15 Julho 2019
Interpretar o esforço da tradução como uma culpada traição envolve o risco de deturpar qualquer tentativa real de “caminhar na história” por parte da Igreja. Estou convencido de que a “mudança de paradigma” é uma das coisas mais sérias que podemos pensar hoje, como teólogos.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 12-07-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“A preferência progressiva pelas palavras e pelos conceitos mais simples, mais serenos e mais pacificadores” (G. Dossetti)
Caro Giulio,
Já aconteceu outras vezes, nesses últimos anos, que houvesse ocasiões para expressar posições diferenciadas, entre mim e você, em torno do magistério do Papa Francisco. Ambos somos professores no Ateneu Santo Anselmo, e, como colega, acho necessário reagir ao que li na sua última intervenção, sobre o Instrumentum laboris em preparação para o Sínodo Especial sobre a Amazônia (disponível aqui, em italiano).
Como nos casos anteriores, noto um crescendo de sarcasmo e de contestação frontal a toda expressão magisterial que tenha a sua fonte, mais ou menos diretamente, no Papa Francisco. Começando pela Evangelii gaudium até esse último documento, para você, caro Giulio, a palavra de Francisco torna-se objeto de um julgamento afiado, cortante, tão duro a ponto de lhe induzir a usar a terminologia da ‘heresia” ou da “apostasia” sem mais controle algum. Você não só critica o que eu aprecio, e eu facilmente critico aquilo que você aprecia: tudo isso seria a dialética normal de uma verdadeira discussão teológica. Em vez disso, naquilo que eu li nesse seu último texto, parece-me que a crítica, da qual toda boa teologia vive, transborda gravemente para uma forma de liquidação das expressões desse caminho sinodal, como se estivéssemos diante dos desvios denunciados pelo Sílabo, pela Pascendi ou pela Humani generis. Eu realmente não entendo isso. Até porque você não propõe argumentações, mas slogans. A Amazônia é um éden, a teologia se traduz em antropologia, e o cristianismo se torna biodegradável... Todos os piores pesadelos do antimodernismo dos últimos 200 anos parecem ressuscitar por “culpa” do Papa Francisco.
Esse esquema me parece tão fraco que eu me esforço para trazê-lo de volta à sua bem conhecida competência. E, de fato, parece-me bastante ligado a um afeto do que a um raciocínio. É mais um mito do que um logos.
Por isso, gostaria de aproveitar esta oportunidade de diálogo e de debate para deslocar ligeiramente o objeto da questão e para lhe fazer, assim como a mim, uma pergunta mais radical: como podemos/devemos fazer teologia hoje?
Nessa pergunta, obviamente, eu me sinto tão investido quanto você. E também gostaria de pedir que você interprete algumas das questões que eu pretendo levantar, dirigidas primeiramente a mim do que a você.
Acima de tudo, uma questão de método: é certo “difamar” um documento? Talvez todos nós, diante de documentos mais ou menos convincentes, fomos e ainda somos tentados a usar a “crítica” do modo mais duro. Nisso, parece-me, facilmente ninguém atiraria a primeira pedra se examinasse com cuidado a si mesmo. Um uso exagerado da crítica faz naufragar o ofício teológico, seja qual for o seu objeto. Até mesmo a crítica tem limites, que ninguém pode impor de fora, mas que, de algum modo, devem ser gerados a partir da própria crítica.
Gostaria de dar apenas alguns exemplos, que se referem ao seu último texto. Você assume como óbvias uma série de afirmações que você não submete a qualquer crítica. Assim, facilmente, a sua crítica se torna totalmente unilateral. Indico-lhe algumas:
- você considera óbvio que o documento preparatório “criou divisões” por causa de uma teologia até “não cristã”. Talvez o defeito esteja no ponto de vista. Seria cristão e pacificador apenas um documento que tivesse sido escrito integralmente na Europa e em Roma? A divisão eclesial não é, talvez, o fruto de uma leitura unilateral com que os europeus, há cinco séculos, com as suas categorias, interpretaram a vida cristã da Amazônia?
- do mesmo modo, parece-me que você lê o específico “amazônico” com uma oposição entre teologia e antropologia que nos deixa totalmente perplexos. Você admite que a Amazônia tem uma história diferente da Europa ou acha que é apenas uma variante entre ortodoxia e liberalismo que pode dissolver toda questão?
- as críticas que você elabora contra o Instrumentum laboris são injustas, porque ridicularizam coisas extremamente sérias e tomam muito a sério coisas que não têm toda essa relevância. Dou-lhe um exemplo: o método “pastoral” não foi inventado pelo Papa Francisco, mas é uma grande herança do Concílio Vaticano II: ele consiste em assumir plenamente a tarefa de “traduzir a tradição”. Isso é algo extremamente sério, que você tende a ridicularizar de um modo incompreensível para mim. Por outro lado, você se admira que o documento não usa citações de São Tomás. Mas Tomás sequer sabia que a América existia! Porém, ao fazer a sua anotação, você não pode deixar de insinuar a ideia de que o modo de citar Tomás introduzido pelos documentos de Francisco é simplesmente “equivocado”. Aqui também você prefere desqualificar e comunicar a difamação, em vez de raciocinar. Dizer que a Bíblia e São Tomás são estranhos ao documento não torna a sua crítica mais forte, mas sim mais fraca.
São apenas pequenos exemplos. Quero tirar daí uma consequência que eu assumo acima de tudo para mim. Esse seu último texto me mostrou bem qual é o caminho arriscado de toda teologia que tenha a coragem de dizer o que pensa. A crítica, que é o sal do nosso trabalho, nunca deve se tornar sarcasmo, desqualificação, deslegitimação, difamação. Sempre que, para expressar uma séria reserva sobre um documento ou sobre uma afirmação, colocamos em jogo a credibilidade e a honestidade do interlocutor, fazemos um péssimo serviço ao nosso trabalho.
Interpretar o esforço da tradução como uma culpada traição envolve o risco de deturpar qualquer tentativa real de “caminhar na história” por parte da Igreja. A acusação de que o documento propõe um “cristianismo biodegradável” derruba a si mesma facilmente sob o risco de sustentar uma “teologia autoimune”, ou seja, uma doutrina cristã que gera, ela mesma, seus próprios inimigos para poder permanecer sempre absolutamente firme, imóvel, imutável.
Estou convencido de que a “mudança de paradigma” é uma das coisas mais sérias que podemos pensar hoje, como teólogos. O Santo Anselmo, como ateneu, contribuiu largamente por muitas décadas para pôr em movimento essa tradução da tradição, em nível litúrgico, sacramental, monástico e filosófico. Parece-me estranho que você possa pensar como “algo risível” aquilo que justifica hoje uma séria reavaliação das principais categorias do nosso pensamento teológico. Não para “enterrar”, mas para “relançar” a tradição.
Aceitar que a Amazônia põe em movimento categorias novas e diferentes, para a elaboração de uma teoria e de uma práxis cristãs credíveis, parece-me uma passagem incontornável. A sua recusa, que eu definiria como “a priori”, de considerar essa exigência me surpreende e me chama a atenção.
Gostaria de concluir com uma passagem que extraio da “Pequena Regra” escrita por G. Dossetti para as Famílias da Visitação. Eu sempre gosto de me inspirar nela quando escrevo, embora muitas vezes eu permaneça muito longe dela. Ela recomenda “a preferência progressiva pelas palavras e pelos conceitos mais simples, mais serenos e mais pacificadores”. Essa preferência me parece ser uma passagem decisiva. Talvez seja a partir daí que realmente comece uma mudança de paradigma de que todos nós precisamos urgentemente.
Saúdo-lhe cordialmente,
Andrea
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Cristianismo biodegradável ou teologia autoimune? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU