoridade, e fazê-lo no trajeto do erro. Quando estrangeira à língua da autoridade que transcreve, como na citação do Sl 101,8, Teresa escreve: “Vigilavi ed fatus sun sicud passer solitarius yn tecto”, quando o ortograficamente aceito seria: “Vigilavi et factus sum sicut passer solitarius in tecto”: “Vigiava e fui feito como um pássaro solitário no teto”. Tal fato, se, por um lado, é índice da ignorância de Teresa acerca do latim, por outro, pode ser compreendido como um gesto de desobediência à língua oficial, da Igreja e dos padres – pois, certamente, ela teria acesso a uma versão da Vulgata – e, por outro, ainda, marca a invenção de sua língua pelo corpo: seu modo de dizer em pedaços e em exercício de erros, reconhecendo, em si, aquilo que, de ouvido, escrevera: “E assim me lembro desse verso, então, que parece que o vejo em mim”. [11]
O verso gravado no corpo é o erro que macula a língua oficial, da autoridade, dos homens que, não é preciso afirmar, já no tempo teresiano, são os que têm prioridade no exercício da palavra. Desobedecê-la, por vias indiretas, como num latim incorreto, ou por vias diretas, na con-frontação: eis o labor ardente de Teresa, labor dedicado ao “doce caçador [que]/ me atingiu com sua seta”. [12]
BALTHASAR, Hans Urs von. Las personas del drama: El hombre en Cristo. Trad. Eloy Bueno de la Fuente; Jesús Camarero. Madrid: Ediciones Encuentro, 1993.
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
COHEN, J. M. Introdução. D’ÁVILA, Santa Teresa. Livro da vida. Trad. Marcelo Musa Cavallari. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010, p.15-28.
D’ÁVILA, Santa Teresa. Livro da vida. Trad. Marcelo Musa Cavallari. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010.
JESUS, Santa Teresa de. Livro da vida. Trad. Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1961. Obras completas de Santa Teresa de Jesus, tomo I.
JESUS, Santa Teresa. As fundações Trad. Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1956. Obras completas de Santa Teresa de Jesus, tomo II.
JESUS, Santa Teresa de. Opúsculos. Trad. Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1961. Obras completas de Santa Teresa de Jesus, tomo V.
PAULO VI. Proclamação de Santa Teresa de Jesus Doutora da Igreja. A santa sé. Disponível aqui. Acesso em 25 set. 2020.
TEIXEIRA, Faustino. Apresentação. PORETE, Marguerite. Espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do Amor. Trad. Sílvia Schwartz. Petrópolis: Vozes, 2008, p.17-29.
[1] D’ÁVILA. Livro da vida, p.165 (b).
[2] PAULO VI. Proclamação de Santa Teresa de Jesus Doutora da Igreja, [s/d].
[3] TEIXEIRA. Introdução, p.21.
[4] JESUS. As fundações, p.9.
[5] BLANCHOT. O livro porvir, p.136; p.137.
[6] BALTHASAR. Teodramática 3: Las personas del drama: el hombre en Cristo, p.272. Tradução nossa.
[7] JESUS. Livro da vida, p.133.
[8] JESUS. Livro da vida, p.227.
[9] D’ÁVILA. Livro da vida, p.152.
[10] COHEN. Introdução, p.16.
[11] D’ÁVILA. Livro da vida, p.181.
[12] JESUS. Opúsculos, p.170.
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O erro e a errância na escrita de Santa Teresa (breve comentário nos 50 anos de seu doutoramento) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU